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É possível prevenir violência contra LGBTQIA+, mas falta compromisso do Estado

Para a coordenadora do Observatório de Mortes e Violência LGBTIA+ no Brasil, sociedade civil acaba cumprindo tarefa do Estado ao levantar dados de violações contra essa população

Pietra Fraga

8 min

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Em 2022, a equipe da Acontece – Arte e Política LGBTQIA+  se reuniu com representantes da embaixada do Reino dos Países Baixos em Brasília, no dia Internacional da luta contra a LGBTIfobia, 17 de maio. Para marcar a data, a embaixada organizou uma cerimônia de hasteamento da bandeira. Àquela altura, nossa equipe acabara de divulgar nosso Dossiê de Mortes e Violências contra LGBTI+ no Brasil. Os dados daquele ano, compilados por nós,  mostravam que, em 2021, 316 pessoas morreram (ou foram mortas) no Brasil por razões relacionadas a sua sexualidade ou identidade de gênero. Esse é um número que me choca. Mas que, para ser sincera, raramente comove as pessoas com quem converso: num país continental, como o Brasil, 316 pessoas mortas parece pouco. Num país violento, com elevadas taxas de homicídio, somos inclinados a normalizar a morte.

A cifra, no entanto, horrorizou meus interlocutores europeus. Durante a cerimônia na embaixada, fui convidada a fazer uma breve fala. Falei de improviso, nervosa pela surpresa de ser convidada a discursar. E ressaltei os números daquele levantamento, ainda frescos na minha memória. Enquanto falava, observei o semblante dos presentes mudar da seriedade ao choque. “Esses são números muito altos”, me disseram. ” O que o Brasil está fazendo para mudar essa realidade?”, me perguntaram. O Brasil desponta como um dos países que mais matam pessoas LGBTQIA + em todo o mundo, dentre aqueles que mensuram a letalidade da LGBTIfobia. Frente a tamanha violência, eu diria que ainda fazemos muito pouco.

Desde 2022, coordeno o Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+ no Brasil. O trabalho é resultado de uma parceria entre a Acontece LGBTI+, organização de que faço parte, e outros dois grupos com atuação histórica: a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), e a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transexuais (ABGLT). Juntas, criamos uma base de dados unificada, que reúne relatos de violências e fundamenta nosso Dossiê anual.

Brasil matou 1 pessoa LGBT a cada 28h em 2023

Brasil matou 1 pessoa LGBT a cada 28h em 2023

Esses casos são colhidos a partir de notícias publicadas em jornais, por publicações em mídias sociais, assim como via Lei de Acesso à Informação (LAI) às Secretarias de Segurança Pública. A última edição do Dossiê foi lançada em Brasília no dia 15 de maio, apontando que, em 2023, 230 pessoas LGBTQIA+ foram mortas ou cometeram suicídio no Brasil.

Levantar esses números exige trabalho árduo, realizado por um número reduzidíssimo de pessoas. Hoje, a equipe que coordeno conta com duas pessoas responsáveis pela sistematização das informações. Nossa metodologia foi pensada com rigor, mas os nossos dados não refletem a realidade fielmente: como nos baseamos em notícias divulgadas pela imprensa, é de se supor que muitas ocorrências passem despercebidas. É grande a subnotificação.

Ao longo desses anos de trabalho, percebemos uma coisa: que não compete à sociedade civil fazer esse tipo de levantamento. Ongs como a Acontece LGBTI+ não têm função investigativa. No entanto, frente a inércia e negligência estatal, buscamos e aprimoramos formas possíveis de indicar a materialidade da violência LGBTIfóbica.  No Dossiê, contabilizamos assassinatos, suicídios e outras mortes, como desaparecimento.

Os suicídios são considerados no número de mortes totais por alguns fatores para além de marcadores lgbtifóbicos apontados por amigos e familiares. Pesquisas indicam que o risco de suicídio é de três a seis vezes maior para lésbicas, gays e pessoas adultas bissexuais do que para pessoas adultas heterossexuais. Outro estudo observou que a existência de um adulto próximo que aceite e acolha a pessoa com sexualidade e/ou identidade de gênero dissidente do padrão heterocisnormativo reduz em 40% a chance de tentativa de suicídio. É por meio desse viés que entende-se como os discursos de ódio também matam pessoas LGBTI+.

Os órgãos com capacidade para apurar essas ocorrências, em profundidade, são os Ministérios Públicos.  À sociedade civil organizada caberia analisar essas informações e, a partir delas, propor políticas públicas. Como o governo não produz esses dados e é quem tem acesso a fonte de dados robustas, produzimos nós. Os ministérios e autoridades de segurança pública têm o dever moral e legal de tomar medidas urgentes contra a LGBTIfobia letal em nosso país.

Me envolvi com as atividades do Observatório no final de 2021. Era um momento em que eu terminava minha graduação em psicologia na UFSCar e procurava definir quais seriam meus próximos passos. Entrei no projeto e me disponibilizei a  trabalhar na sistematização de dados pela quantidade de casos que tínhamos. E dei de cara com, ao menos, dois desafios. O primeiro deles era financeiro: é difícil encontrar quem financie esse trabalho de levantamento de dados. Atualmente, por exemplo, não temos verbas. Os sistematizadores são voluntários.

O outro problema, que me preocupava desde o primeiro dia, dizia respeito à minha saúde mental. É inevitável: quem trabalha nessa função fica exposto a relatos violentos. Recebe, pelo Whatsapp, fotos e vídeos com alto grau de crueldade. Em um dado momento, comecei a sentir os efeitos dessa violência. Dormia pensando no Dossiê, e sonhava com os crimes, com as vítimas de assassinatos.

Outras duas pessoas que também passaram pela sistematização sentiram o mesmo que eu. Uma delas, um rapaz, ficou mal e adoeceu. Ele contribuía muito, era uma pessoa muito dedicada ao trabalho. Mas não dava para continuar. “Acho melhor você parar”, disse para ele. Era uma rapaz jovem, que tinha recém descoberto ser homossexual. Era importante que ele deixasse essas histórias de sofrimento para trás, e descobrisse as coisas boas de ser LGBTQIA+.

Hoje, tentamos contornar o peso desses relatos criando espaços de acolhimento por meio de algumas estratégias de cuidado coletivo. Ainda assim, é um trabalho pesado.

A equipe da Acontece LGBTI+ durante reunião com o Corregedor Nacional do Ministério Público (ao centro). (Foto: Divulgação)A equipe da Acontece LGBTI+ durante reunião com o Corregedor Nacional do Ministério Público (ao centro). (Foto: Divulgação)

Mas é um trabalho que, felizmente, rende bons frutos. A pauta da violência contra pessoas LGBTQIA+ foi invisibilizada por muito tempo. E sinto que temos conseguido romper essa barreira. Desde 2023, a Acontece LGBTI+ ampliou muito seu trabalho de advocacy. Passamos uma semana inteira em Brasília articulando com vários stakeholders chaves ao combate da LGBTIfobia. Durante nosso tour, tive uma grata surpresa: há interesse em discutir o tema.

Fomos ao ministério da Justiça, ao ministério da Saúde, conversamos com parlamentares, com embaixadas, com a ONU, entre outros. Procuramos o Conselho Nacional do Ministério Público, onde fomos recebidos pelo Corregedor Nacional. Na imprensa, o último Dossiê de mortes e violências recebeu cobertura ampla, com direito a uma longa matéria em um telejornal. São sinais de avanço.

Outro resultado positivo foi em termos preventivos, o que aquece meu coração, já que aposto muito nesse caminho de intervir antes da violação de direitos, assim como na seguridade social. A Corte Americana nos procurou após receber brasileiros refugiados nos EUA por sofrerem perseguição de morte no Brasil. Ao confiar em nosso trabalho, solicitaram nossa expertise para fundamentar a decisão do juiz em fornecer visto de permanência a quem buscava garantir seu direito à vida em um novo território.

Como disse no começo deste relato, ainda há muito a ser feito para reverter esse quadro de violência. Acredito muito na prevenção: que é possível criar mecanismos e políticas que acolham a comunidade LGBTQIA+ e evitem mortes. O véu de invisibilidade que pesava sobre essa pauta vem caindo. Precisamos ir além, e garantir o comprometimento de instituições do Estado que têm capacidade – e a responsabilidade – de nos fazer avançar na direção de um país mais seguro. Toda pessoa LGBTI+ tem o direito inalienável de viver sua verdadeira identidade. Nós precisamos garantir que esse direito seja respeitado e protegido em todos os estados do Brasil

 

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