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Com acordo em Alcântara, Estado se antecipa à condenação internacional, diz ativista

Para Danilo Serejo, do Movimento dos Atingidos pela Base de Alcântara (MABE), acordo entre aeronáutica e quilombolas não repara os prejuízos causados pela base de lançamento de foguetes às comunidades. Ativistas esperam que a Corte Interamericana de Direitos Humanos emita uma sentença sobre o caso até o final do ano

Rafael Ciscati

9 min

Vista aérea do Centro de Lançamento de Alcântara (Foto: Agência Brasil)

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Há mais de 40 anos, as comunidades quilombolas do município de Alcântara, na região metropolitana de São Luís (MA), convivem com o temor de ser expulsas do território que ocupam há gerações. As tensões começaram em 1983, quando a Força Aérea Brasileira (FAB) decidiu construir uma base de lançamento de foguetes na região, o Centro Espacial de Alcântara (CEA). A obra resultou no reassentamento de mais de 300 famílias quilombolas, que foram encaminhadas a agrovilas. 

Desde então, de tempos em tempos, o governo anuncia a intenção de expandir a base, o que acarretaria em novas remoções. Em  2020, por exemplo, em plena pandemia de covid-19, o governo do então presidente Jair Bolsonaro divulgou um plano de remoções que afetaria perto de 800 famílias. O desejo era ampliar o centro e abrir sua utilização a outros países. A ideia não foi adiante. 

Na última quinta-feira (19), o governo federal celebrou o estabelecimento de um acordo com o potencial de, ao menos em teoria, encerrar essas disputas. O Comando da Aeronáutica e as comunidades quilombolas assinaram um Termo de Conciliação segundo o qual os militares desistem da ideia de ampliar a base aeroespacial. Em contrapartida, os quilombolas reconhecem que os terrenos ocupados pelo CEA pertencem à aeronáutica.

>>Leia também: Na Corte Interamericana, quilombolas de Alcântara enfrentam o Estado brasileiro

O acordo também estabelece que a União deve dar prosseguimento ao processo de regularização fundiária das comunidades. A Constituição Federal de 1988 diz que as populações remanescentes de quilombo têm direito à posse coletiva de seus territórios tradicionais. E as comunidades de Alcântara cobram, há mais de 30 anos, o reconhecimento desse direito. 

“A história do povo de Alcântara vai mudar”, disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante uma cerimônia realizada na cidade. Na ocasião, Lula assinou dois documentos que fazem o processo de titulação das comunidades avançar algumas casas: a Portaria de Reconhecimento e Delimitação do Território Quilombola e o Decreto de Interesse Social do território quilombola. Trata-se da penúltima etapa do processo de titulação. Assista ao vídeo abaixo para entender como o processo funciona. 

 

A expectativa é de que uma área de mais de 78 mil hectares seja titulada.

Apesar de positivo à princípio, o acordo foi recebido com ressalvas por Danilo Serejo. Quilombola nascido em Alcântara e bacharel em direito, Serejo é consultor da ONG Justiça Global e assessor do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe). Há anos, acompanha a escalada das tensões na região. 

Na avaliação dele, o acordo  “não resolve o conflito existente nem repara os danos causados às comunidades”.

Ele explica que parte das tensões vividas pelos quilombolas de Alcântara deriva da recusa da União em titular seus territórios. Ao longo dos últimos anos, decisões judiciais estabeleceram que a União avançasse no processo de regularização fundiárias, mas foram descumpridas. 

Em 2023, o caso foi discutido durante uma audiência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Na ocasião, os quilombolas (representados por Serejo), questionaram a morosidade do governo federal em titular seus territórios. A audiência resultou num pedido de desculpas do Estado às comunidades. A sentença da Corte IDH deve ser emitida até o final deste ano. 

Na avaliação de Serejo, o acordo celebrado na semana passada consistiu em uma tentativa do governo de se antecipar a um constrangimento internacional. “A sentença pode trazer um avanço importante: o entendimento, do sistema interamericano, de que a propriedade coletiva da terra ocupada por comunidades negras rurais quilombolas deve ser reconhecida e protegida”, diz ele. “Agora, com a assinatura desse acordo, o Estado vai imediatamente comunicar à Corte que chegou a um entendimento com a comunidade. Ao fazer isso, ele esvazia o conteúdo da sentença”. 

O acordo, segundo ele, também não contempla outra demanda das comunidades: prejudicadas pela construção da base, elas cobram um processo de reparação amplo. 

Na conversa abaixo, ele detalha suas preocupações:

 

Brasil de Direitos: O acordo assinado na semana passada contempla as necessidades das comunidades quilombolas?
Danilo Serejo: O acordo traz elementos e conquistas importantes para a luta quilombola de Alcântara. A primeira delas é a publicação da portaria de reconhecimento do território e a publicação do decreto de interesse social,que são duas das últimas etapas do processo de titulação. A outra conquista é o compromisso assumido pelos militares, de que eles abandonam a ideia de expandir a base aeroespacial sobre o litoral de Alcântara. Em contrapartida, os quilombolas reconheceram a área ocupada pela base de lançamento de foguetes. Em resumo, o acordo estabelece que ninguém mexe com mais ninguém. As comunidades não vão mais questionar a área ocupada pela base; os militares não vão mais questionar a área ocupada pelas comunidades. Mesmo assim, sou uma voz dissonante: me opus à assinatura do termo de conciliação.

Por quê?
Porque o Estado brasileiro tem um longo histórico de descumprir acordos relacionados a Alcântara. O Estado não precisava desse termo de conciliação para publicar o decreto de interesse social. Desde a década de 1980, houve várias decisões judiciais que obrigavam a União a avançar no processo titulatório — algo que o Estado nunca fez. Recentemente, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) emitiu uma decisão recomendando ao Brasil titular o território quilombola de AlcântaraMas o Estado sempre sucumbiu ao interesse dos militares. Em lugar de celebrar um termo de conciliação,  bastava ao Estado brasileiro cumprir as várias decisões judiciais e recomendações internacionais já existentes. 


Ainda assim, não é positivo que o acordo tenha finalmente feito avançar o processo de titulação?
O objetivo do governo é apresentar uma resposta antecipatória à sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Trata-se do primeiro caso envolvendo comunidades quilombolas julgado no sistema interamericano de direitos humanos. A sentença deve ser emitida até o final deste ano. Ela pode trazer um avanço importante: o entendimento, do sistema interamericano, de que a propriedade coletiva da terra ocupada por comunidades negras rurais quilombolas deve ser reconhecida e protegida. Agora, com a assinatura desse acordo, o Estado vai imediatamente comunicar à Corte que chegou a um entendimento com a comunidade. 


Seu temor é de que o acordo esvazie o teor da sentença?
Ao fazer isso, o Estado esvazia a  futura sentença da Corte. Se a sentença abordar o tema, vai ser por alto. Com isso, o Estado derruba a possibilidade de criar um entendimento que não seria importante somente para Alcântara, mas para todas as comunidades quilombolas do país. O caso de Alcântara é emblemático. Sendo o primeiro caso julgado no sistema interamericano, dificilmente o Brasil teria condições de descumprir a sentença da Corte. Geraria um constrangimento internacional muito grande. Por isso, ele se antecipou. Agora, dificilmente  a sentença vai afirmar a ideia de que deve ser reconhecida a propriedade coletiva das comunidades negras rurais quilombolas. Porque o caso já chegou a uma decisão amistosa. 


Pensando especificamente nas comunidades de Alcântara, uma decisão da Corte IDH teria sido mais benéfica do que a assinatura do termo de conciliação?
Há um detalhe nesse caso, que é muito importante que seja entendido: o acordo promove uma espécie de anistia reversa aos militares. No caso apresentado à Corte, pedimos que toda a área do Centro de Lançamento de Alcântara fosse reconhecida como quilombola. A ideia era brigar por reparação, por royalties, por compensações. Como está, o acordo dá mais segurança jurídica ao Estado e aos militares que às comunidades. O acordo não resolve o conflito. 


Como assim? O acordo reconhece o direito das comunidades aos seus territórios.
Mas ele não ataca, de forma imediata e direta, o problema maior que é a titulação. Em uma das cláusulas, ele estabelece que o Estado tem o prazo de um ano para começar o processo de regularização fundiária. Isso é ruim: do ponto de vista prático, é inviável concluir esse processo até o final do governo Lula. Afinal, o último ano de governo é também ano eleitoral. Temo que, se o Estado não avançar, os militares vão descumprir sua parte do acordo.

 

Isso significa que, até o processo de titulação ser concluído, as comunidades estarão numa situação de insegurança jurídica?
A portaria assinada pelo presidente fortalece a posse dos territórios. Ela reconhece a posse, mas não reconhece a propriedade. Esse reconhecimento só virá com a emissão dos títulos. Até lá, as comunidades permanecem em cenário de insegurança, embora fortalecidas.No que diz respeito ao cerne do problema, o acordo não foi o fim do conflito. 


As pessoas em Alcântara pareceram felizes com o Acordo.
Elas estão, há 40 anos, imersas num estado de violência. Nessas condições, se você dá arroz pintado de amarelo para as pessoas, elas pensam que é ouro. Mas, felizes é uma palavra forte. Eu diria que elas têm esperança de que vamos chegar a uma solução. Mas o Estado fez bem menos do que deveria. Ele lustrou a dívida, mas não pagou a dívida. 

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