Virei prostituta para ter a mesma liberdade que os homens, diz autora
Na biografia Puta História, Fátima Medeiros reconta seus mais de 30 anos como trabalhadora sexual e ativista. "Quero combater preconceitos".
Rafael Ciscati
7 min
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Na Salvador de fins dos anos 1980, havia uma casarão muito mal-ajambrado em cujo primeiro andar funcionava um bordel. Era a “Casa de Amanda”: uma cafetina trambiqueira, testemunha de Jeová fervorosa, que gostava de enfeitar móveis e badulaques com paninhos de crochê. Nos dias mais agitados, Amanda insistia que as mulheres sob seu comando vendessem bebidas caras aos clientes. Especialmente vinho ou Campari, que ela substituía por suco. Já nos dias de clientela escassa, Amanda reunia as prostitutas na sala de casa: em círculo, oravam para que o movimento melhorasse.
“Se Jorge Amado aparecesse na Baixa dos Sapateiros, saía de lá com um livro pronto”, brinca Fátima Medeiros,referindo-se a um dos bairros do centro de Salvador. Fátima trabalhou na Casa de Amanda por alguns meses. Saiu de lá porque discordava do conservadorismo da dona, e porque já estava cansada de tanto rezar.
Presidente da Associação das Prostitutas da Bahia (Aprosba), Fátima Medeiros é uma mulher de cabelos castanhos que usa repartidos ao meio. Faladeira, emenda um assunto no outro. A quem quer que pergunte — e mesmo a quem não perguntar — ela conta ser prostituta há 35 anos. Foi esse o trabalho que escolheu ainda na juventude.
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Trabalho sim, e escolha também, ela ressalta. Desde 2002, o ministério do Trabalho e Emprego reconhece o trabalho sexual como ocupação, incluído no Código Brasileiro de Ocupações (COB) sob o número 5198-05 . Foi trabalhando como prosituta que Fátima viajou pelo país, alimentou as filhas e construiu uma casa para a mãe. Foi como trabalhadora sexual, também, que Fátima se encontrou no ativismo: desde meados dos anos 1990, organiza as colegas para defender os direitos da categoria. Na ausência de um Jorge Amado para contar sua história, decidiu ela mesma escrevê-la e publicar em livro.
Em Puta História (Ed. Ofícios Terrestres, 106 páginas), Fátima reúne uma galeria de personagens digna da ficção, mas que ela garante terem existido. Apresenta, também, os aprendizados e reflexões acumulados em décadas de ativismo. “Resolvi escrever minha história para combater os estigmas que pesam sobre a profissão”.
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O começo no trabalho sexual
Nascida em uma família conservadora da Paraíba, Fátima casou-se jovem, grávida e sem vontade. O marido bebia e a agredia. Em casa, a mãe insistia que ela se resignasse ao papel de boa esposa. “Ruim com ele, pior sem ele, era o que me diziam”, narra ela no livro.
A moça, no entanto, sonhava com uma vida diferente. “Queria viajar o mundo, ir a festas, namorar com o bispo”, contou durante a entrevista com Brasil de Direitos. Fátima diz que sonhava com a “zona”: as ruas do centro da cidade que reuniam os bordéis frequentados por seu marido e vizinhos. Queria beber, sentar numa roda de mulheres e falar mal dos homens que passassem. “Eu achava que, na zona, as mulheres eram tão livres quanto os homens. Virei prostituta para ser livre também”.
Para se livrar do casamento violento, Fátima saiu de casa, mudou de bairro e começou a trabalhar numa tecelagem. Na nova vizinhança, se aproximou de uma mulher, dita cozinheira, que andava sempre muito arrumada. Querendo fazer amigos, Fátima convidou a vizinha para beber em casa. Fátima providenciaria a cerveja, a vizinha traria os quitutes que ela própria preparava. “Mas a comida dela era horrível. Pensei: essa mulher não é cozinheira coisa nenhuma”.
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A militância contra a violência policial
De fato, a vizinha não era cozinheira. Ela ganhava a vida em uma boate chamada Relax for Men.
Fátima conheceu o lugar e se apaixonou. Foi o primeiro estabelecimento onde “batalhou”, com ela diz. Lá, se sentiu livre como nunca. A vida na zona contrastava com o cotidiano de casada. Em casa, esperava-se que Fátima obedecesse ao marido. “Na zona, tudo é negociado”, diz ela.
Tempos depois, ela descobriria que, para manter sua liberdade, precisava se organizar. Nos anos 1990, o processo de revitalização do centro antigo de Salvador veio acompanhado pelo recrudescimento da violência policial. “Eles tiravam as mulheres da rua, tomavam nosso dinheiro, nos perseguiam. Em Salvador, fui presa 11 vezes”, conta. O cerco a revoltava, e ela sempre saía em defesa das colegas menos articuladas. “Na cidade, diziam que eu era advogada de puta”, ri. A luta contra a violência policial se converteu na primeira bandeira da Aprosba, a associação criada em 1997.
Autora publicada
Já a ideia de contar tudo isso em livro tomou forma durante a pandemia de Covid-19. Na época, Fátima participava de um grupo de discussões chamado “Puta Diálogo”. Os encontros reuniam acadêmicos, ativistas e prostitutas para falar sobre o trabalho sexual. Por lá, Fátima sempre compartilhava suas vivências e impressões. “As colegas me diziam: ‘gostei do que você disse. Aquilo me encorajou. Já pensou em escrever um livro?’”.
A princípio, Fátima diz que achou a ideia um tanto absurda. Nunca se imaginara autora. Material ela tinha em abundância: desde 1985, escreve quase diariamente. “Comecei a escrever no dia em que pisei em um navio pela primeira vez”, lembra ela. “Achei aquilo tão incrível que quis anotar para não esquecer”.
A escrita virou hábito. Funciona quase como um ritual, com hora marcada — durante a entrevista para essa matéria, inclusive, o despertador de Fátima tocou, avisando que já era hora de ela sentar para escrever. “Mas eu escrevo para lembrar das coisas. Não para publicar”.
Foi a pesquisadora Maria Fernanda Moreira, também participante do Puta Diálogo, quem lhe deu o empurrão que faltava para virar uma autora publicada. Maria Fernanda fez a ponte de Fátima com a editora, e ajudou a revisar o material. Quando finalmente viu os exemplares impressos do livro, Fátima diz que mal se conteve. “Queria ficar com todos para mim”. Envaidecida, ela conta que o livro esgotou.
Respeito às prostitutas
O exercício de revisitar o passado lhe fez bem. “Eu tenho muito orgulho da Fátima jovem. Do jeito dela, aquela Fátima deu conta do recado”, diz.
Hoje, a escritora já planeja um segundo volume. Afinal, lembra, foram mais de 35 anos de trabalho e há ainda muita história para contar. “Foram anos bem vividos. E não acabaram, porque continuo militando”. Ela sonha viver muito. O bastante, diz, para ver o os direitos das prostitutas protegidos, e o trabalho sexual respeitado pela sociedade. “Eu quero que a Praça da Sé (em Salvador) seja tombada como patrimônio histórico das prostitutas” diz. “E quero que ergam lá a estátua de uma mulher carregando uma bolsinha. E que essa mulher seja eu”.
Afinal, Fátima escreve para não esquecer. “Mas também não quero ser esquecida”.
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