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O que é interseccionalidade?

O termo se refere aos marcadores sociais que, quando combinados, geram uma relação de opressão mais complexa

Bárbara Diamante *

8 min

Interseccionalidade se refere aos marcadores sociais que, quando combinados, geram uma relação de opressão mais complexa

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No ano de 1989, a jurista Kimberlé Crenshaw analisou o caso de uma mulher que não foi contratada por uma fábrica. Emma DeGraffenreid não passou no processo seletivo e alegou ao tribunal que não a contrataram por ser uma mulher negra. O júri não acatou a solicitação, sob a justificativa de que a empresa contratava mulheres e pessoas negras. Mas não foi levado em consideração o fato de não haver nenhuma mulher negra na fábrica. 

Todas as mulheres ali presentes eram brancas e as pessoas negras eram do sexo masculino. Outra nuance observada foi a de que as demandas oferecidas a cada grupo eram diferentes: as mulheres brancas trabalhavam em escritórios, enquanto os homens negros realizavam trabalhos mais braçais, como manutenções. Ao olhar para esses fatores, Kimberlé começou a se referir à sobreposição de marcadores sociais pelo termo de interseccionalidade

Marcadores sociais são características individuais, que abrangem fatores como raça, gênero, sexualidade, faixa etária, entre tantos outros. Amanda Raquel da Silva, antropóloga e autora do livro A cor das relações explica que “interseccionalidade é a soma dos marcadores sociais e é fluida”, uma vez que cada pessoa sente e percebe os impactos de maneira exclusiva, a partir da própria experiência como cidadão. 

Para ilustrar o conceito, Amanda destaca o feminismo negro, cujas contribuições foram essenciais para a análise das sobreposições entre gênero e raça. “É um tipo de movimento que acontece para exigir direitos básicos, que já são garantidos há muito tempo para outras pessoas, mas não para esse grupo específico”, diz.

A luta por direitos que abrangessem questões mais representativas surgiu muito antes da criação do termo interseccionalidade. No final dos anos 60, a soma de marcadores sociais ainda não recebia nome, mas começava a ser debatida. Feministas negras, como as do Coletivo Combahee River, em 1974 já apontavam as consequências das diferenças de gênero e de raça. A brasileira Lélia Gonzalez também foi bastante relevante para a temática. Em “Mulher negra: um retrato”, um de seus primeiros artigos, a antropóloga e professora abordava os papéis sociais estabelecidos sobre a mulher negra.

 

No Brasil, mulheres negras compõem a maior parte da população, correspondendo a 28% do total. Apesar disso, o acesso a oportunidades como bolsas de doutorado-sanduíche é de somente 4,9%, enquanto 30,9% das brancas participam da mesma modalidade. E essa diferença não ocorre somente no campo acadêmico. O acesso à direitos básicos como trabalho e saúde também é mais complicado. 

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Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, 10,1% das mulheres negras estão desempregadas e muitas das que trabalham recebem a metade da remuneração de homens brancos. Quanto ao campo da saúde, a pesquisa Nascer no Brasil (2011-2012) revelou que, além de ter um pré-natal inadequado, elas tinham 50% menos chances de receber anestesia durante o parto.

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Os exemplos mais conhecidos de interseccionalidade se referem às mulheres negras, mas também existem outros tipos de sobreposição. Rafaela Malaquias, cientista social e educadora, afirma que essas interações de marcadores sociais ocorrem também sobre outros fatores. Dentre os inúmeros marcadores sociais que podem se sobrepor, ela cita a sexualidade e a idade.

Populações minorizadas são as que mais enfrentam os impactos da interseccionalidade. Mulheres, pessoas com origem nas regiões Norte e Nordeste, pessoas com deficiência, a população negra, a comunidade LGBTQIA+, idosos e pessoas periféricas são citadas pelo Relatório de Recomendações para o Enfrentamento do Discurso de Ódio e o Extremismo no Brasil como as principais vítimas das discriminações e opressões no país. Em muitos casos, os grupos se sobrepõem – como no caso das mulheres negras – e essas pessoas sofrem com múltiplas discriminações. 

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Brasil de Direitos: O que é interseccionalidade?

Rafaela Malaquias: É um conceito que vem, cada vez mais, sendo usado pelos movimentos sociais e em muitas teorias sociológicas. A interseccionalidade é um método de interpretação da nossa sociedade. E busca entender como todas as estruturas de poder – que levam às desigualdades – se relacionam.

Podemos destacar, principalmente, a luta das mulheres negras. A primeira autora que usa o termo é a Kimberlé Crenshaw, falando sobre direitos humanos. Para falar em direitos, é necessário pensar de uma forma que não seja universal. E é isso o interessante da interseccionalidade: ela vai sair da visão universalizante das coisas. 

Com relação à mulher, é preciso refletir sobre qual mulher estamos falando, porque nós somos plurais. Não podemos pensar em um direito para pessoas negras sem considerar a existência da mulher negra, que é diferente da existência do homem negro. 

As pessoas têm vivências diferentes e dentro dessas vivências nós temos estruturas de opressões que se cruzam. E precisamos olhar a sociedade a partir desse pensamento. Só assim podemos compreendê-la de fato e fazer questionamentos.

 

Existe algum outro tipo de sobreposição, além de raça e de gênero?

É pensando nessa estrutura de gênero e raça que são abertas outras dimensões. Tem gente que usa uma analogia a uma encruzilhada; também tem gente que fala que é um termo guarda-chuva, que vai cabendo vários outros termos. A questão é: como a Audre Lorde fala, “não existe uma hierarquia na opressão” e essas opressões vão agregar em outras. 

Por exemplo: uma mulher trans, tem a questão de ser transsexual e traz o feminino também. Temos, então, uma mulher trans negra, uma mulher trans periférica, uma mulher trans nordestina. Cada vez mais, vamos encontrando mais sobreposições. 

Hoje, temos muitas teorias que trabalham sexualidade, questões da periferia, capacitismo e etarismo dentro da interseccionalidade. 

 

Como a interseccionalidade auxilia no debate sobre desigualdades sociais?

A interseccionalidade é o contrário de pensar que somos todos iguais. Assim que começamos a entender que não somos seres universais e que temos nossas individualidades, percebemos que existem diferenças. Não trazendo as diferenças como algo negativo, mas como uma riqueza no entendimento social. 

Outro ponto é considerar a nossa história, os processos políticos, econômicos, sociais e culturais. E compreender que nossa sociedade foi estruturada com base na opressão, na estrutura de poder. Quando temos essa concepção, fica bem mais fácil de entender, por exemplo, por que temos um número menor de mulheres negras na pós graduação. Então começamos a questionar essas coisas. 

A interseccionalidade permite que as pessoas que estão na base dessa estrutura de poder também possam trazer suas narrativas. Hoje temos a teoria decolonial, que considera a multiplicidade dos indivíduos e a vivência deles para criar uma teoria e fazer um debate.

Criações de novas perspectivas – além da branca – na produção de conhecimento estão cada vez mais presentes. A interseccionalidade conversa muito com isso e traz todas essas vivências para o debate de uma forma de sermos nós mesmos [grupos marginalizados] que vamos falar.

 

É possível dizer que a interseccionalidade é um caminho para fomentar melhores políticas públicas?

Com certeza. Foi dentro dessa perspectiva que a Kimberlé Crenshaw trouxe a teoria da interseccionalidade. Nós temos as leis e uma constituição que garante igualdade, mas a prática dessa teoria é completamente diferente. Temos vários grupos marginalizados que não acessam muitas dessas leis que são “garantidas” para todo mundo. 

A ideia trazida por Crenshaw é a de que temos leis e justiça, mas a justiça só vai acontecer, de fato, no momento que começarmos a olhar para os indivíduos e planejar a execução das leis a partir disso. Isso auxilia na criação de programas governamentais e projetos sociais. Pensando em periferia, por exemplo, começamos a “separar”. Começamos a pensar na mulher, no negro e criamos programas mais efetivos.

 

 

*Estagiária sob supervisão

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