3 abolicionistas negros que você precisa conhecer
Por décadas, os livros de história subestimaram o papel da população negra na luta contra a escravidão. Trabalhos mais recentes recuperam o protagonismo de abolicionistas negros
Maria Edhuarda Gonzaga *
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Imagem: (em sentido horário) Reprodução, Wal Paixão, Reprodução
No dia 13 de maio de 1988, cem anos após a abolição da escravidão no Brasil, o Movimento Negro Unificado (MNU) lançou o slogan “A princesa esqueceu de assinar nossa carteira de trabalho”. Até ali, a história oficial apresentava a herdeira do trono como a grande protagonista da data, uma vez que, ao assinar a Lei Áurea, Isabel declarou extinta a escravidão no país. No entanto, releituras históricas vêm resgatado a existência de personagens negros que combatiam o regime de trabalho forçado anos antes de sancionada a abolição. Esse não foi um processo rápido. O resgate dessas figuras esquecidas pela historiografia oficial é um movimento que ainda acontece atualmente.
As disputas em torno da autoria da abolição são antigas, e remontam já ao final do século XIX. Na época, abolicionistas simpáticos ao regime monárquico se empenharam em associar o fim da escravidão ao “espírito modernizador” do imperador e de sua filha. Foi o caso de Joaquim Nabuco. Senador do império e monarquista aguerrido, Nabuco escreveu, em suas memórias, que o abolicionismo teria surgido no final da década de 1870, encabeçado por figuras que, como ele, eram ligadas à política institucional e à monarquia.
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De acordo com a professora Angela Alonso, do departamento de sociologia da Universidade de São Paulo, a versão defendida por Nabuco influenciou o trabalho de historiadores por muito tempo. Não era uma versão desinteressada: no artigo “O abolicionismo como movimento social”, Alonso conta como, ao fixar uma data de nascimento para o abolicionismo brasileiro, Nabuco tentou destacar a relevância do grupo político do qual ele fazia parte – ao mesmo tempo em que jogava para escanteio nomes como o de Luiz Gama, um abolicionista negro e republicano.
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Alonso conta que essa perspectiva começaria a mudar a partir de finais da década de 1960. Foi quando novos trabalhos se debruçaram sobre o papel desempenhado por pessoas escravizadas na resistência à escravidão. Uma resistência que, ao longo da história, assumiu diversas formas: conflitos com a polícia, rebeliões e mesmo a atuação na esfera judiciária. Dessa safra, destacam-se obras como “Visões de Liberdade”, do historiador Sidney Chaloub. Apresentado, primeiro como tese de doutorado, o trabalho virou livro no começo dos anos 1990. Conta como pessoas escravizadas — pessoas anônimas — procuraram ganhar autonomia e conquistar a liberdade.
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Os questionamentos em torno do protagonismo e do legado da abolição se intensificaram na década de 1980. Na época, o movimento negro chamou a atenção para o racismo prevalente na sociedade brasileira. Para os ativistas, a abolição fora curta e insuficiente, ao libertar escravizados sem garantir políticas sociais que amparassem a população liberta. No dia 11 de maio de 1988, às vésperas do centenário da abolição, aconteceu no Rio de Janeiro a “Marcha dos negros contra a farsa da Abolição“. A partir daí, a figura redentora da princesa Isabel foi substituída pela de Zumbi dos Palmares: um símbolo de luta e de resitência dos negros à escravidão.
Hoje, a historiografia trata com mais interesse a multiplicidade de atores que atuaram pelo 13 de maio ou contra o escravismo. Muitas dessas figuras foram, por décadas, apagadas da historiografia oficial. Defendiam projetos de liberdade diferentes daquele que prevaleceu em 1888. “O movimento abolicionista não era homogêneo”, defendeu a historiadora Wlamyra Albuquerque em entrevista à Brasil de Direitos em 2020. “ Havia, por exemplo, abolicionistas que eram sapateiros. Sabemos de abolicionistas que invadiam senzalas para fazer campanha. Na memória nacional, restaram apenas alguns ‘grandes homens’, que incorporaram a ideia da abolição a partir de uma perspectiva de reforma liberal. Para encontrar outras perspectivas, é importante olhar para os abolicionistas negros”.
Clóvis Moura, sociólogo piauiense, em seu artigo “Atritos entre a história, o conhecimento e o poder”, publicado na Revista Princípios, disse que “fazer história no Brasil, fora dos marcos oficiais, é uma prova de coragem. São muitos os […] heróis sagrados das classes dominantes”. O desafio, para ele, está em recuperar as contribuições dos “verdadeiros construtores do país”.
Os impactos de mais de 300 anos de escravidão e a falta de políticas de reparação no período posterior à abolição são discutidos até hoje pelos movimentos antirracistas. Dentre essas discussões, destaca-se o apagamento da participação negra popular na luta abolicionista.
Abaixo, conheça a história de três abolicionistas negros que atuaram ativamente no combate à escravidão.
Chico da Matilde (Dragão do Mar)
Em 27 de janeiro de 1881, nenhum escravo saiu de Fortaleza rumo a outro estado brasileiro.
Havia 31 anos que a Lei Eusébio de Queirós, que proibia o tráfico transatlântico de escravos, vigorava no Brasil. A Lei do Ventre Livre, que tornava os filhos de escravizadas libertos desde a data da sua promulgação, estava ativa há dez anos, o que dificultava o aumento do contingente de escravos. O tráfico interno de escravos, então, foi a alternativa encontrada pelos latifundiários para a continuação do regime de trabalho forçado.
“O africano enfrentava, pela segunda vez, a separação dos seus”, explica Hilário Ferreira, professor e pesquisador de cultura negra, em entrevista a TV Assembleia do Ceará. A vida com filhos e companheiros era novamente desestruturada com a redistribuição para lugares diferentes. Como havia mais escravizados no Norte e no Nordeste, o Sul e o Sudeste do país se tornaram grandes compradores daqueles.
Francisco José do Nascimento, conhecido como Chico da Matilde, era jangadeiro no porto de Fortaleza, no Ceará. Naquele 27 de janeiro, liderou o que mais tarde ficou conhecida como “Greve dos jangadeiros”. Os trabalhadores do mar eram fundamentais para o tráfico entre províncias. Ao decidir não embarcar nenhum escravizado, o mercado escravocrata da cidade foi paralisado.
O movimento suscitou a abolição da escravidão na província do Ceará, quatro anos antes da assinatura da lei Áurea. O estado foi o primeiro do Brasil a tomar tal iniciativa, mas pesquisadores ressaltam que ele não tinha uma produção financeira dependente do trabalho escravo. Essa condição, unida à falta de políticas de integração, faz a abolição local ser relativizada.
Como figura heróica, Chico da Matilde teve mais influência para a notoriedade do movimento abolicionista fora do Ceará. A imprensa local deu mais crédito às elites que participaram do que aos jangadeiros. Meses depois, em uma viagem ao Rio de Janeiro, então capital do país, o personagem recebeu os créditos pela ação que iniciara em Fortaleza.
O escritor abolicionista Aluísio Azevedo nomeou o líder do movimento de Dragão do Mar nesta aparição que fez no Rio de Janeiro. Em 2019, a escola de samba carioca Estação Primeira de Mangueira venceu o carnaval com um samba-enredo que citava Chico da Matilde: “A liberdade é um dragão no mar de Aracati”.
Maria Firmina dos Reis
Imagem: Reprodução
Maria Firmina dos Reis é considerada a primeira escritora brasileira. Mulher negra do interior do Maranhão, seu romance Úrsula foi pioneiro na crítica ao sistema escravagista que vigorava no Brasil desde o século XVI.
Em 1859, quando foi publicado, não havia nenhuma produção literária nacional que tivesse um discurso abolicionista. Os personagens principais da história são brancos, mas pela primeira vez há a presença de personagens negros que falam abertamente sobre as dores de viverem dentro daquele sistema. Maria Firmina dos Reis descreveu as senzalas, as violências cometidas contra africanos e afro-brasileiros e as violações que existiam dentro dos navios negreiros, sob o ponto de vista dos próprios personagens negros da história.
Sua obra caiu no esquecimento até 1962, quando foi encontrada em um sebo carioca pelo historiador paraibano Horácio de Almeida. Seu rosto foi confundido com o da escritora gaúcha Maria Benedita Câmara. Por muitos anos foi representada como uma mulher branca e, apesar de ter suas origens conhecidas – sua mãe era branca e o pai, negro –, não há registros do seu rosto.
Além de escritora, foi professora e, até onde se tem registro, foi a primeira mulher a ser aprovada em um concurso público no seu estado. Sempre carregou um posicionamento abolicionista. Quando passou no concurso para exercer a profissão, não participou do desfile na cidade de São Luís, celebração costumeira para os aprovados. No desfile, os aprovados eram carregados nas costas de escravos, ritual de que discordava. No seu livro, há uma passagem em que afirma que a escravidão “é e sempre será um grande mal”.
Oito anos antes da assinatura da Lei Áurea, Maria Firmina dos Reis fundou a primeira escola mista – que aceitava meninos e meninas – e gratuita do Maranhão. Depois de dois anos e meio, as atividades foram encerradas em razão da repercussão negativa que a ação causou na cidade de Maçaricó.
Manuel Querino
Imagem: Reprodução
Intelectual, militante do movimento operário baiano, pintor, escritor, antropólogo, precursor do design brasileiro. Manuel Raimundo Querino acumula títulos para além daqueles conquistados na sua luta pelo abolicionismo. Mesmo assim, a questão de raça sempre esteve presente na forma como guiava seus trabalhos.
Nasceu quando a escravidão ainda era um regime que pavimentava as estruturas do país, em 1851. Foi órfão cedo e, tutelado por pessoas com melhores condições financeiras, teve oportunidade de se desenvolver e crescer no meio acadêmico. Por meio do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB) e apoiado por jornais locais, popularizou seus estudos sobre a formação da identidade brasileira. Seus escritos eram voltados à valorização dos saberes da população africana e seus descendentes, além de exaltar suas contribuições culturais e econômicas para o Brasil.
Como antropólogo, percorreu terreiros de candomblé, rituais, festividades e tradições africanas que resistiam em Salvador para reivindicar a riqueza cultural dessa população. Entendia que, além da humilhação social e desvantagem econômica a que eram submetidos, os negros perdiam suas práticas originárias para a discriminação. Descreveu esses costumes ao passo que se impôs “contra o modo desdenhoso e injusto por que se [procura] deprimir o africano, acoimando-o constantemente de boçal e rude, como qualidade congênita e não simples condição circunstancial”. Também deixou obras que analisavam criticamente o mercado artístico no país, firmando-se, dessa maneira, também como um historiador do campo.
Há registros da sua participação no movimento abolicionista entre os anos de 1874 a 1885, época em que se afastou do ativismo no movimento operário. Essa separação foi amparada no projeto de libertação da população negra que, na época, “se derramava por todo o pais”, como afirmou seu contemporâneo J. Teixeira Barros, em depoimento. Apesar de não possuir artigos abolicionistas, suas obras se declaravam a favor da libertação do negro. No livro A raça africana e seus costumes na Bahia, Querino mostrou a influência do trabalhador africano na formação da sociedade brasileira, por meio de observações do cotidiano da população negra no estado.
* estagiária sob supervisão de Rafael Ciscati
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