4 questões para entender o Estatuto da Gestante e o avanço da pauta antiaborto
Projeto de lei é parte de pacote moralizante que tenta restringir direitos e "redomesticar" o corpo das mulheres, diz socióloga
Rafael Ciscati
6 min
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Desde 2019, o número de projetos de lei que tratam do acesso ao aborto disparou na Câmara do Deputados. De acordo com levantamento do Centro Feminista de Estudo e Assessoria (Cfemea), surgiram 46 novos projetos de lei (PL) e projetos de decreto legislativo sobre o tema. A maioria, afirma a ONG, relaciona medidas destinadas a dificultar o acesso ao procedimento mesmo naqueles casos em que o aborto tem respaldo legal: quando a gravidez decorre de violência sexual, quando põe em risco a vida da mulher ou no caso de feto anencéfalo.
A cifra cresce ano a ano: em 2018, 3 novas propostas desse gênero chegaram à Câmara. Em 2019, 15. Em 2020, foram 28 novos projetos. “E agora, em 2021, já há 3 novas proposições”, conta a socióloga Joluzia Batista, assessora técnica do Cfmea. “A gente observa uma movimentação muito grande que tenta impor concepções morais e conservadoras à legislação brasileira”, diz ela.
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O movimento é acompanhado — ainda que com menor intensidade — pelo Senado. A questão voltou ao debate público nessa última semana, quando senadores cogitaram incluir, na pauta da votação, o Projeto de Lei 5435/2020. De autoria do senador Eduardo Girão (Podemos – CE), o texto propõe a criação de um Estatuto da Gestante. Relaciona um conjunto de medidas destinadas a, de acordo com a proposta, garantir a proteção “da vida da criança por nascer desde a concepção”. As novidades incluem o pagamento de uma auxílio financeiro às mulheres vítimas de estupro para que não abortem. E a obrigação de a mulher informar o genitor — no caso, o estuprador — do nascimento da criança. O texto ainda estabelece que “é vedado a particulares causarem danos à criança por nascer em razão de ato ou decisão de qualquer de seus genitores”.
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Na avaliação de seus críticos, o projeto, se aprovado, resultaria na criminalização do aborto em qualquer circunstância. Para organizações feministas e especialistas em direitos das mulheres, o texto representa “um estelionato dos direitos sexuais e reprodutivos de mulheres e meninas brasileiras”.
Na última terça-feira (23), organizações da sociedade civil promoveram uma mobilização nas redes sociais cobrando a derrubada da proposta. A hashtag #GravidezForçadaéTortura ficou entre os trending topics do Twitter. A pressão parece ter surtido efeito. Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, a senadora Simone Tebet (MDB-MS), relatora do projeto, disse que apresentará um texto substitutivo. A ideia é suprimir os pontos que causaram maior polêmica, como as restrições ao aborto legal. Ainda não há previsão de quando Tebet apresentará seu relatório.
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Para Joluzia, é preciso cautela. Segundo ela, o Estatuto da Gestante faz parte de uma investida legislativa mais ampla contra os direitos da mulheres, que ganhou fôlego em 2019 e que não dá sinais de que vai arrefecer em breve. “É um pacote moralizante que quer nos devolver para dentro do lar”, afirma.
Brasil de Direitos – A senadora Simone Tebet disse que pretende suprimir os pontos mais polêmicos do projeto, como as restrições ao aborto legal e a remuneração para que mulheres não abortem, apelidada de bolsa-estupro. Em algumas entrevistas, disse que o texto não falaria em aborto. Mudanças nessa linha podem tornar a proposta positiva?
Joluzia Batista: O texto original enfatiza o “direito à vida desde a concepção” e propõe a criação de uma bolsa estupro. Essas são, de fato, as piores considerações em relação a esse estatuto. Mas o texto inteiro é bastante pernicioso. Ele propõe, por exemplo, que a gestante informe o estuprador do nascimento da criança. Isso é de uma crueldade sem tamanho. Como é que a mãe de uma menina de 10 anos que foi estuprada vai avisar o violador dessa criança que ela está gravida? De maneira geral, esse é um PL que desconhece a realidade das mulheres brasileiras, que desconhece os problemas que enfrentamos.
A legislação brasileira já dá algumas garantias à mulher gestante, como o direito ao acompanhamento pré-natal no SUS. Um Estatuto da Gestante é necessário? Que cara deveria ter?
Um projeto como esse deveria se concentrar, realmente, nas necessidades das gestante. Existe uma série de medidas que, segundo especialistas, poderiam melhorar a vida da mulher nessa fase. Sobretudo a vida das mulheres que vêm das periferias, das classes populares. Uma política nacional de vale-transporte, por exemplo. Um auxílio para que as mulheres, seus parceiros e parceiras possam acompanhar exames pré-natal. Ou mesmo a ampliação da assistência pré-natal. O projeto como esse seria benéfico se falasse em parto humanizado. Em violência obstétrica. São lutas que as mulheres travam já há algum tempo, e um Estatuto da Gestante deveria tratar delas.
Esse não é o único projeto a tratar de aborto no legislativo federal. O número de proposta sobre o tema vêm crescendo?
Houve uma movimentação legislativa bastante intensa nesse campo desde 2019. Surgiram diversas proposições que tratam do aborto e que tentam criminalizar a mulher que recorre ao procedimento. Em 2019, foram propostos 15 projetos de lei nesse sentido. Em 2020, foram 28. Em 2021, já temos cerca de 3 novos PL. Existe uma movimentação muito grande que tenta impor concepções morais, conservadoras, à legislação brasileira. Nas última três legislaturas, vimos as mulheres perderem, nos textos dos PL, o status de indíviduos. Essas propostas sempre falam da mulher associada a sua condição: a mulher é a mãe, a gestante, a lactante. Ela é pensada dentro de um arranjo familiar heteronormativo e destinado à reprodução.
Para além da acesso ao aborto legal, há então outros direitos sob ameaça?
Nos últimos anos, por força dessa ofensiva conservadora, se optou por buscar os caminhos da punição. Seja da mulher, seja do violador. Não tratamos de medidas capazes de prevenir a violência contra as mulheres. O debate sobre saúde sexual e igualdade de gênero foi interditado nas escolas. Nós não educamos os meninas para entender que o homens não tem poder sobre o corpo da mulher — e que um homem não pode matar sua companheira porque ela decidiu terminar o relacionamento. Não ensinamos aos homens que as mulheres têm o direito de andar livremente nas ruas, vestindo as roupas que bem quiserem. Essas interdições fazem parte de um pacote moralizante quer tenta restringir a mulher ao lar. É um processo de redomesticação do corpo da mulher. E ele acontece por meio da violência.
Foto de topo: Mídia Ninja
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