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A falta de inspeção presencial no cárcere e a negrofobia

As inspeções remotas são incapazes de revelar casos de tortura. Prefere-se estar no conforto dos gabinetes a presenciar a tortura e o genocídio contra a população negra encarcerada

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por Petra Pfaller*, Mayra Balan* e Lucas Gonçalves*, da Pastoral Carcerária Nacional 

A pandemia de Covid-19 escancarou e agravou inúmeras espécies de violência que existem estruturalmente no cárcere brasileiro. O sistema de saúde colapsado, o empobrecimento das famílias de pessoas encarceradas, o ataque aos laços familiares e afetivos, a incomunicabilidade, dentre tantas outras formas de violência são exemplos dessa atmosfera de terror que se ampliou durante a pandemia.
 
Mas algo institucionalmente grave, que se articula com todas as violências carcerárias e ainda pouco discutido nos meios de comunicação merece nossa especial atenção.

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O sistema de combate à tortura no cárcere vem sendo desmoronado pela ação do Estado. Como exemplo, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura foi completamente esvaziado e desarmado em decorrência do Decreto nº 6085/2019, elaborado pelo Poder Executivo Federal.
 
O Poder Judiciário, no mesmo sentido, vem se recusando a realizar audiências de custódia presenciais ao longo dos últimos anos, enfraquecendo as formas de se detectar as violências sofridas pelo/a investigado/a durante a captura policial.

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Não bastasse esse cenário, o mesmo Judiciário, em conjunto com o Ministério Público, se recusa a fazer inspeções presenciais nas unidades prisionais brasileiras.
 
Uma inspeção no cárcere pode ser definida, em resumo, como um meio de monitoramento e de obtenção de prova no qual um representante do órgão se desloca até a unidade prisional e vê, ouve e sente, com seus próprios sentidos, a realidade vivida pelas pessoas presas.
 
Trata-se de um caminho para se alcançar a realidade carcerária, em outras palavras, pois é através do contato direto com o espaço e a pessoa a serem inspecionados que o representante do órgão constata a violência sofrida pela pessoa presa. Trata-se, também, de ver e sentir o que a “canetada” feita na denúncia ou na sentença é capaz de perpetrar ao/à réu/ré.
 
Diante desse conceito, é extremamente importante que o monitoramento e a fiscalização da realidade carcerária sejam feitas presencialmente, para tentar reduzir a violência Estatal produzida lá dentro.
 
Entretanto, o Judiciário e o Ministério Público – que são instituições com atribuições legais para fazerem inspeção no cárcere – estão caminhando em sentido contrário. A cada dia que passa vem ganhando corpo nas regras, resoluções e portarias institucionais de cada poder normas que autorizam e estimulam as autoridades a fazerem “inspeções remotas ou virtuais”, mediante o uso de ferramentas tecnológicas audiovisuais, afastando a presença de representantes do órgão no interior dos presídios.
 
O Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, tem no art. 13 de suas Normas Judiciais da Corregedoria Geral da Justiça[1] a regra de que os presídios precisam ser visitados uma vez por mês. Mesmo sendo insuficiente a periodicidade mensal da inspeção, a regra determina a visita, e esta só pode ocorrer se for presencial.
 
O Comunicado CG 463/2020 do TJSP, por outro lado, estabeleceu que as inspeções “deverão seguir métodos que diminuam o contato social, preferindo-se as visitas remotas, por videoconferência mediante uso da ferramenta Microsoft Teams” (grifo nosso).
 
Foi com base nesse Comunicado que, em setembro de 2021, o TJSP realizou uma inspeção remota no CDP de Nova Independência, após a apresentação de denúncias pela Defensoria Pública de São Paulo (processo nº 1000303-90.2021.8.26.0509). O Juízo responsável pela Execução Penal da região simplesmente se recusou a visitar a unidade prisional, dificultando a captação da realidade e legitimando a violência sofrida pelas pessoas presas. Como resultado desse procedimento, a Corregedoria do TJSP determinou o arquivamento do processo, sem responsabilização estatal[2].
 
Mais do que dificultar a captação da realidade vivida pelas pessoas presas, é cientificamente árduo detectar o gênero, a gravidade, a profundidade e a espécie da lesão sofrida pela vítima encarcerada através de uma câmera de computador ou celular. Trata-se de uma nítida violação aos princípios básicos da medicina legal.
 
Não dá para saber, apenas analisando a tela do computador ou celular, se a pessoa foi lesionada por um instrumento pontiagudo ou cortante, ou se a lesão foi produzida por socos, tapas, pontapés ou por um instrumento de tortura, ou se a pessoa foi queimada ou afogada, ou qual o grau ou quais as sequelas da queimadura ou do afogamento, ou quais a profundidade e a gravidade da lesão, ou se a pessoa está com fome e se enfraquecendo, ou se a pessoa está se higienizando com água perenemente, dentre outras violências torturantes.
 
Uma das denúncias apresentadas pela Defensoria, por exemplo, dizia respeito ao suposto uso de cachorros nas incursões realizadas pelos agentes e pela direção na unidade prisional. Detectar se uma pessoa presa sofreu mordidas de cachorros através de uma tela de computador ou celular é cientificamente difícil e comprovadamente desumano.
 
Em um caso semelhante, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em agosto de 2020, após denúncia feita pela Pastoral Carcerária Nacional, preferiu olhar as câmeras do Complexo Penitenciário Vale do Itajaí do que visitar presencialmente a unidade prisional (Processo Administrativo nº 0026339-59.2020.8.24.0710). O órgão aduziu que a unidade “possui um complexo de câmeras, acessíveis via internet, sendo possível a este juízo fazer uma inspeção visual – em tempo real – do Complexo”. Em outras palavras, preferiu transformar a unidade em um reality show do que entrar em contato direto e presencial com a realidade prisional. 
 
A virtualização das inspeções no cárcere já faz parte de projetos políticos torturantes espalhados pelo país. Em outubro de 2020, por exemplo, o Governo do Rio de Janeiro, em conjunto com outros órgãos, incluiu a “inspeção de vistoria de unidades prisionais de forma virtual” como parte do planejamento político do estado[3].
 
No mesmo sentido, o Conselho Nacional do Ministério Público se pronunciou em setembro de 2021 na 13ª Sessão Ordinária pela “possibilidade de realização das inspeções tanto de forma presencial como remota”. O virtual desenvolvido ao longo da pandemia parece que veio para ficar.
 
Mais do que preguiça institucional, é possível concluir, diante de tudo isso, que os órgãos da execução penal estão ainda mais se recusando a ter contato presencial com as pessoas presas. Esses órgãos estão desenvolvendo e experimentando diversos malabarismos institucionais para se afastarem de vez das pessoas presas, transformando a pandemia em laboratório. Antes, durante uma audiência, separados pela altura da poltrona, o juíz sequer olhava nos olhos da pessoa acusada. Agora, nem na sala a pessoa acusada está. Esse fenômeno político e institucional tem uma explicação basilar: negrofobia.
 
Partindo da premissa de que o Judiciário e o Ministério Público são ocupados majoritariamente por homens brancos cisheteronormativos e originários da burguesia, e a população carcerária é majoritariamente preta, pobre, jovem e excluída do modo de produção, não resta dúvidas de que a branquitude burguesa não quer ter contato com pessoas pretas.
 
Tem-se nojo, medo, náusea, vergonha, raiva, rejeição e ódio da pessoa de pele preta. Prefere-se estar no conforto dos gabinetes, com o poder da caneta na mão, debaixo do ar-condicionado, com a venda nos olhos, do que inspecionar presencialmente uma unidade prisional e desvendar, com seus próprios sentidos, a tortura e o genocídio contra a população negra encarcerada. A vida e o sofrimento de uma pessoa preta são insignificantes, desprezíveis e descartáveis para o Estado, não passíveis de luto. “A carne mais barata do mercado é a carne negra” (A Carne, Elza Soares).
 
Essa conjuntura de completo distanciamento espacial entre gabinete e presídio revela um verdadeiro apartheid institucionalizado, instaurado diante de uma fragmentação territorial e de uma sepação nítida dos espaços de ocupação de cada raça: branca no gabinete; preta na prisão. O filósofo camaronês Achille Mbembe, referindo-se a  Frantz Fanon, explicitou a dinâmica dessa separação racial que se alastra nos espaços sociais e seu impacto para a manutenção do poder colonial: “Frantz Fanon descreve vivazmente a espacialização da ocupação colonial. Para ele, a ocupação colonial implica, acima de tudo, uma divisão do espaço em compartimentos. Envolve a definição de limites e fronteiras internas por quartéis e delegacias de polícia; está regulada pela linguagem da força pura, presença imediata e ação direta e frequente; e isso se baseia no princípio da exclusão recíproca” (Necropolítica, pg. 135, grifo nosso).
 
Os espaços de poder, de onde emana o monopólio da violência, são dominados pela branquitude estatal. Os espaços de violência e tortura, onde há vítimas, castigo e sofrimento, são ocupados pelas pessoas pretas. Os detentores do poder excluem a presença de pessoas pretas da “central de comando”, desejando distância e afastamento. A raça é o epicentro dessas relações de poder.
 
Fanon já mostrou em seus trabalhos a irracionalidade que sustenta a política ideológica genocida da branquitude e o racismo estrutural, que estão por trás dessa dominação colonial: “O preto é um animal, o preto é ruim, o preto é malvado, o preto é feio; olhe, um preto! Faz frio, o preto treme, o preto treme porque sente frio, o menino treme porque tem medo do preto, o preto treme de frio, um frio que morde os ossos, o menino bonito treme porque pensa que o preto treme de raiva, o menino branco se joga nos braços da mãe: mamãe, o preto vai me comer! (…) Deve-se ver nisso a origem da negrofobia do antilhano. No inconsciente coletivo, negro = feio, pecado, trevas, imoral. Dito de outra maneira: preto é aquele que é imoral.”. (Peles Negras Máscaras Brancas, pg. 107 e pg. 163).
 
Os predicados raciais construídos histórico-socialmente pela branquitude burguesa fazem parte da estrutura que sustenta as relações de poder na nossa sociedade, principalmente no âmbito do sistema penal. O afastamento e a distância espacial entre Magistrado e pessoa presa é um sintoma disso.
 
Citando outro ensinamento que revela a estrutura racista da fragmentação territorial do poder, Sir Alan Burns conceituou: “O preconceito de cor nada mais é do que a raiva irracional de uma raça por outra, o desprezo dos povos fortes e ricos por aqueles que eles consideram inferiores, e depois o amargo ressentimento daqueles que foram oprimidos e freqüentemente injuriados. Como a cor é o sinal exterior mais visível da raça, ela tornou-se o critério através do qual os homens são julgados, sem se levar em conta as suas aquisições educativas e sociais. As raças de pele clara terminaram desprezando as raças de pele escura e estas se recusam a continuar aceitando a condição modesta que lhes pretendem impor”. (Le préjugé de race et de couleur, Payot, p. 14, extraído de Peles Negras Máscaras Brancas, pg. 110).
 
A inspeção remota ou virtual como paradigma institucional, nesse sentido, revela os sintomas basilares da negrofobia e do racismo antinegro da branquitude detentora do poder, que se recusa a visitar presencialmente unidades prisionais e a dividir o mesmo espaço com pessoas pretas.
 
Para acabar com a tortura no cárcere e o racismo estrutural que dialeticamente alimenta o sistema penal, portanto, não há outra saída que não seja a destruição completa desses espaços de poder enraizadamente negrofóbicos e a emancipação das pessoas pretas encarceradas.
 
Enquanto poderes instituídos sob as bases dessa estrutura racista, Judiciário e Ministério Público serão sempre incapazes de realizarem qualquer monitoramento e combate à tortura no cárcere. Uma fiscalização externa e poderosa, feita pela sociedade civil comprometida com a luta anti-cárcere, teria mais impacto para minimizar a violência carcerária produzida pelo Estado. Mas a superação dessa política cruel e mortífera só se concretizará quando alcançarmos um mundo sem prisões.
 
*Petra Pfaller é advogada e coordenadora nacional da Pastoral Carcerária
 Mayra Balan e Lucas Gonçalves são do advogadas da Pastoral Carcerária Nacional

 

[1] “(…) os estabelecimentos prisionais e outros destinados ao recolhimento de pessoas, sujeitos à atividade correcional do juízo, serão visitados uma vez por mês”.
[2] Decisão publicada em 10 de janeiro de 2022.

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