por Marta Silva, do Tapajós de Fato
A região amazônica, conhecida por sua exuberante biodiversidade e vastidão de recursos naturais, é lar de uma relação íntima e complexa entre suas populações e as águas que permeiam esse vasto território. Ao longo de milênios, as diversas culturas indígenas, ribeirinhas e urbanas da Amazônia desenvolveram uma profunda conexão com os rios, igarapés e lagos que sustentam suas vidas de maneiras multifacetadas. As populações da região são denominadas de “povos das águas” porque vivem em estreita dependência com lagos, rios e igarapés que constituem a região.
Essa relação particular com as águas na Amazônia desempenha um papel crucial na cultura, economia e subsistência das comunidades locais.
Nas comunidades tradicionais esses recursos são de uso comum, e, em muitos casos, o acesso a ela é regulamentado pelo direito consuetudinário – costumes que são reconhecidos e partilhados coletivamente por uma comunidade, por um povo, grupo étnico ou religioso.
Cerca de 60 % das populações tradicionais indígenas e não-indígenas já estudadas (Nupaub/MMA, 2001) vivem no bioma Amazônico ( ex: caboclos/ribeirinhos, grande parte dos povos indígenas, e inúmeros grupos quilombolas).
Água como centro da vida amazônica
Na Amazônia, a água é mais do que um recurso natural; ela é a espinha dorsal da vida. Os rios amazônicos, servem como estradas líquidas que conectam as comunidades dispersas na vasta floresta, permitindo o transporte de pessoas e mercadorias. Além disso, a pesca nos rios amazônicos é uma fonte vital de proteína para muitas populações locais, constituindo uma parte essencial de suas dietas.
Ageu Rabelo, do território PAE-Juruti-Velho, da cidade de Juruti, militante do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) enfatiza a importância dos recursos naturais hídricos para os povos. “As águas para nós, povos amazônicos, ribeirinhos e comunidades tradicionais, são de suma importância para sobrevivência e subsistência dos nossos povos. Pois necessitamos delas para o deslocamento entre comunidades e municípios, para a pesca e outras atividades que realizamos no nosso dia a dia”, relata.
Na região banhada por rios e marcada pela forte presença de lagos e igarapés, muitas são as comunidades e territórios que não têm acesso, ainda, à água encanada.
“No meu território, hoje em dia, já temos acesso à água potável. Porém, não é todos os dias que temos essa água potável, dependemos dos rios diariamente”, pontua Kelvianny Oliveira, moradora da comunidade de Aninduba-região do Arapixuna, Território PAE Lago Grande, em Santarém e militante do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM).
Cada tipo de população tradicional tem uma relação específica com a água, marcada pela maior ou menor disponibilidade desse elemento e por tradições historicamente construídas. Na região, o Tapajós percorre 800 quilômetros desde o norte do Mato Grosso até chegar à cidade paraense de Santarém, onde deságua no rio Amazonas, e no percurso vai formando ilhas, praias e lagoas, que se modificam de acordo com as chuvas. O rio também é responsável por alimentar igarapés – cursos de água típicos da Amazônia que são ricos em vegetação e peixes -, e de criar as florestas de igapós – região repleta de árvores com raízes submersas onde ocorre a desova de peixes e onde vivem anfíbios típicos da região.
Fabricia Monteiro, da região do Lago Grande do município de Monte Alegre, explica como se dá a dependência da população em seu território com o rio, uma vez que características específicas da região não permitem, em algumas áreas, a possibilidade de sistemas de encanação de água. “Quanto essa questão de água encanada, isso não é realidade de todas as comunidades do meu território, né? Isso é uma realidade mais de comunidades da região de Terra Firme, são aquelas comunidades onde não enfrentam a enchente nem a vazante. Já na na realidade das comunidades de várzea não existe essa possibilidade do encanamento de água justamente porque a correnteza, a força dela não permite esse tratamento de água, esse saneamento de água, né? Então digamos que metade da população do meu território tem água encanada, mas a outra metade depende ainda da água do rio para praticamente tudo”, explica Fabricia.
Cultura e Espiritualidade
A água também desempenha um papel fundamental na cultura e na espiritualidade das populações amazônicas. Para muitos grupos indígenas, os rios e lagos são considerados sagrados, e suas crenças espirituais estão profundamente ligadas a esses corpos d’água. Os rituais de purificação e as festividades que envolvem a água são comuns, demonstrando como a relação com os recursos hídricos transcende o aspecto material.
Para os ribeirinhos, o rio é um ser vivo que apresenta comportamentos antropomórficos: dorme à noite, quando os peixes repousam nas profundezas. Ele não pode ser acordado e nesses momentos não se deve beber de sua água.
Muitos mitos e lendas foram construídos ao longo da história, embasados nessa relação entre as populações tradicionais e as águas ao longo do tempo, como do Caboclo d´água, ser benfazejo, mas que pode se tornar vingativo e que, para os ribeirinhos,pode favorecer a navegação, a pesca e a lavoura de seus protegidos, mas também, quando ofendido, pode causar naufrágios de canoas, pesca infrutífera e queda de barrancos.
Economia e Sustentabilidade
Do ponto de vista econômico, a Amazônia possui uma riqueza incalculável em recursos hídricos. A água é usada para irrigação de cultivos, geração de energia hidrelétrica, extração mineral e, cada vez mais, para o turismo. No entanto, seria crucial que essas atividades fossem realizadas de maneira responsável e sustentável, a fim de preservar o equilíbrio delicado do ecossistema amazônico e garantir o bem-estar das populações locais a longo prazo.
Contudo, isso não é uma realidade, como aponta Kelvianny Oliveira quando fala da mineração que ameaça o seu território. “A mineração tem sido uma grande ameaça ao meu território, onde o monstruoso capital pretende explorar minérios, sem levar em conta a vida do meu povo. A mineração manipula o solo, mata nossas nascentes, saqueia nossos minérios e polui nossas águas”.
Kelvianny Oliveira, moradora da Comunidade de Aninduba-região do Arapixuna, Território PAE Lago Grande / Foto: arquivo pessoal
Kelvianny Oliveira também relembra, que as mineradoras vêm atuando há um bom tempo na região, e enfatiza que isso impacta diretamente e indiretamente as populações.
“No meu território não está sendo minerado, mas nos municípios vizinhos as mineradoras vem atuando há um bom tempo, isso vem nos impactando diariamente: mudanças climáticas, poluição das águas, animais morrendo, aparecimentos de doenças. Em uma pesquisa da UFOPA foi apontado que os peixes estão contaminados com mercúrio e a pesca é a nossa principal fonte de renda”.
Segurança alimentar
Fabricia, que reside e é natural de uma região pesqueira, enfatiza a importância da defesa das águas da Amazônia e da pesca para as populações atuais e para as futuras gerações.
“Nós mulheres, a gente puxa muito aquela preocupação assim do cuidar pra ter sempre. Eu não sou diferente, eu não penso diferente disso, né? A gente sempre pensa em cuidar, em defender territórios pesqueiros, em colocar ordenamento na questão da exploração, pra que não somente eu tenha, mas que as nossas gerações futuras venham ter a abundância que a gente tem. A cada ano que passa tudo fica mais difícil, então nós somos pescadores, filhos de pescadores, se a gente não garante uma segurança alimentar a partir do meio que a gente vive a gente deixa uma futura geração aí fragilizada por essa questão que é primordial, um alimento de qualidade. Então eu sou uma defensora, de ordem, de ordenamento pesqueiro e faço parte de uma organização que luta muito em defesa disso, que é a nossa aqui da região do Lago Grande de Monte Alegre”, pontua.
Desafios e ameaças
Apesar da importância das águas para as populações amazônicas, elas enfrentam desafios significativos. A poluição, a degradação ambiental e as mudanças climáticas ameaçam a qualidade e a disponibilidade da água na região. Além disso, projetos de desenvolvimento desordenados, como a construção de barragens sem avaliação adequada de impacto ambiental, podem ter efeitos devastadores sobre os ecossistemas fluviais e as comunidades que deles dependem.
Ageu relata situação parecida com a relatada por Kelvianny que ocorre no PAE Juruti-Velho. “Com a presença da mineração no nosso território, somos impactados diretamente pois a qualidade da água não é mais a mesma, os pescados já aparecem com modificações para o consumo da população e isso tudo causa uma grande insegurança dos povos ali existentes para com o uso da água contaminada pelos projetos mineradores”.
Além da mineração, o uso de agrotóxicos nas grandes plantações de milho e soja e a instalação de portos ao longo do rio Tapajós, são problemas que afetam os recursos naturais hídricos da região do Tapajós e afetam, também, a relação das populações com as águas.
Campanha em prol da Amazônia / Foto arquivo pessoal Marlon Rebelo
Nesse contexto, também há os impactos ligados às mudanças climáticas. Além disso, eventos climáticos extremos, como secas prolongadas e chuvas intensas, podem alterar os padrões de fluxo dos rios, causando inundações e, posteriormente, escassez de água. Realidade já percebida nas áreas de várzeas, como relata Fabricia.
“No contexto da mudança climática eu acredito que não somos só nós afetados, o mundo inteiro é afetado por isso. A gente consegue se adequar às duas fases do ano, que pra gente é enchente e vazante. Com relação à mudança climática em si o que a gente percebe é que a cada ano que passa, principalmente na vazante, o nível da água baixa bastante. Então fica um nível assim muito, muito baixo e distante e quando é na enchente varia muito, tem enchente que enche um pouco mais, enchente que enche um pouco menos, mas que de alguma forma não deixa de ser uma situação assim desfavorável pra gente”.
Os povos das águas sem as águas
A relação das populações amazônicas com as águas é profundamente enraizada em sua história, cultura e sobrevivência. De acordo com o trabalho de Antônio Carlos Diegues, apresentado no I Encontro Internacional: Governança da Água, em São Paulo, em 2007, a principal característica do regime fluvial amazônico é a raridade de uma estiagem longa e acentuada e de uma importante estação de cheias que se prolonga por quatro a cinco meses, segundo as várias sub-regiões inundando várzeas, conformando novas redes de igarapés, furos, paranás e lagos de várzea.
As médias pluviométricas anuais giram em torno de 2000 a 3.000 mm. As chuvas distribuem-se ao longo do ano, sendo mais abundantes entre janeiro e março, enquanto que o período de estiagem ocorre entre agosto e novembro. Aí existem as florestas periodicamente inundadas como as matas de várzea, igapós, florestas de planície inundável, manguezais e matas de várzeas e marés e florestas permanentemente inundadas, como as florestas de pântano, igapós permanentes além de outros tipos de florestas não inundáveis.
Logo, a água desempenha um papel central na vida cotidiana, na espiritualidade e na economia dessas comunidades. No entanto, é essencial reconhecer e abordar os desafios que ameaçam a integridade desse precioso recurso e as formas de vida que dependem dele.
Com os relatos de algumas pessoas que têm essa relação mais direta com as águas, acaba ficando notório o quanto esse contato está ameaçado ou já está afetado. Em um lugar como a Amazônia, existir pessoas sem acesso à água é no mínimo irônico e inadmissível, principalmente pelo fato de em alguns casos essa falta é resultado dos impactos de grandes projetos que visam apenas o lucro.
As águas do rio são ruas, caminho, saber,lazer, relógio, mãe provedora, amparo. A preservação da Amazônia e de suas águas requer uma abordagem sustentável e colaborativa que respeite tanto o meio ambiente quanto as comunidades e aldeias que vivem em harmonia. Somente assim poderemos garantir um futuro saudável e próspero para a região e suas populações.