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Abril Amarelo, em Santa Catarina, incentiva formação de milícias e trata movimento sociais como patologia

Lei sancionada pelo governador Jorginho Mello diz querer conscientizar sobre a importância da propriedade privada. Num estado onde cresce a violência no campo, medida ameaça reivindicações populares

Jefferson Adriano Maier - OcupaSC

7 min

Foto: Julio Cavalheiro / Arquivo / SECOM

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Em 12 de fevereiro de 2025, o Governo de Santa Catarina sancionou a lei 19.226/2025 contra as ditas “invasões de terra”. Trata-se do ‘Abril Amarelo’ em defesa da propriedade privada. O texto fala da união entre proprietários e produtores para “montar acampamento permanente para evitar a invasão”, e em promover campanhas para conscientização e valorização da propriedade privada.

A iniciativa é uma clara tentativa de se opor ao Abril Vermelho, como é conhecida a campanha do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) que ocorre no mesmo mês. Realizada para fazer valer a reforma agrária,  inclui ações como ocupações de terras e outras reivindicações do movimento.

No Instagram, governo de Santa Catarina comemora aprovação de nova lei. Medida pode incentivar formação de milícias (Reprodução)

No Instagram, governo de Santa Catarina comemora aprovação de nova lei. Medida pode incentivar formação de milícias (Reprodução)

O projeto surge em um momento em que a política do governador Jorginho Mello (PL) se baseia, em grande medida, em adotar uma postura cada vez mais radicalizada de extrema-direita. Isso inclui desde reuniões frequentes com o presidente da Argentina, Javier Milei, e a defesa de Bolsonaro e dos golpistas de 8 de janeiro, até tentativas desesperadas de “esconder” do restante do país as fortes chuvas que atingiram as cidades catarinenses no início do ano, além da remoção das informações sobre a qualidade da água das praias para não prejudicar o setor turístico durante a alta temporada.

O fato é que a Santa Catarina de Jorginho é muito diferente da vivida pelos mais de 7,6 milhões de catarinenses. O que temos é um cenário de crescimento da violência no campo e nas cidades em operações de despejo, em paralelo ao aumento da desigualdade de renda, e explosão do valor do metro quadrado e dos aluguéis. Nosso Estado abriu o ano de 2025 com quatro cidades entre as cinco com os maiores valores do metro quadrado no país – todas elas no litoral, conforme nos informa a primeira divulgação da FipeZap de 2025. Ainda, a capital Florianópolis aparece como a 5a cidade com o valor do metro quadrado para aluguel mais caro do país na mesma pesquisa.

Diferentemente do governo, o MST, assim como os movimentos de moradia e lutas territoriais em geral, trabalham e muito. Em nosso Estado, o MST mobiliza mais de 6 mil famílias, que vivem em mais de 140 assentamentos. São mais de 70 mil hectares voltados à agroecologia, educação popular e à construção de outro projeto de sociedade, os territórios ainda contam com 26 escolas, e 8 cooperativas, fora outros empreendimentos, como rádios comunitárias, projetos de saúde, feiras, entre outros[1]. Tudo isso com oposição direta de Jorginho, que se recusa a contratar trabalhadores essenciais para as escolas do campo, como ocorreu na Escola 25 de Maio, no assentamento Vitória da Conquista, em Fraiburgo[2].

Ao mesmo tempo, os povos indígenas que defendem o bioma mais desmatado desde a colonização, a Mata Atlântica, seguem tendo suas terras invadidas, griladas e sua existência ameaçada com apoio do mesmo governo. As violências na esfera Estadual incluem desde a defesa da falida tese do Marco Temporal que recentemente repercutiu na suspensão da demarcação da T.I. Toldo Imbu, em Abelardo Luz, até ações diretas, como o fechamento das comportas da barragem de Taió durante as fortes chuvas de outubro de 2023, e com isso causando a inundação da T.I. Ibirama-Laklãnõ, que já é atacada pela tese do marco há mais de década.

Mas não é só contra os indígenas que o Governo do Estado ocupa um lugar privilegiado como causador de tragédias. Jorginho Mello também conduz uma política contra pequenos agricultores e trabalhadores urbanos periféricos.

Nos últimos anos, só em Florianópolis ocorreram dois rompimentos de estruturas da empresa estadual de saneamento, sucateada pela ideologia do estado mínimo. O primeiro deles atingiu cerca de 75 casas vizinhas à Lagoa da Conceição que também foi poluída pelas águas que verteram da estação de tratamento de esgoto em 2021. E o segundo aconteceu em 2023, com o rompimento de um reservatório no bairro Monte Cristo, inundando mais de 100 edificações e afetando cerca de 200 famílias [3].

Além disso, a UHE São Roque construída sobre os Rios Canoas e Marombas, localizada no município de Brunópolis em uma área que afeta ainda outros 2 municípios da região, recebe pouca atenção do governador. Contrariando o parecer de técnicos do Instituto Estadual do Meio Ambiente (IMA), a empresa Engevix encheu o reservatório da usina sem o cumprimento do seu plano básico ambiental, e inundou uma área de mais de 5mil hectares, impactando cerca de 1,3 mil pessoas, 700 famílias, segundo o MPF[4]. Um incidente que, por conta das pequenas dimensões dos municípios, tem uma dimensão gigantesca na região onde se concentram os piores IDHs do Estado. De 2022 até aqui, o Governo do Estado ignora as reivindicações dos pequenos agricultores atingidos por barragens, mesmo nos pedidos mais básicos, como o fornecimento de energia e transporte, ou reparação justa pela perda de suas culturas e plantações.

Todos os exemplos acima citam setores importantíssimos do nosso povo, que dão contribuições enormes ao nosso Estado. Seja colocando alimentos nas mesas das casas e escolas, seja trabalhando dia e noite nas cidades “que mais crescem no país” (como quer o marketing de praticamente todo o nosso litoral), ou na preservação dos saberes e culturas originárias, e do meio ambiente. Nenhum desses grupos terá os seus direitos atendidos pelo Abril Amarelo, e dificilmente serão citados nas programações que o Governo criará no mês. E no meio dos ataques aos movimentos sociais que louvam a propriedade privada, nos perguntamos: por que o Governo do Estado quer atacar quem produz e trabalha? Afinal, é disso que se trata a nova comemoração no calendário.

O projeto de lei carrega mais do que uma cor, é parte de uma luta cultural que se opõe a símbolos e ações produzidos pelos movimentos sociais, que se tornaram conhecidos e que ecoam nos quatro cantos do país como sinônimos de defesa do trabalho, do reconhecimento e da dignidade humana, e também da liberdade. A liberdade real que é associada com a garantia de direitos, e não a liberdade econômica dos liberais que conviveu por séculos com a escravização e a colonização ao redor do mundo.

A associação do mês e cor – recorrente em campanhas de saúde – é mobilizada (coincidentemente ou não) ao passo em que políticos e gestores públicos defensores do status quo se colocam como especialistas em curar as “dores” dos cidadãos. Um jargão importado novamente da saúde, que é recheado de charlatanismos que se torna cada vez mais comum no mundo empresarial, e agora aparece também na gestão pública, especialmente quando falamos do planejamento urbano e rural.

Ao tratar os movimentos sociais como uma patologia, o que Jorginho quer é anular o reconhecimento que as classes subalternas adquiriram a duras penas através das lutas sociais, que se deram principalmente contra a lógica mercadológica da terra. O projeto atenta inclusive contra a existência dos movimentos quando apoia a formação de milícias no campo, e afeta também o direito de os trabalhadores poderem morar em boas localizações nas cidades, que muitas vezes se dá através das ocupações. Além dos graves contornos inconstitucionais que a lei possui quando sacraliza a propriedade privada em detrimento do cumprimento da função social conforme a carta de 1988.


Jefferson Adriano Maier é pesquisador visitante na Università Degli Studi di Urbino (CAPES/PDSE), doutorando em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina, mestre em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental, pela Universidade do Estado de Santa Catarina, comunicador popular e coordenador do Observatório de Comunidades e Periferias de Santa Catarina (OcupaSC).

[1]https://mst.org.br/2020/05/27/mst-em-santa-catarina-comemora-35-anos-com-atos-de-solidariedade/
[2]https://mst.org.br/2025/02/25/fechar-a-escola-25-de-maio-e-crime/
[3]https://mab.org.br/2023/09/06/nota-mab-se-solidariza-com-a-comunidade-de-monte-cristo/#
[4]https://mab.org.br/2024/03/05/atingidos-pela-uhe-sao-roque-sc-exigem-solucao-para-reivindicacoes-pendentes-no-processo-de-reparacao/#

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