Numa manhã de maio de 1928, a bióloga brasileira Bertha Lutz decidiu tomar um avião para sobrevoar a cidade do Rio de Janeiro. Àquela altura, Bertha ocupava o cargo de secretária do Museu Nacional, uma das instituições de pesquisa de maior prestígio no Brasil. Carregava o mérito de ser a primeira mulher a assumir o posto, para o qual fora contratada pouco depois de voltar da França, onde cursara faculdade. Da Europa, trouxera ao menos dois artigos importantes : um diploma da Universidade de Paris, e as ideias do movimento sufragista inglês.
Com as feministas europeias, Bertha aprendera que era possível organizar grupos de mulheres para exigir espaço e voz na política institucional. O voo daquela manhã fazia parte de seus planos de transpor as mobilizações inglesas para o Brasil.
Seu avião salpicou a cidade com panfletos: “As mulheres já podem votar em trinta países e em um estado brasileiro. Por que não hão de votar em todo o Brasil?”, provocavam os informes.
A afirmação (quase conspiratória) do jornal soa como um exagero: naquele início de século, feminismo era ainda um termo pouco conhecido por aqui. O pleito de Bertha (ela era filha do biólogo Adolfo Lutz, especialista em doenças tropicais) e de suas companheiras resultaria no Código eleitoral de 1932, o primeiro a assegurar direito ao voto às mulheres brasileiras — desde que fossem assalariadas e alfabetizadas. Marcaria também as origens do movimento feminista no país.
Ao longo dos quase 100 anos que se seguiram, as organizações de mulheres se expandiram e se diversificaram. Mudaram suas pautas prioritárias e os rostos de suas lideranças. Mudaram também suas formas de organização — da clandestinidade durante os anos de ditadura militar à proximidade de alguns grupos com o governo federal no inícios dos anos 2000.
“O movimento feminista brasileiro ao longo século XX era muito branco e intelectualizado”, resume a professora Celi Pinto, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e autora de “Uma História do Feminismo no Brasil” (Fundação Perseu Abramo/ 2003). “Hoje, vivemos a emergência do feminismo negro, do feminismo LBTI+ e de grupos mais jovens. É um movimento mais fragmentado e diverso”.
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Às vésperas do Dia Internacional da Mulher, celebrado neste domingo (8) a Brasil de Direitos convidou três feministas, de diferentes vertentes e épocas, para refletir sobre o saldo do movimento brasileiro. Juntas, elas selecionaram algumas daquelas que consideram ser as principais conquistas do movimento de mulheres no país. São leis e avanços de mentalidade que contribuíram para a formação de um país mais justo, para mulheres e homens. E que fizeram o Brasil mudar à medida em que o próprio feminismo se reinventava.
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A evolução do movimento acompanhou as mudanças políticas no Brasil dos últimos 100 anos, e ajudou a desenhá-las. Na avaliação de Celi, o feminismo brasileiro no século XX se divide em pelo menos dois momentos. O primeiro deles começa com Bertha Lutz e sua luta pelo sufrágio feminino. O segundo transcorre durante a ditadura militar, sobretudo a partir de 1975. Exiladas na Europa, intelectuais brasileiras se reuniam em grupos para discutir os direitos das mulheres, e como conquistá-los.
No Brasil, coletivos se organizavam clandestinamente, e começava a surgir uma importante imprensa feminista. Pautas específicas, como o direito ao aborto seguro e o combate a violência doméstica, se misturavam a cobranças mais gerais, pelo fim da ditadura e pela redemocratização do país: “Pouco se fala nisso hoje em dia, mas as feministas foram as primeiras a ir para a rua durante a ditadura militar”, diz Maria Amelia Teles, a Amelinha. Uma das fundadoras da União de Mulheres do Município de São Paulo, Amelinha foi perseguida e torturada durante o regime militar. Nos anos 1970, foi uma das responsáveis por publicar o jornal “Brasil Mulher”.
A publicação abordava temas atuais ainda hoje: dos direitos das trabalhadoras domésticas à criação de políticas de saúde específicas para o público feminino. O primeiro número estampava, na capa, a fotografia de uma mulher jovem, negra e grávida.
As mobilizações de mulheres continuaram nos anos que se seguiram. À época da constituinte, no final dos anos 1980, grupos de mulheres se organizaram para que a Carta contemplasse reivindicações caras ao movimento: “Não havia uma única sessão da constituinte sem que houvesse ao menos uma representante de movimentos feministas”, diz Celi. A mobilização fez a Constituição brasileira de 1988 ficar célebre como uma daquelas que mais garantem direitos às mulheres em todo o mundo.
Desde então, e já na democracia, o movimento de mulheres acumulou conquistas e mudanças. Na avaliação de Celi e Amelinha, o feminismo brasileiro chega a 2020 fortalecido: “Há um número cada vez maior de grupos de jovens. E surgem ‘coletivas’, no feminino, que questionam inclusive a linguagem, repensando a forma de se comunicar”, conta Amelinha.
Para Renata prado, da Frente Nacional de Mulheres no Funk, a internet e as redes sociais foram grandes responsáveis por disseminar essas discussões: “Há uma consciência maior do que significa empoderamento feminino e da importância dessas pautas”, afirma.
O fenômeno deu fôlego a grupos de mulheres que, hoje, se formam nas periferias ou longe dos grandes centros. Ela pondera, no entanto, que ainda falta que os trabalhos desses grupos ganhem destaque: “As mulheres das periferias falam sobre feminismo. Mas não são elas, ainda, que pautam o movimento“.
O feminismo brasileiro chega à nova década, também, com uma sequência de desafios diante de si. O Brasil de hoje acumula uma das maiores taxas de feminicídio do mundo e, ano a ano, aumenta o número de mulheres brasileiras vítimas de estupro. Reivindicação antiga, o direito ao aborto é ainda limitado: e surgem projetos de lei que pretendem restringir o acesso ao procedimento mesmo naqueles casos em que, hoje, ele é legal, como nas hipóteses de estupro ou de feto anencéfalo.
Diante de retrocessos e desafios, a lista abaixo propõe celebrar conquistas e avanços importantes. Ela é um recorte parcial. Na sua avaliação, o que faltou ser lembrado? Deixe sua contribuição nos comentários.
Lei Maria da Penha
Sancionada em 2006, a lei Maria da Penha cria mecanismo para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Foi resultado de uma ampla mobilização da sociedade civil organizada e foi também uma resposta do Estado brasileiro a um antigo pleito: de que a violência doméstica têm impacto social e deve ser punida. As mobilizações para visibilizar essa forma de agressão ganham fôlego no Brasil na década de 1980. Foi quando surgiu o SOS- mulher: grupos que faziam atendimento e prestavam assessoria jurídica voluntária a mulheres vítimas de violência. Até ali ( e ainda hoje) perdurava a ideia de que conflitos domésticos deveriam ser tratados como questões particulares, e que era razoável absolver um homem que agredisse ou matasse a esposa para defender a própria honra.
A lei leva o nome da biofarmacêutica Maria da Penha. Por 23 anos, ela foi agredida pelo marido, e sobreviveu a duas tentativas de homicídio. A violência lhe deixou paraplégica. Por quase duas décadas, Maria da Penha buscou que seu agressor fosse punido. Em 1998, o caso chegou a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Estado brasileiro por negligência. Ficou estabelecido que o país deveria criar políticas públicas para atender e proteger mulheres que passassem por situações semelhantes a dela.
Lei do feminicídio
Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) a taxa de feminicídios no Brasil é a quinta maior do mundo: são 4,8 mulheres mortas a cada 100 mil. Sancionada em 2015, a Lei do Feminicídio foi considerada um passo importante por reconhecer a ocorrência de crimes motivadas por questões de gênero: mulheres que foram mortas simplesmente por serem mulheres. A medida alterou o Código Penal para introduzir o feminicídio como um agravante do crime de homicídio. A pena pode variar entre 12 e 30 anos de prisão.
Políticas públicas de educação infantil
Por anos, Amelinha Teles defendeu que o acesso à educação infantil – e a creches em tempo integral – é uma reivindicação de caráter antipatriarcal. A ideia subjacente é de que a educação das crianças não deve ser entendida como uma responsabilidade das mulheres, obrigadas a se desdobrar para equilibrar vida profissional e cuidados familiares. Longe disso, deve ser vista como um dever da sociedade – e uma preocupação que cabe também aos homens: “Mas os homens nunca lutariam por isso. Coube às feministas assumir essa bandeira”, afirma. As mobilizações pela construção de creches começaram ainda nos anos 1970. Elas culminariam no artigo 208 da Constituição federal de 1988, segundo o qual o acesso à creche é direito de todas as crianças brasileiras.
Mulheres em posição de destaque e com poder econômico
Quando as ideias feministas começaram a ser discutidas no Brasil, no início do século XX, o país era iminentemente agrário e patriarcal. Número reduzido de mulheres exerciam profissões com prestígio social e, mesmo depois de conquistado o direito ao voto, a presença de mulheres na política se manteve reduzida: entre 1932 e 1963, apenas quatro ocuparam assentos na Câmara dos deputados. Hoje, ainda que as mulheres continuem subrepresentadas na política, há 77 deputadas no legislativo federal.
Metade da população feminina brasileira trabalha, e 25% dos postos de comando, no setor público e privado, são ocupados por mulheres. Ainda é pouco. Mesmo assim, a conquista desses espaços exigiu mudanças jurídicas e culturais importantes:
“Quando eu vejo a Marta jogando futebol, eu digo que também participei dessa luta, para tornar isso possível”, diz Amelinha Teles.
A presença de mulheres e feministas em posição de destaque ainda tem o mérito de chamar a atenção para pautas e discussões que, de outra forma, não seriam abordadas:
“É muito importante ter uma mulher negra, como a Ludmilla, fazendo sucesso, por exemplo”, lembra Renata Prado, da Frente Nacional de Mulheres no Funk. “Além de inspirar outras mulheres, ela conseguiu fazer com que as pessoas refletissem sobre relacionamentos lésbicos. É um avanço para as mulheres e para as pautas LGBTI+“. São diálogos que abrem espaço para novos avanços culturais, defende Renata.
A diversificação do movimento feminista
Renata Prado contraria a ideia de que o feminismo brasileiro começa com Bertha Lutz e suas companheiras: “As mulheres negras e periféricas do Brasil sempre foram feministas, ainda que não soubessem disso”, afirma a ativista. “A maioria delas sempre trabalhou. Muitas são chefes de família”, completa. Segundo a professora Celi Pinto, o movimento feminista organizado do século XX era muito “branco e elitizado”. Deixava de lado, por isso, reivindicações e problemas que diziam respeito às mulheres negras, pobres ou distantes dos círculos da elite. O quadro começou a ser alterado nas últimas décadas, com o surgimento de vozes do feminismo negro, LBTI+ ou de diferentes vertentes.
FOTO DE TOPO: Marcha Mundial de Mulheres, no Rio de Janeiro em 2016 / Mídia Ninja