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“As nossas filhas não podem mais ser trabalhadoras domésticas”

Ex-empregada doméstica, a assistente social Ana Leone diz querer que o trabalho doméstico seja abolido, e defende o acesso à cultura e educação como instrumento de emancipação

Fabio Leon

12 min

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Há pouco mais de quatro anos, a assistente social Ana Leone comanda um programa na rádio Ativa 98,7. No Antenada com Ana Leone, discute políticas públicas. Questões que importam, sobretudo, para as mulheres negras e periféricas que vivem na Baixada Fluminense.

Trata-se de uma realidade que ela conhece bem. Nascida no Recôncavo Baiano, Ana se mudou  para o Rio de Janeiro ainda na adolescência. Em Duque de Caxias, trabalhou como empregada doméstica, antes de começar a cursar assistência social. A partir dali, mesclou sua trajetória intelectual à sua movimentação enquanto militante.  Ficou fascinada com a história dos sindicatos pelo mundo, e passou a conhecer coletivos e organizações de Direitos Humanos na Baixada, entre eles o movimento negro e de mulheres.

O convite para virar apresentadora de rádio viria em 2018, às vésperas das eleições presidenciais daquele ano. Desde então, diz ela, já passaram pelo seu microfone professores, militantes, ativistas de diferentes causas e matizes. Mas a questão do trabalho domésticos nunca escapou do seu radar.

Em 2022, Ana lançou o certificado Laudelina de Campos Mello. A homenagem faz referência a uma das precursoras na luta pode direitos das trabalhadoras domésticas. O prêmio é concedido, justamente, a trabalhadoras dessa categoria. “Nós mulheres negras somos filhas, sobrinhas, netas, tataranetas dessas trabalhadoras domésticas. Porque quando lá atrás “termina” a escravidão, essas mulheres saíram da senzala para ir a Casa Grande trabalhar em troca de comida, de um lugar para ficar e roupa”, diz Ana. Nessa entrevista, ela explica por que acredita que, numa sociedade avançada, o trabalho doméstico será abolido.  “Eu quero que essa profissão termine e espero que daqui a 30, 40 anos, as pessoas saibam limpar elas mesmas as suas casas e que façam as suas comidas”.

Fórum Grita Baixada: Você mora numa cidade, Duque de Caxias, que é muito conhecida por apresentar deficiências de várias políticas orquestradas pelo poder público, mas ao mesmo tempo é um território com vários exemplos de resistências a essas políticas, através de seus movimentos, coletivos e organizações. Como é conviver com essa polarização?

Ana Leone: O município é rico, mas a população não usufrui de sua riqueza, que poderia ser revertida para o trabalhador caxiense e as políticas públicas locais. Temos problemas de moradia, saúde pública, educação, cultura, embora Caxias tenha um polo cultural muito efervescente, mas seus governantes nunca deram importância. Os movimentos sociais são bastante reconhecidos em todo o Estado, temos um sindicato dos professores que é muito atuante por aqui, assim como o sindicato dos enfermeiros. Se não fossem por essas organizações, estaríamos numa situação muito pior. O município de Duque de Caxias é o segundo mais violento para as mulheres em todo o Estado do Rio de Janeiro. Precisamos estar o tempo todo nessa luta incessante. Os movimentos sociais daqui estão em uma permanente quebra de braço com o poder público e sofrem represálias. Os colegas da Enfermagem já sofreram ameaças, de ter que sair do município para garantir as suas vidas. Nós sentimos muito medo, mas não desistimos. Temos muitas ameaças às nossas companheiras de religião de matriz africana por causa do racismo religioso. Temos mulheres candidatas a vereadora ou a deputada federal ou estadual que possuem ligações com esse tipo de violência. Eu tenho a impressão de que se você é militante na Baixada Fluminense, você sofre mais possibilidades de represálias, principalmente em Duque de Caxias, onde a cultura do coronelismo é muito forte, há muita violência urbana também. Na câmara municipal de Duque de Caxias não tem ninguém do nosso lado, ela é majoritariamente conservadora. Tínhamos quatro mulheres, agora são apenas três, mas nenhuma delas nos representa. Todas as questões de gênero que estavam no Plano Municipal de Políticas para as Mulheres de Duque de Caxias foram banidas pelas vereadoras que lá estão, inclusive pela presidenta da Câmara na época.

Você comanda há quatro anos, o programa “Antenada com Ana Leone”, na rádio Ativa 98,7 FM, e tem trazido convidadas muito representativas no que diz respeito a ser mulher, negra e periférica na Baixada Fluminense e no Brasil. Essas conversas têm trazido mais esperança, receio ou pesar pra você?  

Eu recebi esse convite do Nilson Venâncio, sindicalista, anistiado político, preso pela ditadura militar, que comprou a rádio de um deputado estadual. Ele já tinha os seus 80 e poucos anos. Quando eu estava na faculdade, eles me chamavam para algumas participações em entrevistas. A rádio estava sendo reestruturada e me perguntaram se que não gostaria de ter um programa só meu. Eu questionei dizendo que não era comunicadora, radialista. Então eles disseram assim: “o importante você tem, que é o conhecimento e a representatividade”. O programa já estava pronto, era o “Mulher Ativa”. No início, eu fiquei muito desmotivada porque eles queriam que eu falasse sobre dicas de culinária, beleza, esse tipo de coisa. Aceitei em 2018, na época que o Bolsonaro tinha sido eleito. E eu me perguntava: “caramba, nós nos mobilizamos tanto nas ruas, como esse homem venceu?”. E estou falando de mulheres, negros, favelados, pessoas de religiões de matriz africana que votaram nele. Nós não fizemos o nosso dever de casa. Aí me lembrei do convite que me foi feito há dois anos pra fazer o programa na rádio. Eles me disseram que eu poderia fazer minhas pautas, todas com enfoque em políticas públicas e sociais, e bolar um nome para o programa e assim nasceu o “Antenada com Ana Leone”. A primeira pauta envolveu a questão dos servidores públicos da educação aqui de Caxias que estavam passando por uma situação difícil por causa de atrasos no pagamento. Minha primeira convidada foi a Lenir Claudino, ativista do Movimento Negro Unificado. Chamei muitas ativistas, professoras, alunas e alunos, tinha total autonomia sobre o programa. Cada pauta que eu apresento é um aprendizado para mim, trato de temas diversos, não apenas da negritude. Temos tratado bastante sobre as questões que abordam a LGBTQIA+fobia. Tenho muita sorte pois quase ninguém nunca recusou a participar do meu programa, só quando há muito conflito de agendas mesmo. Em 27 de abril vamos completar 4 anos de programa.

Ano passado, por ocasião do Dia das Trabalhadoras Domésticas, e comemorando três anos do seu programa, você homenageou as convidadas com o certificado Laudelina de Campos Mello, uma das precursoras da luta das trabalhadoras domésticas. O que essa subalternização advinda diretamente da escravização diz sobre o trabalho doméstico ainda ser a única fonte de renda para milhares de mulheres na Baixada Fluminense?

Como disse, o programa foi ao ar pela primeira vez em 27 de abril de 2019. Mas eu não sabia que caía justamente no Dia da Trabalhadora Doméstica, mesmo eu vindo dessa profissão. Só fui saber dois anos depois. Então, eu decidi fazer um programa homenageando a categoria. Chamei as precursoras dessa luta. Elas ainda nem tinham um sindicato, mas uma associação das trabalhadoras domésticas. Uma delas é a Nair Jane, que hoje está com 94 anos e também chamei a atual presidenta que é a Maria Isabel Monteiro. Criar esse certificado, tendo o nome de Laudelina, foi uma forma de referenciar essas mulheres. Nós mulheres negras somos filhas, sobrinhas, netas, tataranetas dessas trabalhadoras domésticas. Porque quando lá atrás “termina” a escravidão, essas mulheres saíram da senzala pra ir a Casa Grande trabalhar em troca de comida, de um lugar para ficar e roupa. Quando a gente pensa que são 7 milhões de trabalhadoras domésticas em todo o Brasil, pretas, nordestinas, faveladas, causa arrepio só de pensar como tantas são submetidas a condições de trabalho análogas à escravidão. É conviver diariamente com uma cultura da subserviência. A princesa Isabel foi praticamente obrigada a assinar a Lei Áurea, mas a grande fonte de mobilização para isso foi através dos negros e negras. São mulheres que não têm direito ao estudo, mas quando conseguem através de muito esforço, não encontram vagas no mercado de trabalho, porque elas não têm o “perfil racial adequado” para aquela empresa. Eu era diarista quando veio o anúncio da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) das Domésticas, em 2013, e trabalhava na casa de um rapaz. Tínhamos uma intimidade em que me era permitido sentar na mesa, tomar um café. A esposa já tinha levado a filha para a escola, e depois, quando ela saiu, ele me perguntou o que eu achava dessa PEC. E respondi: “acho isso incrível, maravilhoso, porque olha quanto tempo demorou pra isso acontecer, afinal somos trabalhadoras como as outras”. Então, ele me disse: “ah, mas é diferente, porque nas empresas o patrão é responsável por vários encargos e aqui é só entre eu e você.” Aí eu rebati e disse: “nos deram esse direito, então nós vamos ter esse direito. Eu trabalho aqui há quase 20 anos. Eu fui elevada para algum cargo? Fui promovida?” Ele começou a ficar vermelho, suava (risos). Ele disse que, dessa forma, muitos trabalhadores iriam perder o emprego, vê se pode? Eu quero que essa profissão termine e espero que daqui a 30, 40 anos, as pessoas saibam limpar elas mesmas as suas casas e que façam as suas comidas. Aí disse pra ele: “as filhas das minhas amigas não serão trabalhadoras domésticas, pois muitas amigas minhas estão estudando, se qualificando, entrando na universidade”. Só faltou os patrões irem às ruas e protestar contra essa PEC. O que falta é uma fiscalização, principalmente nas residências em que a empregada doméstica ainda dorme. Os horários de trabalho dela estão sendo respeitadas? Quando é a folga dela? Tem horário de almoço, de descanso? Porque antes da PEC você tinha horário de acordar, mas não tinha para dormir. A trabalhadora doméstica é babá, cozinheira, cuidadora de idoso, faxineira, camareira. Então, para não fornecerem as garantias trabalhistas, muitas pessoas contratam duas diaristas em dias alternados ou uma diarista pra ir duas vezes na semana na mesma residência. Porque se trabalhar três dias, você é obrigado a assinar carteira.

Você é uma das autoras presentes na coletânea “Nossas Linhas Negras na Pandemia”. Conte como foi essa experiência. De que trata o seu texto?

Eu tenho uma amiga, Rosana Rodrigues, que é professora de matemática, mas também poeta. Um dia fiz um programa em forma de live pelo Dia da Poesia e a convidei, além do (educador e filósofo) Renato Nogueira. Ela queria organizar um livro com depoimentos de mulheres e suas experiências pessoais na pandemia e me convidou em retribuição. A maioria das autoras escreveram poesias, mas eu quis retratar como foi a minha vida na pandemia, os trabalhos que fiz em algumas campanhas. Ela dizia que tinha que mostrar esse livro para as crianças periféricas, mostrando a elas que todos podemos ser escritores. Depois, eu me arrisquei a escrever um pouco mais sobre as minhas experiências. A Rosana disse que eu deveria escrever um livro sobre a minha vida. Eu já estou na parte em que sofri violência obstétrica quanto tive meu primeiro filho. Quero pesquisar alguns dados sobre esse assunto. Quem sabe não vira uma biografia?

Com a chegada de Lula mais uma vez à presidência da República, as pautas raciais no governo federal vão ganhar a prioridade que elas merecem? Você está otimista?

Otimista a gente sempre fica, principalmente depois desses últimos 6 anos, se contarmos com o golpe que derrubou a presidenta Dilma Roussef. Todos sabemos que o massacre começou com Temer. Quando eles tiram secretarias importantes como das mulheres, da cultura, isso nos afeta diretamente, a população negra. É através da cultura, da arte e da educação que a gente sai desse lugar de subalternização, que ganhamos oportunidades. Mesmo que a gente não saia de imediato, a gente passa a refletir, a ser mais crítico com a nossa sociedade. Em relação aos movimentos negros e a própria negritude, não podemos deixar de falar do assassinato de Marielle Franco e de Anderson Gomes (quando da transcrição e edição dessa entrevista, no dia 14 de março, completaram-se 5 anos da morte da vereadora e de seu motorista), um feminicídio político. Pouco se fez para descobrir os culpados, as investigações não foram adiante. Em relação ao Lula, temos esperança principalmente por ele ter colocado alguém como Silvio Almeida num ministério como o de Direitos Humanos, um advogado, um ativista. E Anielle Franco, na secretaria de Igualdade Racial, além de João Jorge, na presidência da Fundação Palmares. Temos uma representatividade, isso é inegável. Mas temos que, cada um, fazer a sua parte também. Agora é o momento de ninguém soltar a mão de ninguém.

Publicado originalmente no site do Fórum Grita Baixada

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