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As periferias não são chamadas a discutir a crise climática, diz Amanda Costa

Segundo a ativista, nascida na periferia de SP, lideranças populares não são bem-vindas nos debates sobre clima. Resultado são soluções que não atendem às necessidades da população

Rafael Ciscati

11 min

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A folia do carnaval ainda agitava a maioria das cidades brasileiras quando a ativista ambiental Amanda Costa lançou um alerta. “Pausa para falar de um assunto sério”, disse num vídeo destinado aos seus mais de 25 mil seguidores do Instagram. “Vocês viram o que aconteceu no litoral norte de São Paulo?”.

Àquela altura, as fortes chuvas que assolavam a região tinham provocado deslizamentos de terras que custaram a vida de 65 pessoas. Milhares ficaram desabrigadas.

No vídeo, Amanda explica que o temporal fora reflexo da crise climática – o fenômeno desencadeado pelo aumento das temperaturas médias do planeta. As mortes, no entanto, entravam na conta dos problemas sociais, e iniquidades raciais, que marcam a sociedade brasileira. “Quando acontecem desastres, são majoritariamente as famílias negras as mais afetadas”, disse.

Aos 26 anos, Amanda diz ter vocação para construir pontes. Nascida e criada no bairro da Brasilândia, periferia da zona Norte de São Paulo, ela é jovem embaixadora da Organização das Nações Unidas (ONU) e se tornou figura recorrente em fóruns sobre clima e sustentabilidade. A trajetória internacional começou em 2017, quando ela, então estudante de relações internacionais, ganhou uma bolsa para participar da Conferência do Clima da ONU, a COP 23. Junto da projeção, veio também um incômodo. “Eu ia às conferências e nunca encontrava pessoas parecidas comigo”, conta Amanda, uma mulher jovem negra.

“A periferia é invisibilizada nesses debates. E a crise climática agrava problemas que a perferia enfrenta já há anos. Desabamentos, inundações, insegurança alimentar”

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Pensando em conectar a periferia aos debates sobre o clima, Amanda tomou dois caminhos. Primeiro, recorreu às redes sociais.

Em vídeos bem-humorados, a “gata climática” discute políticas públicas, faz a cobertura de encontros internacionais e esmiúça o significado de conceitos espinhosos, como o de racismo ambiental. Toda a movimentação é acompanhada de perto por seus seguidores, as “lindezas climáticas”.

E, desde 2019, Amanda é a figura à frente do Instituto Perifa Sustentável. A organização, ela explica, atua em três frentes: produz material de comunicação de viés educativo; pressiona políticos e governantes a adotar medidas que combatam os efeitos da crise climática; e realizam ações comunitárias.

O grupo já protocolou um projeto de lei, e realizou um mapeamento que relaciona as principais necessidade da Brasilândia quando o assunto é meio ambiente — de acordo com os moradores do bairro.

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Foi justo numa conversa recente com lideranças locais que Amanda ouviu uma frase que, diz ela, resume sua visão de mundo. “Não adianta ficar só na boniteza. Tem que ter vivência”, disse Lucimeire Gomes da Silva Souza, fundadora do Instituto Caminho da Paz. “Muitas vezes, as pessoas que têm estudo ficam no desenho dos projetos”, diz Amanda.

“Mas, se a gente quiser fazer mudanças de fato,  a gente tem que ir para a periferia. Conversar com as pessoas que estão na linha de frente, falar com as lideranças, com os jovens que vivem os efeitos e consequências da crise climática”. 

 

Brasil de Direitos: O que é a crise climática?

Amanda Costa: Existe um fenômeno natural chamado efeito estufa. Ele funciona como um cobertor: impede que o calor dos raios solares saia todo da Terra. Sem ele, o planeta seria gelado. O problema é que, desde a Revolução Industrial, a humanidade lança na atmosfera gases que tornam esse cobertor mais gordinho.

Gases como o dióxido de carbono e o metano. Por causa disso, a temperatura média do planeta aumenta.  Isso gera um efeito em cadeia, provoca desequilíbrios. É por isso que nosso mundo está em colapso.

De início, nos referíamos a esse fenômeno como “aquecimento global”. Passamos a falar em mudanças climáticas e hoje falamos em “crise” ou “emergência” climática. É uma forma de ressaltar que precisamos agir com urgência. É preciso transformar o que sabemos em políticas públicas. 
 

Durante as fortes chuvas em São Sebastião, litoral norte de São Paulo, as mortes se concentraram na vila Sahy, uma comunidade pobre. As favelas e periferias serão as principais afetadas pela crise climática?

Quando a gente olha para as periferias e favelas, percebe uma ausência de políticas públicas e de direitos básicos. A crise climática agrava problemas que já vivemos. Historicamente, favelas lidaram com desabamentos, inundações, insegurança alimentar.

Antigamente, chovia no início do ano e a favela inundava. Agora, a tendência é de que chova mais. Vamos lidar com isso o ano todo. Estou na Brasilândia, fazendo um trabalho com o Perifa Sustentável. E as pessoas, aqui, já vivenciam os efeitos da emergência climática. Porque não há políticas públicas, não há planos de mitigação, planos de adaptação climática. Isso acontece por causa do racismo estrutural.

Ele faz com que pessoas como eu, que vem de onde eu venho, sejam as pessoas mais prejudicadas nesse cenário. Nas tragédias do litoral norte de São Paulo, as pessoas mais ricas deixaram o local de helicóptero.

Enquanto isso,  a população mais pobre teve que lidar com mercados praticando preços abusivos. Enquanto as pessoas mais ricas perdem patrimônio, as pessoas pobres, que moram nas periferias e favelas, muitas vezes perdem a vida.
 

É isso o racismo ambiental? Qual o significado desse conceito?

O termo racismo ambiental surgiu na década de 1980. Foi criado pelo Dr. Benjamin Franklin Chavis Jr. Ele estudava como comunidades pobres e negras, do subúrbio do EUA, eram alvo de envenenamento provocado pelo contato com lixo tóxico.

Enquanto conduzia sua pesquisa na academia, ele também ia às ruas, mobilizar a população. As discussões sobre racismo ambiental envolvem analisar como fatores históricos — como a escravidão, a colonização, a ausência de políticas habitacionais — empurraram as pessoas pretas para zonas de risco ambiental. Elas são afetadas por problemas que não afetam as pessoas brancas de elite.

Pensar em racismo ambiental é entender como pessoas parecidas comigo têm de lidar com essas estruturas sociais e, muitas vezes, ainda são consideradas culpadas pelas tragédias que enfrentam. “Desabou. Quem mandou construir a casa no morro?”. Como se houvesse outra opção.
 

Eventos climáticos extremos devem se tornar mais frequentes conforme as temperaturas do planeta aumentam. As cidades discutem como se adaptar a esse cenário?

Tivemos avanços com a mudança de governo. Saímos de um cenário de desmonte de políticas públicas e de negacionismo climático. A atual ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, trouxe um ponto a ser ressaltado: a política climática precisa ser pautada a partir de uma lente transversal.

Isso significa que “clima” não pode ser responsabilidade de apenas um setor [uma secretaria ou ministério]. Precisa ser tópico de discussão, também, de quem cuida de transportes. Quem cuida de educação precisa falar de educação ambiental e climática.

Na saúde, é preciso questionar como o aumento médio da temperatura vai afetar a saúde das populações, e como o Sistema Único de Saúde (SUS) pode adotar medidas, amparadas na ciência, para proteger os mais vulnerabilizados. Muitas dessas discussões ainda são incipientes. Há ainda outra mudança importante: o presidente Lula faz política externa.

Viu-se isso no encontro com [ o presidente do EUA, Joe] Biden, quando os EUA se tornaram doadores do Fundo Amazônia. A gente começa a ver que a política climática vai ser desenhada em nível global, nacional e logo chegará no nível das cidades. Mas ainda estamos bem atrasados. Sinto isso em conversas com tomadores de decisão em nível subnacional. Esse ainda não é um tema visto enquanto prioridade.
 

E quanto à população: a discussão sobre crise climática chega à periferia?

Aqui na Brasilândia, estamos fazendo uma articulação com algumas organizações locais — o Espaço Cultural Jardim Damasceno, o  Movimento Ousadia Popular, o Instituto Caminho da Paz. Mas as próprias lideranças climáticas mais experientes da região ainda não nominam “crise climática”.

É um termo muito técnico. Muito elitizado, próprio da academia. Eles nominam de outra forma: falam da chuva, da fome, da ausência de políticas públicas.
 

Você já disse que sua meta é falar desse tema de forma “não colonizadora”. O que isso significa?

Tempos atrás, escrevi um texto intitulado: crise climática não é coisa de homem branco rico. Lembro de uma conferência sobre mudanças climáticas à qual eu fui: o pessoal falava sobre carros elétricos quando, no Brasil, a gente tinha um cenário de 30 milhões de pessoas passando fome.

Trazer uma visão decolonizada, afrodiaspórica sobre a crise climática é entender toda a dinâmica social que nos abraça e buscar formas de ter relacionamentos horizontais entre todos os setores sociais. Minha visão se fundamenta muito no livro Uma Ecologia Decolonial, do Malcom Ferdinand. Num trecho, ele diz:

“estamos sendo envenenados e mortos contra a nossa vontade. enquanto todos no avião estão sofrendo de contaminação tóxica [ …] pessoas de cor, afroamericanos, nativo-americanos, asiáticos e brancos pobres estão recebendo uma parcela desproporcional da poluição do país. Como resultado, a incidência de doenças e mortes nessas comunidades é maior”.

Pensar de forma decolonizada é trazer para o debate essas narrativas, principalmente de pessoas que fogem do padrão heteronormativo de supremacia branca. É fazer essa galera sentar com quem está na base e entender que tem muito conhecimento na periferia, na favela. Conhecimento ancestral, tradicional, com base em vivência. Mas, muitas vezes, as pessoas de periferia são invizibilizadas.

 

Como assim?

Aqui na Brasilândia vive o sr. Quintino. Ele tem 78 anos, e é referência em meio ambiente no bairro. Há muito tempo, ele faz esse trabalho: antigamente, ia às escolas falar sobre vivência integrada à natureza. Hoje constrói uma horta comunitária no Jardim Damasceno. Quando participa das nossas reuniões, ele diz que fica muito satisfeito.

O sr. Quintino não éstá no LinkedIn falando da horta dele. Mas é uma liderança que tem muito conhecimento, muito saber, muita vivência. Muitas periferias tem essas lideranças comunitárias do campo ambiental, mas por conta do processo que a gente vive, essas lideranças são invizibilizadas. Não são convidadas para ir a uma conferência de mudanças climáticas da ONU.

Quem patrocina uma cop? A coca-cola. Qual a seriedade desses eventos? Houve uma elitização dos termos socioambientais. Em 1992, quando aconteceu a Rio 92, muitas pessoas no Rio de Janeiro não sabiam que a cidade recebia uma conferência sobre mudanças climáticas. Essa discussão está na perfiferia, mas representantes perfiféricos não são convidados para esses fóruns.

Digo até que não são bem-vindos. Porque a gente traz uma postura questionadora. A gente confronta essas soluções elitizadas que a gente sabe que não darão certo no nosso território se não tiverem o nosso envolvimento. Mas quem é o doutor, o pós-graduado que quer sentar para escutar uma liderança comunitária? Entender que tem tanto conhecimento, tanta anscestralidade, que é tão preciosa quanto um MBA no exterior.
 

O que é que se perde com essa invisibilização?

Tem uma frase da Lucimeire Gomes da Silva Souza que deveria estar num livro de poesia. Ela é fundadora do Instituto Caminho da Paz, aqui da Brasilândia. Dia desses, num dos nossos encontros, disse: “Não adianta ficar só não boniteza, tem que ter vivência”.

Muitas vezes, as pessoas que têm estudo ficam no desenho dos projetos. Mas, se a gente quer fazer algo de fato, a gente precisa viver. A gente tem que ir para a periferia. Conversar com as pessoas que estão na linha de frente, falar com as lideranças, com os jovens que vivem os efeitos e consequências da crise climática.

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