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Assassinatos de indígenas continuam na pandemia, diz liderança

Rafael Ciscati

12 min

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Em meados de julho, o líder indígena Kleber Karipuna, junto de outros ativistas, conversava com representantes da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) quando lhe fizeram um pedido que ele recebeu com espanto — e para o qual não tinha resposta pronta. Karipuna trabalha como assessor de projetos da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Desde abril, conta ele, a Coiab estuda levar à CIDH um pedido de medida cautelar contra o Estado Brasileiro. O objetivo é alertar a comunidade internacional para os casos de violência que, mesmo durante a pandemia de Covid-19, ameaçam os povos indígenas da região amazônica. E cobrar que o governo federal tome providências. 

Os casos relatados pela Coiab incluem ocorrências de assassinato e perseguição a lideranças indígenas; casos de invasão de Terras por garimpeiros e madeireiros ilegais; e situações em que as populações indígenas se veem gradativamente acuadas pelo avanço do agronegócio. Diante da multiplicidade de violações, os representantes da CIDH aconselharam o grupo a apontar um caso que fosse mais representativo, para embasar a ação. “Eu pensei: ‘ meu Deus do céu, eleger um caso como? É tanta coisa acontecendo’”, lembra Karipuna. 

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Há mais de 30 anos, a Coiab aglutina organizações indígenas de base que atuam na Amazônia brasileira. Sua rede abrange nove estados, numa região onde vivem cerca de 60% da população indígena do país.  A quem quer que pergunte, Karipuna consegue traçar um mapa, de cabeça, dos problemas que afetam algumas das principais regiões desse território extenso: “É alarmante o caso dos Yanomami, na fronteira entre Amazonas e Roraima, com mais de 20 mil garimpeiros dentro do território indígena. Há a questão madeireira, na terra indígena Ituna-itatá, no Pará; na terra indígena Karipuna e no território dos Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia. Há conflitos por madeira também na terra indígena Araribóia, no Maranhão. E o caso do Vale do Javari, que abriga a maior população de povos isolados do mundo, e sofre imensa pressão da exploração madeireira ilegal”, enumera. 

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A emergência da Covid-19, diz ele, acabou por somar-se a esse quadro já dramático. “E que é constantemente agravado pelo governo brasileiro”. Na avaliação de Karipuna, os posicionamentos do presidente Jair Bolsonaro — que já tentou regulamentar atividade minerária em terras indígenas e afirmou que “o maior latifundiário do país é o índio” – servem de estímulo a violações. “E elas não cessaram durante a quarentena”.  Já em agosto, lembrou Karipuna, o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles virou manchete ao visitar a terra indígena Munduruku, no Pará, e ser recebido por garimpeiros ilegais — cuja presença na região foi defendida por Salles. 

Karipuna também critica a condução feita pelo governo do combate à Covid-19 entre os índios da Amazônia. Segundo dados sistematizados pela Coiab e pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia  (Ipam), a taxa de mortalidade pela Covid-19 (o número de mortos a cada 100 mil habitantes) entre indígenas na região é superior à média nacional. Hoje, existe o temor de que o avanço do vírus dizime povos inteiros. Para Karipuna, os dados são reflexo de uma atuação negligente da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), o órgão do governo federal responsável por oferecer cuidados de saúde a essa população. “Desde o começo da pandemia, tentamos manter um diálogo e oferecer uma parceria à Sesai, para aumentar o alcance das ações de saúde”, diz Karipuna. “Por razões ideológicas, o governo recusa o diálogo”. 

Brasil de Direitos: Na semana passada, a Coiab questionou os dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) quanto ao número de indígenas mortos pela Covid-19 no Amazonas. Os números da Coaib costumam ser muito superiores aos da Sesai. O que explica essa discrepância?
Kléber Karipuna: A Coiab alerta para a discrepância entre esses números desde o começo da pandemia. A diferença acontece porque, primeiro, a Sesai só computa os casos dos indígenas aldeados. Os nossos dados reúnem informações sobre a população indígena onde quer que ela esteja: se na aldeia, se foi procurar tratamento nas cidades, ou se vive numa área de assentamento rural. Outro problema é que a Secretaria também não considera casos de indígenas que vivem em territórios ainda não homologados. No Brasil, há cerca de 300 terras indígenas em processo de regularização. Na Amazônia, esse número é um pouco menor. Mas é suficiente para causar distorções nos dados. 

Quais os efeitos dessa subnotificação?
O impacto é significativo porque afeta o volume de recursos destinados ao atendimento aos povos indígenas. A situação de desassistência é tão grave que, recentemente, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) ganhou uma ação no Supremo Tribunal Federal que obriga o Estado brasileiro a criar planos para deter a epidemia entre indígenas. Isso já afetou minimamente a atuação da Sesai, que passou  a ser mais presente nas terras indígenas homologadas ao longo desse último mês. Isso afetou o atendimento nas comunidades. Ainda há falhas: a ação ganha pela Apib obriga a Sesai a atender indígenas em contexto urbano, algo que ainda não acontece. 

Como receberam a decisão do STF?
Ela foi importante, primeiro, do ponto de vista do reconhecimento de uma ação movida por uma organização indígena, que foi aceita pela Suprema Corte. Já aí, temos uma vitória. Mesmo nos dias de hoje, existe uma interpretação muito forte de que os povos indígenas precisam ser tutelados. De que alguém precisa falar por nós. Isso cai por terra quando o Supremo reconhece uma representação do próprio movimento indígena. Agora, obrigado pela justiaça, o Estado brasileiro apresentou as primeiras versões de um plano de enfrentamento à pandemia. É um plano genérico. O governo brinca com a saúde indígena. Brinca de cuidar dos povos indígenas. Mas só o fato de ação movida pela Apib e suas organizações de base ter conseguido da justiça obrigar o estado a fazer isso, só esse fato já demonstra para a gente que é possível ter resultados, repostas de uma instancia do Estado. E nos dá esperança de que a luta pela defesa dos direitos indígenas tem um horizontes.

Antes da decisão no STF, a Sesai era ausente mesmo das áreas homologadas?
Na nossa avaliação, era. A secretaria poderia ter atuado com mais eficiência, para barrar a chegada do vírus Às comunidades indígenas. O governo, e a secretaria, se esquivou de construir parcerias com organizações indígenas, que poderiam ter aumentado o alcance das suas ações. A Coiab tentou essa aproximação. Entendemos que, independentemente das discordâncias com o governo, estávamos — e ainda estamos  — abertos a dialogar em busca das melhores soluções no combate ao coronavírus. Já no começo da pandemia, a Coiab adquiriu equipamentos de proteção individual (EPIs), como luvas e máscaras. Entregamos esses materiais às equipes que atuam nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dseis). Mas isso não foi feito graças a uma parceria oficial. Os materiais foram entregues por lideranças indígenas a servidores sensíveis à situação. Oficialmente, a Sesai sempre se negou a receber essas doações. A omissão da Sesai é mais dura porque não se trata de um contexto normal, vivemos uma emergência sanitária. E não foi feita uma parceria simplesmente por ideologia política do atual governo. 

A Coiab organizou ações de apoio emergencial?
Estamos apoiando a construção de barreiras de proteção aos povos indígenas. Na Amazônia, a sociedade civil organizada conseguiu avançar na direção de uma resposta à pandemia nas aldeias. Já em março, quando foi declarada a pandemia, a Coiab foi uma das primeiras organizações a agir. Criamos um plano de ação e buscar recursos com parceiros. Remanejamos recursos para as comunidades. A Coiab faz parte do conselho curador de uma linha de apoio chamada SOS Amazônia, criada pelo Fundo Brasil para proteger lideranças em risco. Esses recursos, entre outros, foram redirecionados para o combate à Covid-19. Nosso objetivo era, ao máximo, apoiar as aldeias e as comunidades que estavam começando a fazer o isolamento e não poderiam ir para a cidade. Montamos barreiras sanitárias  distribuímos cestas básicas. Tentamos, também,  oferecer suporte às ações do governo, ainda que não seja essa a nossa função. Essa é uma responsabilidade da Sesai. Mas, naquele momento, entendemos que poderíamos ajudar, fosse comprando insumos, EPIs ou medicamentos. Apesar da falta de diálogo, conseguimos avançar.  Paralelo a isso, problemas anteriores à Covid-19 persistiram durante a pandemia.

Que problemas?
A invasão das terras indígenas para exploração madeireira ilegal, a atividade de garimpeiros nas terras indígenas e  a continuidade do assassinato de lideranças – em plena pandemia, tivemos dois assassinatos. Um no Maranhão e outro em Rondônia, ambos motivados por conflitos de terras. Hoje, o recrudescimento desses conflitos é uma das nossas principais preocupações. Essas atividades ilícitas e esses casos de violência estão associados ao discurso dominante no governo atual. O discurso da flexibilização da legislação ambiental, o discurso da supressão de legislação indigenistas. São reflexo do discurso que defende a diminuição do orçamento dos órgãos responsáveis pela fiscalização do território, como a Funai. Ou do orçamento da Sesai. 

Ainda no começo desse mês, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, visitou a terra indígena Munduruku. Foi recebido por garimpeiros, cuja atividade ele defendeu. O ministério, um órgão do Estado que deveria proteger o meio ambiente, estimula o garimpo em terra indígena. Esse contexto político, e o posicionamento do governo em relação aos direitos indígenas, continua a nos preocupar, apesar da pandemia. Mesmo porque, esses invasores são também vetores do vírus. Os invasores e o governo agem independentemente da pandemia. Eles não esperam a vacina

Quais os principais focos de conflito?
Os conflitos variam a depender da região da Amazônia.  É alarmante o caso dos yanomami, na fronteira entre Amazonas e Roraima:  mais de 20 mil garimpeiros dentro do território indígena, explorando aquela região.  Há a questão madeireira, na terra indígena Ituna-itatá, no Pará; na terra indígena Karipuna e no território dos Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia. Há conflitos por madeira também na terra indígena Araribóia, no Maranhão. O caso do Maranhão é emblemático. Recentemente, houve o assassinato do Zezico Guajajara. No ano passado, foi morto o Paulo Paulino Guajajara, num caso muito noticiado internacionalmente. O caso da terra indígena Ituna Itatá é outro que preocupa. Trata-se de uma terra onde vive um povo em isolamento voluntário, e que pode ser dizimado caso avance a exploração madeireira. Em 2019, foi a terra indígena mais desmatada na Amazônia brasileira. Há, ainda, o caso do Vale do Javari, que abriga a maior população de povos isolados do mundo, e sofre imensa pressão da exploração madeireira ilegal. E há algumas outras regiões ameaçadas pelo avanço do agronegócio, sobretudo em Rondônia, Pará e Mato Grosso. As ameaças são da soja e da pecuária. São situações bem preocupantes. Isso está ligado ao projeto de desenvoliemnto desse atual governo, de exploração das TIs e que propõe abrir esses territórios a exploração econômica. Sob o discurso de que isso vai levar o desenvolvimento para a Amazônia. Estamos reunindo dados sobre essas pressões,  para entrar com uma medida cautelar junto a Organização dos Estados Americanos, referente aos povos indígenas no Brasil nesse contexto da pandemia.

Em que estágio está o trabalho nesse pedido?
Temos conversado com representantes da Comissão Internacional de Direitos Humanos da OEA. Em junho, eles nos disseram que devíamos definir um caso prioritário. E eu pensei: “Como?”. Na Amazônia, quase 95% das terras indígenas vivem algum tipo de ameaça, algum caso caso de pressão.  Seja pelo avanço da exploração de madeira, grilagem de terra, mineração ou caça ilegaI. Os casos que citei são somente os mais extremo. Há agora o caso do Vale do Javari. A terra indígena com maior número de povos em isolamento voluntário, sofrendo imensa pressão garimpeira, e com a pandemia se alastrando. Há casos emblemáticos, mas as demais terras indígenas na Amazônia também vivem ameaças. 

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