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Com mulheres negras em minoria, sistema de Justiça é antidemocrático, diz promotora

Para Lívia Vaz, fundadora do Instituto Juristas Negras, é preciso pressionar as instituições por mudanças - mesmo que isso signifique recorrer a mecanismos internacionais.

Imagem propriedade da Brasil de Direitos

Rafael Ciscati

10 min

A promotora Lívia Vaz. Com mulheres negras em minoria, sistema de Justiça não corresponde à cara do povo brasileiro (Agência Brasil)

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A promotora Lívia Vaz, do Ministério Público da Bahia, diz querer fazer Justiça com os olhos bem abertos. A ideia é se contrapor à imagem normalmente empregada para simbolizar o sistema judiciário: a deusa grega Têmis, de olhos vendados, segurando uma balança. “De olhos fechados, esse sistema de justiça não enxerga as iniquidades da realidade brasileira, e acaba contribuindo com a manutenção do status quo”, explica. 

Não enxerga, inclusive, as desigualdades que marcam sua própria composição. Mulheres negras correspondem a 28% da população brasileira. Ainda assim, dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) dão conta de que, hoje, elas são minoria nas carreiras do judiciário: no universo de juizes titulares , por exemplo, ocupam pouco mais de 4% das vagas, de acordo com o relatório Negras e Negros no Judiciário, publicado pelo CNJ com dados de 2021.

No caso do Ministério Público, elas são 6,5%. A baixa representatividade traz prejuízos para o país: “ O resultado disso é um sistema de Justiça que, por exemplo, promove a seletividade penal. O resultado disso é um país que, recentemente, foi condenado internacionalmente por racismo”, diz Lívia. 

Na interpretação dela, ao não promover diversidade étnica na composição de órgãos públicos, o Estado brasileiro fere a Constituição, e deve ser cobrado de acordo. Inclusive, se for preciso, junto a organismos internacionais. “Precisamos constranger as instituições. É um compromisso constitucional, não um favor”. 

Especialista em cotas raciais, Lívia é uma das fundadoras do Instituto Juristas Negras. A organização, criada em 2020, trabalha para apoiar as mulheres que atuam no sistema de justiça a tensionar as instituições em busca de mudança.

O grupo é resultado de uma inquietação que acompanhou Lívia por anos: ela trabalha no Ministério Público da Bahia há duas décadas mas conta que, até hoje, se sente uma recém-chegada. Uma “forasteira de dentro”, diz ela, se referindo ao termo cunhado pela intelectual estadunidense Patrícia Hill Collins. “Mesmo depois de anos, o sentimento é o mesmo daquele primeiro dia. Porque esse é um sistema que quer nos repelir, nos marginalizar, nos deixar engessadas”, diz ela. “ E há um limite para as mudanças que eu consigo promover sozinha”. 

A ideia do Instituto é permitir que as mulheres negras, forasteiras no interior do sistema de Justiça, se aquilombem para, juntas, pressionar por avanços. “Queremos tirar a venda dos olhos da justiça”. 

Lívia conversou com a reportagem durante evento em São Paulo promovido pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos, mesma instituição que mantém Brasil de Direitos.

 

Brasil de Direitos: Mulheres negras são minoria no judiciário brasileiro. Quais os prejuízos dessa baixa representatividade?

Lívia Vaz: Hoje, mulheres negras ocupam 6,5% dos cargos no ministério público. São minoria no poder judiciário no geral. Trata-se de um sistema que, em sua composição, não reflete a cara do povo brasileiro. O resultado disso é que o país tem uma visão unilateral do que é Justiça. Por isso, pergunto: de que forma esse sistema elabora a Justiça? Como e para quem ele a promove? Como o sistema não reflete a composição do povo brasileiro, a Justiça que ele promove acaba sendo antidemocrática. 

 

A senhora publicou um livro em que diz que a “Justiça é uma mulher negra”. Mulheres negras promovem Justiça de maneira mais ampla?

O título do livro é uma provocação. A ideia é tirar o leitor do seu lugar de conforto, afastá-lo do pensamento colonial já estabelecido. E trazer para o sistema de Justiça uma outra perspectiva, que reflita a realidade de mais da metade da população brasileira, que é a população negra. Mulheres negras são 28% da população brasileira, mas menos de 6% do judiciário e do ministério público. O resultado disso é um sistema de Justiça que, por exemplo, promove a seletividade penal. O resultado disso é um país que, recentemente, foi condenado internacionalmente por racismo. Quando eu falo da  justiça como mulher negra, eu quero me contrapor a essa Justiça representada como mulher branca de olhos vendados, que é a Thémis da mitologia grega. A gente estudou a mitologia grega, mas o que isso tem a ver com a nossa história, com a formação do povo brasileiro? Será que essa referência deve ser mais importante do que nossas mitologias afroameríndias, que o racismo religioso quer apagar? Então, por que não pensar uma justiça como uma mulher negra de olhos abertos? Ela precisa ter olhos abertos para enxergar as injustiças. De outro modo, vai contribuir para a manutenção do status quo. 

 

Uma vez em espaços de poder, as mulheres negras promovem esse abrir de olhos?

Os movimentos de mulheres negras lutam contra o racismo e o sexismo, mas lutam também contra a LGBTfobia, contra o capacitismo, pela juventude. São elas que têm, realmente, instado os movimentos de defesa dos direitos humanos na direção da pluriversalidade. E precisamos levar isso ao poder judiciário. Nosso poder judiciário é iletrado em relação a direitos humanos. Quando se fala da questão racial, é pior ainda. As vivências das mulheres negras permitem que elas tragam outras perspectivas , sejam capazes de entender demandas específicas e tornar o sistema mais democrático. Mas é preciso, também, pensar no letramento das pessoas negras. De modo que, uma vez em espaços de poder, elas não reproduzam os discursos da branquitude. 

 

Uma resolução do CNJ de 2015 reserva 20% das vagas no judiciário para pessoas negras. Essa medida foi insuficiente para mudar o perfil de quem ocupa postos no Judiciário?

O Sistema de Justiça brasileiro despertou para essa necessidade só muito recentemente. Na verdade, noto mudanças maiores a partir de 2020, depois da morte de George Floyd nos EUA. As políticas afirmativas de fato existem, mas ainda precisam ser efetivadas. O que acontece é que o status quo encontra meios de permanecer inalterado. É possível mudar. Dou um exemplo: o Instituto Rio Branco conta com políticas afirmativas há muitos anos. Desde Durban. Mesmo assim, se queixava de não conseguir preencher as cotas para pessoas negras. O que acontecia? O concurso exigia proficiência em língua estrangeira como condição eliminatória. Cobrava, ainda, conhecimentos em história da arte. Quem acessa esses saberes? O Instituto, então, decidiu eliminar a disciplina de história da arte do concurso. E transformou a proficiência em língua estrangeira em fator classificatório, não eliminatório. Quem é aprovado no concurso têm acesso à formação em língua estrangeira posteriormente. Com isso, conseguimos enviar três diplomatas negros para Washington, DC.  É isso que precisa ser feito com as políticas e ações afirmativas: elas precisam ser acompanhadas de perto, afinadas, aperfeiçoadas.  A Constituição nos dá esse respaldo. A Constituição do Brasil hoje, tem como texto normativo a Convenção Interamericana Contra o Racismo, que fala em ação afirmativa, fala em racismo institucional, discriminação racial direta, indireta, múltipla.

 

A senhora, inclusive, defende que, ao não garantir diversidade étnica em órgãos e instituições públicas, o Brasil descumpre a Constituição. 

O artigo 9 da Convenção Interamericana contra o Racismo obriga o Estado a garantir diversidade racial nos sistemas político e jurídico, algo que o país não conseguiu assegurar. Trata-se de uma norma constitucional. Precisamos constranger as instituições, para que assumam seu papel constitucional. O compromisso é uma missão constitucional. Não é um favor.

 

Nesse caso, o Brasil descumpre também a Convenção Interamericana. Faz sentido denunciar esse descumprimento a organismos internacionais?

A litigância estratégica internacional é um dos caminhos possíveis. Não é o único. A matriz africana nos ensina a pensar em caminhos, no plural. Os relatórios que os comitês específicos produzem sobre a atuação do Brasil em relação às convenções de que o país é signatário são importantíssimos. Mas isso não deve fazer com que a gente abdique do caminho interno. Nosso grande desafio, principalmente diante da polarização política e da ascensão da extrema direita, é dar continuidade a políticas de Estado e não de governo. 

 

A senhora é uma das fundadoras do Instituto Juristas Negras, que trabalha justamente para ampliar a participação dessas mulheres em carreiras jurídicas. Como isso é feito?

Nosso grande objetivo é tirar a venda dos olhos da Justiça. Eu estou há 20 anos na carreira como promotora de justiça do Ministério Público da Bahia, e uma grande inquietação minha, além da solidão institucional, sempre foi a de que há um limite para as mudanças que eu consigo promover sozinha. O Instituto dos Juristas Negras é formado apenas por mulheres negras atuantes no sistema de Justiça em todas as regiões do país, mas nas mais diversas funções. Surgimos com essa ideia de produzir, disseminar contra-narrativas, conhecimentos, saberes afrodiaspóricos dentro do sistema de justiça. Desenvolvemos várias ações nesse sentido. Publicamos, por exemplo, uma coleção de livros escritos por juristas negras. O livro A Justiça é uma Mulher Negra é o primeiro. Já está a caminho o segundo, que é O Direito Penal Antirracista. A gente produz esse conhecimento e a gente retorna esse conhecimento para a comunidade negra. E buscamos promover uma imersão dessas mulheres, de modo que elas entendam seu papel. Que não é o de reproduzir o que já está posto, mas o de ser contracorrente. 

 

 A senhora atua há 20 anos no Ministério Público e já foi cotada para assumir uma cadeira no Supremo Tribunal Federal (STF). Continua nadando contra a corrente?

Tem uma expressão da [intelectual negra estadunidense] Patricia Hill Collins que se aplica a nós: “outsider within”, a “ forasteira de dentro”.  E é isso que nós [mulheres negras em posição de poder] somos, no fim das contas. Porque conseguimos furar a bolha, entrar no sistema. Somos advogadas, estamos no serviço público, ocupando cargos de poder e em discussões sobre justiça. Mas, mesmo depois de anos, o sentimento é o mesmo daquele primeiro dia. Porque esse é um sistema que quer nos repelir, nos marginaliza, nos deixa engessadas. A primeira sensação é de impotência e de se questionar: “o que eu estou fazendo aqui?”. Por isso, é importante o trabalho do Instituto: quando nos aquilombamos dessa maneira, nos conscientizamos do nosso papel, e da força que temos para transformar esses espaços. Desse jeito, a forasteira de dentro, que furou a bolha, consegue dar um retorno a sua comunidade. 

 

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