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Combate ao racismo

Nova leva de pesquisas destaca o protagonismo de homens e mulheres negras nos anos que e seguiram ao 13 de maio de 1888. Buscavam direitos que a abolição não garantira

13 de maio: como a população negra lutou por direitos depois da abolição

Combate ao racismo

13 de maio: como a população negra lutou por direitos depois da abolição

Nova leva de pesquisas destaca o protagonismo de homens e mulheres negras nos anos que e seguiram ao 13 de maio de 1888. Buscavam direitos que a abolição não garantira

Escrito em 14 de Maio 2020 por
Rafael Ciscati

Em abril de 1888, dias antes de a escravidão no Brasil ser abolida por força de uma lei, os jornais da cidade do Rio de Janeiro comunicaram aos seus leitores o registro do estatuto da Liga dos Homens de Cor. O grupo, criado no ano anterior, reunia personalidades envolvidas na luta abolicionista. Eram homens negros, nascidos livres ou libertos. Alguns, célebres: caso do escritor abolicionista José do Patrocínio, que ajudara a fundar a Academia Brasileira de Letras, e gozava de grande prestígio. Àquela altura, a maior parte da população negra que vivia na Corte era livre. No Brasil, segundo o primeiro censo realizado no século XIX, a população negra nascida livre — ou que conquistara a liberdade por meio da compra da alforria — já superava a de escravizados. Depois de décadas de uma evolução gradual rumo a abolição, o escravismo claudicava. A Liga dos Homens de Cor estava interessada em pensar no que viria a seguir. 

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Na concepção dos criadores da Liga, passada a abolição, era preciso que a população negra se articulasse para cobrar direitos. Segundo seu estatuto, o grupo se encarregaria de “levantar o nível moral dos homens de cor, e de habilitá-los pela cooperação, mutualidade e solidariedade a entrar por igual na elaboração da riqueza e do futuro brasileiro”. Nos anos que se seguiram ao 13 de maio, a Liga dos Homens de Cor promoveu eventos e ações que pretendiam educar a população negra e prepará-la para integrar o mercado de trabalho de um país que precisava ser modernizado. Pioneira, foi um dentre muitos grupos, sociedades e agremiações de homens negros que surgiram, com intenções parecidas, pouco depois da abolição. Essas instituições faziam parte de um esforço empreendido pela população negra, por meio de ações individuais ou coletivas, para conquistar direitos em um país que abolira a escravidão — mas preservara fortes elementos da lógica social escravista.

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Por décadas, a atuação dessas associações permaneceu esquecida. Hoje, elas ressurgem conforme pesquisas lançam novos olhares sobre o período da pós-abolição — esse intervalo que se estende de 1888 à meados da décadas de 1930.

A tarefa não é trivial, e envolve solapar antigos mitos. “O Brasil criou para si uma narrativa segundo a qual, depois do 13 de maio, surgiu um país em perfeito harmonia racial”, conta a historiadora Ana Flávia Magalhães. Professora da Universidade de Brasília (UnB), Ana Flávia é uma das responsáveis por resgatar as experiências de associativismo negro em finais do século XIX. Em Fortes Laços em Linhas Rotas: literatos negros, racismo e cidadania na segunda metade do século XIX  — sua tese de doutorado — conta como, passado o 13 de maio, personalidades negras ativas na luta pela abolição se envolveram em novas disputas sociais. A abordagem, conta ela, contraria uma concepção que dominou a historiografia brasileira até por volta dos anos 1980. De acordo com essa versão dominante, a abolição fora uma espécie de dádiva: concedida à população negra por uma elite progressista e pela princesa Isabel. Passado esse momento, o grupo desaparecia do radar dos historiadores, como se perdesse relevância social. Segundo essa narrativa, a população negra saída da escravidão não era capaz de se organizar para disputar espaços institucionais: “Lançava-se toda essa população a uma condição de anomia. Finda a escravidão, eles deixavam de ser sujeitos da história”, conta Ana Flávia. 

Essa narrativa começa a ser contestada a partir do final do século XX, quando novas pesquisas destacam o papel fundamental desempenhado por homens e mulheres negros no processo de emancipação. A ideia da abolição como dádiva, capaz de garantir acesso à cidadania plena, é posta em xeque: “A partir de então, trava-se uma disputa pela memória da abolição. Que perdura ainda hoje”, diz a professora Wlamyra de Albuquerque, da Universidade Federal da Bahia. O projeto de emancipação aprovado em 1888, conta ela, foi um dentre muitos propostos à época.  “Sabe-se, hoje, que o movimento abolicionista não foi homogêneo”, diz Wlamyra. Ele incluía segmentos sociais que defendiam a abolição, desde que ela ocorresse dentro dos moldes de uma reforma liberal. E havia projetos, defendidos por abolicionistas negros, que cobravam mudanças sociais profundas. Era o caso da ideias defendidas pelo arquiteto negro André Rebouças. Seus planos incluíam um projeto de distribuição de terras, voltadas para o estabelecimento de pequenos proprietários rurais — uma espécie de reforma agrária, mas restrita a terras públicas. “Venceu o projeto liberal, que relegou a população negra a uma condição de subcidadania”, diz a professora. 

Frente a isso, homens e mulheres negras da época passaram a ver a abolição não como uma conquista acabada — mas como um ponto de partida para pensar uma sociedade mais justa. “Pensa-se no 13 de maio como uma alavanca para construir uma país mais igualitário”, diz Wlamyra. Os anos que se seguem não são de harmonia social, mas de disputa. 

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A notícia de que a escravidão fora abolida, em maio de 1888, foi recebida com festa em todo o país. Segundo os jornais da época, milhares de pessoas acorreram às ruas em êxtase, para festejar a boa nova. Àquela altura, a maior parte da população negra que vivia no Brasil era livre. Mesmo assim, uma série de restrições pesavam contra essas pessoas. “Há vários registros de reescravização de libertos, ou mesmo de escravização de pessoas nascidas livres”, diz Ana Flávia, da UnB. Para essa ampla população negra livre, a abolição trazia esperanças de que, enfim, sua condição de liberdade estaria consolidada. 

Logo ficou claro, no entanto, que o 13 de maio não bastara para superar antigos estigmas raciais. Não demorou para que o entusiasmo em relação à data desse lugar a certo desapontamento: “O 13 de maio foi muitíssimo comemorado. Mas há, ao longo dos anos, mudanças naquilo que ele simboliza”, conta o professor Matheus Gato de Jesus, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "Em um dado momento, referências a data se tornam uma maneira de estigmatização racial". Ser libertado “pela pena de uma princesa” deixa de ser motivo de orgulho, para se tornar uma marca de cidadania recente e de segunda classe. O fenômeno foi registrado pela literatura da época — nos primeiros anos do século XX, o escritor negro Astolfo Marques publicou o conto “Ser Treze”, que fala sobre como a data era encarada pela população de então. 

O racismo era constantemente alimentado pelas elites brancas do períodos. Intelectuais — inclusive pessoas que tinham defendido o fim da escravidão — descreviam a população negra recém-liberta como incapaz de viver em sociedade, depois de anos passados em cativeiro.

As descrições vinham acompanhadas pela criação de novos limites institucionais. Desde o começo da década de 1880, antevendo o fim da escravidão, governos provinciais criaram medidas para cercear a atuação da população negra. Na Bahia de 1887, o governo de Salvador empreendeu uma discussão sobre o perfil e a atuação da polícia. Ficou decidido que cabia a ela zelar pela boa conduta da população, e evitar balbúrdia — estavam proibidas rodas de samba depois das 22h, a copoeira se tornou crime em Salvador, no Rio de Janeiro e na Bahia. Em algumas cidades, são feitas revisões dos Códigos de Postura — espécies de leis municipais que regulavam o comportamento dos cidadãos. “Em muitos casos, os novos artigos proibiam o cultivo de alimentos em terras públicas. Festas noturnas deveria ser reprimidas”, conta o professor Edvaldo Alves, pesquisador da Universidade Federal do Sergipe. Nenhuma das medidas cita, explicitamente, a população negra. “Mas não se trata de uma coincidência de datas. O objetivo era controlar essa população negra. Sabia-se que ela ia exigir direitos. Por isso, era preciso contê-la”, diz Alves. 

Individual ou coletivamente, a população negra resistiu a essas tentativas de controle. Alves encontrou exemplos disso ao consultar antigos artigos  de jornal e processos judiciais movidos em Sergipe no final do século XIX. Os casos compõe o livro Saindo das senzalas, mas não da históra - libetos em Sergipe no pós-abolição, que Alves publicou em 2017. Contam histórias de pessoas aguerridas. Havia casos, por exemplo, de trabalhadoras domésticas que tinham recém-conquistado a liberdade, e que se recusavam a dormir na casa do patrão: “Essa era a forma que encontravam de demarcar sua passagem para o trabalho livre”, diz Alves. As repetidas recusas à pernoite incomodaram tanto a elite sergipana que chegaram a virar objeto de artigos de jornais, em que mulheres ilustres da sociedade descreviam a insubordinação de suas empregadas. 

Alves também resgatou casos de homens negros que, encarcerados, tinham visto o 13 de maio chegar e passar por detrás das grades. E que decidiram recorrer à justiça na esperança de obter o perdão da pena: “A todo o momento, essas pessoas buscavam reafirmar seu status recém conquistado de cidadãos”.

Mais ou menos na mesma época, surgiram clubes e associações negras pelo país: "Agremiações que levavam o nome de 13 de maio — e que, por um tempo, se esforçaram para celebrar a data”, afirma a pofessora Ana Flávia Magalhãe, da UnB.  Apesar de imperfeita, a abolição fornecera à população negra um dispositivo de luta por direitos, conta a professora. Não era sempre que esses grupos falavam, abertamente, sobre a importância do combate ao racismo: “No pós-abolição, entendendo o quanto a pessoa negra estava associada à escravidão, muitas lideranças investem na valorização do ‘trabalhador universal’”, explica Ana Flávia. “Porque falar das características raciais do trabalhador era correr o risco de alimentar a discriminação racial contra essa figura”. A tônica era a da busca por melhores condições de trabalho para todos. 

Além da Liga os Homens de Cor, de que falamos no começo da matéria, surge em 1888 a Sociedade Cooperativa da Raça Negra. Fundada em abril daquele ano, o grupo dizia em estatuto “trabalhar para qualificar a população negra e integrá-la ao mundo do trabalho moderno”.  Em suas fileiras, a Sociedade Cooperativa contou com alguns nomes célebres. O principal deles, conta Ana Flávia, foi o de Estevão da Silva. Primeiro presidente da Sociedade, Estevão ficara conhecido pelo talento como pintor — fora o primeiro aluno negro a se destacar entre os quadros da Academia Real de Belas Artes. A notoriedade lhe valeu o apelido de Diamante Negro. Estevão era, ainda, amigo de José do Patrocínio — outro abolicionista que, no mesmo período, continuara a atuar em associações de homens negros. 

Enquanto esteve ativa, a Sociedade Cooperativa articulou práticas de apoio mútuo e atividades de qualificação profissional. À época, o governo brasileiro dava fôlego a uma política migratória que traria ao Brasil um contingente de imigrantes europeus — descritos pelas elites como mais capazes para o trabalho. “Havia um esforço de reorganização da composição racial da classe trabalhadora”, diz Ana Flávia. “A Sociedade Cooperativa da Raça Negra trabalhou para demonstrar a aptidão desses indivíduo para as várias atividades que eles já desempenhavam”. 

Nas primeiras décadas do século XX, essas associações, clubes e agremiações se envolveriam em mobilizações operárias. Apesar de relevante — e de ter sido documentado nos jornais da época — seu papel acabou esquecido. Para Ana Flávia, esse apagamento revela como a sociedade brasileira, tradicionalmente, tem dificuldade para enxergar pessoas negras como protagonistas da história. “Por muito tempo, nãos conseguimos apontar onde estava a população negra nessa luta por direitos”, afirma a historiadora. “Mas essas são pessoas que passaram suas vidas se afirmando como sujeitos da sociedade em que viviam. Precisamos entender quais foram seus esforços e frustrações, para entender como se estabeleceu o racismo no Brasil”. 



Foto de topo: Missa Campal realizada por ocasião da abolição da escravatura (Brasiliana Fotográfica / Instituto Moreira Salles)

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