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Como as Mães de Maio trabalham para construir um novo mundo

Em maio de 2006, policiais de SP promoveram ataques que vitimaram centenas de pessoas. Centenas de filhos. Buscavam vingança. Hoje, as mães buscam justiça

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Em 2016, o Fundo Brasil de Direitos Humanos — instituição que mantém a Brasil de Direitos — completou 10 anos de atividades. Para marcar a data, a fundação publicou uma revista que contava as histórias de grupos apoiados ao longo de sua primeira década de atuação. Entre eles, as Mães de Maio. No texto abaixo, o jornalista Bruno Paes Manso reflete sobre a luta dessas mulheres em busca de justiça por seus filhos. Datas foram atualizadas. 

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por Bruno Paes Manso 

Os protagonistas da violência em geral são homens e jovens. Eles fazem parte do grupo que mais mata e mais morre. Os homicídios estão ligados ao gênero, como se a testosterona e os valores do universo masculino funcionassem como combustível nos conflitos que assolam algumas cidades. Vem sendo assim em São Paulo, no Brasil e no resto do mundo onde as taxas de homicídios são altas. Em boa parte desses homicídios, os assassinos acreditam que seus crimes podem ser justificados. Em São Paulo, por exemplo, há policiais militares que matam quem eles enxergam como inimigos na crença de que estão deixando o mundo mais seguro. Também existem jovens que se matam em disputas por dinheiro, poder, em defesa da honra ou para se vingar da morte de amigos. Ainda paira uma cínica tolerância a esses crimes, como se as pessoas que morressem não fizessem falta. Ao longo dos anos, eu passei a conhecer muitas mulheres nesse mundo fadado a desmoronar, quase sempre mães ou esposas dos jovens que morriam. 

Eram vistas como coadjuvantes no clube do Bolinha, levando suas vidas apesar das tragédias pessoais que viveram. Apareciam às vezes chorando em imagens de televisão ou em fotos de jornais, mas pouco se compreendia além dessas histórias de sofrimento, cada uma delas suficientes para preencher um livro. Existe algo pior do que a dor de perder um filho? Sim. É a dor de perder um filho assassinado por um policial militar. Depois do trauma, as mães precisam enfrentar o luto em silêncio, porque a indignação pública pode provocar represálias para amigos e familiares. E não é só isso. A memória dos jovens mortos, independente do motivo do assassinato, também é destruída de imediato, como se as vítimas fossem culpadas da própria morte. É nesse momento que o peso do mundo pode esmagar até mesmo os mais fortes e iluminados seres humanos. Mas as estruturas sociais de São Paulo não desabaram. Seguem firmes por causa da coragem e da resiliência cotidiana das mulheres, mães das periferias, que souberam reinventar uma nova forma de resistência nessas zonas de conflito. Discretas, quase invisíveis, elas circulam pela cidade. Resistem nos ônibus, nos trens, nas igrejas, nas escolas, nos cabeleireiros, podem ser empregadas domésticas nos bairros mais ricos, podem trabalhar atrás do balcão de uma loja ou cuidarem dos filhos em suas casas simples, com as unhas pintadas, os cabelos bem penteados, perfumadas. São a garantia de que a vida e a civilização continuem em São Paulo, levando para a arena do debate político emoções como amor, saudades e dor.

 O Movimento Mães de Maio, que surgiu há 16 anos para denunciar a violência policial, é hoje o principal representante social dessas mulheres das periferias de São Paulo e do Brasil. Elas conseguiram construir um discurso capaz de constranger as autoridades e a sociedade a partir da tristeza pela perda dos seus filhos.

 A luta começou depois dos ataques de maio de 2006, quando 41 agentes de segurança foram mortos por integrantes do Primeiro Comando da Capital. Nos dez dias que se seguiram, pelo menos 494 pessoas morreram a tiros, sendo que muitos ataques foram feitos por policiais em busca de vingança. As mortes seriam cinicamente toleradas, mas a bandeira já tinha sido levantada: chega de tantos filhos mortos.

Uma das vítimas foi o gari Edson Rogério da Silva, assassinado no dia 15 de maio de 2006. Ele era filho de Débora Silva, uma das fundadoras e lideranças das Mães de Maio. Débora enfrentou uma depressão depois da morte de Rogério, mas viu o filho em um sonho pedindo para que ela não desistisse de lutar. Quando começou a organização do movimento, não sabia pegar o transporte coletivo público para chegar em São Paulo. Dez anos depois, circulou o Brasil e o mundo para denunciar a violência policial paulista.

Costurou alianças com outros movimentos, participou de debates ao redor do Brasil, ajudou outras mães a darem um novo significado para o luto, que se transformou em luta. Trabalhou para a reconstrução da memória dos filhos mortos, atuou no debate para a formulação de projetos de controle da violência policial. Levantou a bandeira sagrada da vida, falando com a legitimidade das mães e do direito a sentir o amor incondicional.

Débora da Silva, das Mães de Maio (Reprodução: Facebook)
Débora da Silva, das Mães de Maio (Reprodução: Facebook)

As mortes continuam, assim como os homicídios e chacinas praticadas por policiais. Mas eu acredito que a entrada das mães no debate público foi o começo da desconstrução do cinismo que permite a persistência dessas práticas. A história de outra fundadora do Mães de Maio, Vera Lúcia dos Santos, foi uma das que mais me marcou como pesquisador e jornalista. A filha dela, Ana Paula, foi assassinada grávida de 9 meses, a um dia da cesariana no Hospital em Santos. Era noite de 15 de maio de 2006 quando a filha saiu com o marido para comprar leite. Os relatos são de que os dois foram parados por policiais à paisana, que mataram o casal e a filha na barriga. A Justiça nunca conseguiu provar a autoria do crime.

Superando o luto, Vera passou a participar do Movimento Mães de Maio, apesar das ameaças que sofria de policiais. Dois anos depois, membros da mesma polícia que ela acusava disseram ter encontrado drogas dentro do tanque da moto dela, que estava sendo usada por um genro. A Justiça foi implacável e a condenou a passar três anos e dois meses na prisão.

A última vez que conversei com Vera, depois que ela já tinha cumprido sua pena, fiquei constrangido e arrasado porque aquela história me parecia ser a prova de que estávamos fazendo tudo errado. Fiquei em dúvidas até sobre do que adiantava escrever sobre aquilo. Minha vontade era de pedir desculpas por fazer parte deste mundo que a esmagou. Vera seguia trabalhando como cabeleireira, de manhã até à noite. Ela me disse que acreditava que um dia ainda iria encontrar Ana Paula, sua neta e genro em outra vida e que tudo aquilo era passageiro.

Sentado na cozinha de sua casa, tomando café e a ouvindo contar o que passou, eu me segurei em sua força suave, a transmitir algo que transcendia a pobre mistura de agressividade e racionalidade do universo masculino. Era como se sua própria presença me obrigasse a não perder a esperança. A esperança de que os valores e sentimentos que as mães representam, quem sabe um dia, possam nos transformar e nos orientar para evitar que o mundo finalmente desmorone sobre nossas cabeças.

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