Como falar sobre direitos humanos com crianças e adolescentes
Direitos fundamentais podem ser tópicos de conversa desde a primeira infância. Brasil de Direitos conversou com especialistas em educação para entender como
Bárbara Diamante *
8 min
Navegue por tópicos
Na escola, em casa ou em qualquer outro ambiente de convívio social: a todo momento crianças e adolescentes de todas as idades acabam sendo expostas a discussões que tratam de direitos fundamentais. Ao vivenciar ou presenciar situações de preconceito, por exemplo, eles acabam tendo contato direto com esses temas.
Cabe, então, às crianças e adolescentes discutir direitos humanos?
Hoje, esses assuntos já são debatidos na escola. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), um documento que estabelece as competências que devem ser desenvolvidas pelos estudantes da educação básica, estimula a adoção de práticas participativas e democráticas em sala de aula. O objetivo é garantir — inclusive na etapa do ensino infantil, que vai dos 0 aos 5 anos de idade — que as crianças aprendam e se formem como cidadãs. Dentre as 10 competências gerais da educação básica relacionadas na BNCC, há valores como a empatia e o acolhimento da diversidade de indivíduos.
Essa conversa não precisa, nem deve, ficar restrita à educação formal. Segundo o Artigo 227 da Constituição Federal de 1988, um dos deveres da família é assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem o direito à educação. Ou seja, o ensino sobre direitos fundamentais também é responsabilidade dos familiares e cuidadores.
Além do ambiente escolar e familiar, essa discussão já foi levada a eventos, como a 12ª Conferência Nacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes (12ª CNDCA), que ocorreu em abril de 2024, em Brasília. Nela, jovens – em sua maioria entre os 12 e 18 anos – debateram os impactos da pandemia e possíveis reflexos pós covid-19.
Para compreender melhor essa questão, e como funciona a abordagem com o público infantojuvenil, Brasil de Direitos conversou com a coordenadora do Núcleo de Formação do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDECA), Joice Forte e com a psicóloga Ana Marcílio, que trabalha na Avante – Educação e Mobilização Social.
Afinal, é possível falar sobre direitos humanos com crianças e adolescentes?
Sim. “Para garantir que direitos sejam respeitados, é primeiro necessário saber que eles existem”, diz Ana Marcílio, da Avante. Ela destaca que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos e que é importante enxergá-los desde cedo como seres capazes e completos.
Por isso, mais do que “ensinar sobre direitos humanos”, é saudável escutar o que os jovens têm a dizer. Joice Forte afirma que as crianças geralmente são associadas ao papel de receptoras. “O mundo é muito adultocêntrico, inclusive a escola”, conta ela. “Trata a criança como se ela não soubesse o que é direito, o que é que ela gostaria, o que é que não está sendo bom“.
O adultocentrismo (ou adultismo) citado por ela, é um neologismo que está relacionado à ideia de que pessoas acima dos 18 são socialmente superiores aos mais jovens. O adultismo acontece quando um adulto invalida uma fala ou ação de um jovem simplesmente por ser “só” uma criança.
O mais importante é policiar essas práticas e manter-se disposto a conversar e explicar com paciência possíveis dúvidas. Além de demonstrar abertura às sugestões dos mais novos: “Essa desconstrução é uma questão atitudinal mesmo. É você levar a sério a criança”, afirma Ana.
Existe uma faixa etária recomendada para iniciar essa discussão?
O ideal é que assuntos voltados aos direitos humanos sejam recorrentes desde o início da vida da criança. O recomendado por Ana é que dos 0 aos 6 anos – a chamada primeira infância – esses temas já sejam introduzidos de maneira prática.
Ela destaca que tópicos como a autonomia corporal – o que pode ou não ser feito – já podem ser apresentados. Desde o momento da troca das fraldas, por exemplo, o adulto pode explicar o passo a passo, pedindo respeitosamente licença para realizar as manipulações necessárias para a higiene do corpo da criança. Nomear as etapas e sentimentos provocados em diferentes situações é importante: “isso vai ajudando as crianças a entenderem os processos e entenderem os limites dos toques desde cedo”.
Vale, também, considerar o desenvolvimento individual da criança. O que pode funcionar para uma, pode não ser eficaz para outra.
O mais aconselhável é que os adultos ao redor mantenham tanto um olhar cuidadoso quanto uma escuta ativa, atentando-se sempre aos comportamentos e falas dos pequenos, a fim de moldar uma educação personalizada. A psicóloga da Avante ressalta: “É importante a gente conseguir se comunicar com a criança e não exigir que ela entre no nosso formato de comunicação. Para poder rolar essa troca de saberes entre adultos e crianças sobre direitos, é importante a gente aprender a conversar com elas”.
Por onde começar?
Não há um ponto de partida exato ou um assunto em específico que deva ser abordado inicialmente. Ana destaca que as questões surgem no cotidiano e que muitas vezes são trazidas pelas próprias crianças, a partir de experiências do dia a dia.
Leia também >> Rio Grande do Sul: como falar com crianças sobre enchentes
Ela e Joice frisam que o engajamento político por parte dos adultos é um ponto essencial para que esse conhecimento possa ser transmitido de forma adequada aos mais jovens. “Para a gente implementar, de fato, a vivência democrática desde a primeira infância, o adulto precisa experimentar uma vivência democrática”, diz a psicóloga.
Como fazer essa introdução?
A maneira com que os assuntos são trazidos deve ser priorizada. É interessante que sejam desenvolvidas metodologias diferenciadas, para passar a mensagem da maneira mais didática e envolvente possível.
O uso de fotos, áudios, vídeos e tudo aquilo que é divertido – como jogos, livros e músicas – é bastante valorizado e pode facilitar a compreensão.
Leia também >> Com bom-humor, livro fala com crianças sobre diversidade e inclusão
Leia também >> Audionovela discute direitos das crianças com o público infantil
O que já foi feito?
Joice Forte do CEDECA é formada em teatro e compartilha que a criação de oficinas é uma maneira de demonstrar às crianças, por meio da arte, uma leitura mais lúdica e simplificada da realidade das comunidades em que elas estão inseridas.
Um exemplo foi a Caravana Popular de Direitos da Infância e da Adolescência que ocorreu no final de 2019. O projeto contou com uma dinâmica denominada Teatro do Oprimido: uma oficina aberta à comunidade que contava com a participação de jovens a partir dos 13 anos e consistia na construção de jogos teatrais.
Nos 5 dias do evento, textos eram expostos e, em seguida, atores e audiência discutiam suas impressões sobre os temas. Ao fim, com base nos estímulos oferecidos pelos educadores, foram construídas cenas sobre racismo na escola, violência contra a mulher, abordagem policial e racismo religioso.
Leia também >> Como educar crianças para respeitar a diversidade religiosa
A metodologia consistia na formação de grupos, que apresentavam uma cena sobre determinada temática. No momento do conflito, os atores pausavam a encenação e os espectadores propunham soluções. Isso permitia que as discussões não se restringissem somente aos debates, mas também, que os adolescentes ali presentes se colocassem dentro da situação e assumissem outros papéis, diante de circunstâncias que não tinham, necessariamente, vivenciado.
Outra dinâmica foi o Mapa de Afetos. Por meio dele, foram discutidas questões como por onde eles costumavam ou não andar pelo bairro e os motivos de não frequentarem determinadas áreas. Essa dinâmica permitia que os indivíduos compartilhassem diferentes experiências sobre o território onde moravam, ampliando as perspectivas através da visão do outro.
Ganhos reais
A discussão desses temas pode gerar mudanças efetivas. Joice cita um caso em que um grupo de adolescentes e jovens – a partir dessas discussões – conseguiu mobilizar a construção de um posto de saúde.
A luta pela melhoria do local começou muito antes da criação do coletivo. Desde 1980, o bairro já sugeria a construção de um posto com uma estrutura que garantisse um melhor atendimento. O impasse se deu por conta do orçamento público, que continha informações demonstrando que o hospital já havia sido construído. Mas, ali, havia apenas um anexo em condições bastante precárias.
A partir dessas observações, o grupo de jovens realizou um mapeamento durante a pandemia para compreender melhor quais eram os déficits dentro daquele centro médico. Posteriormente, quando as medidas da covid-19 começaram a ser flexibilizadas, realizaram visitas e entrevistas presencialmente com os funcionários, que também relataram problemas na infraestrutura.
Através do poder de articulação e da mobilização comunitária, o projeto resultou em uma audiência pública popular, com a presença de parlamentares. O feito repercutiu e pressionou o Conselho de Saúde e, como consequência, uma nova sede foi construída.
*Estagiária sob supervisão de Rafael Ciscati
Você vai gostar também:
Cis e trans: qual a diferença dos termos?
3 min
Saiba o que pode e o que não pode em uma abordagem policial
19 min
4 escritoras lésbicas brasileiras que você precisa conhecer
3 min
Entrevista
Ver maisMarielle: como a violência política contra a mulher cresceu desde o assassinato da vereadora
8 min
Com acordo em Alcântara, Estado se antecipa à condenação internacional, diz ativista
9 min
Glossário
Ver maisConsciência negra: qual a origem da data celebrada em 20 de novembro
6 min
Abdias Nascimento: quem foi o artista e ativista do movimento negro
8 min