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Como o ‘Banco Colorido’ facilita o ingresso de pessoas LGBTQIA+ no mercado de trabalho

O projeto do grupo Ellos funciona como porta de entrada para empregos formais para pessoas de diferentes identidades de gênero e orientações sexuais. Desafios são maiores para mulheres trans

Bárbara Diamante *

8 min

LGBTQIA+: para essa população, a busca por emprego esbarra em preconceitos (Foto: Lucianna Maria da Silveira Ferreira/Cedeca-Ceará/Acervo Fundo Brasil)

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Encontrar uma vaga de emprego, ingressar em um processo seletivo, preencher todos os requisitos e chegar à fase final. Idealmente, essas etapas resultariam em uma contratação. Para pessoas LGBTQIA+ o caminho até a admissão em um trabalho formal não é linear. Naomy Souza, uma mulher trans, passou por muitos processos do tipo. Mesmo atendendo a todas as exigências das vagas, o tratamento mudava assim que recrutadores descobriam sua identidade de gênero. “Vamos entrar em contato”, diziam ao final da entrevista. O retorno nunca chegava.

Para ela, o percurso para encontrar um emprego sempre fora difícil. Por ter de enfrentar a rejeição quando percebiam que ela não é uma mulher cis, sentia que tinha de se esconder durante o recrutamento e em empregos. “Não podia me expressar nem mostrar quem eu sou”.

Naomy Souza: para pessoas LGBTQIA+, a busca por um emprego pode ser mais difícil (Foto: arquivo pessoal)

Naomy Souza: para pessoas LGBTQIA+, a busca por um emprego pode ser mais difícil (Foto: arquivo pessoal)

A pandemia de covid-19 foi o período em que ela mais enfrentou dificuldades na procura de um emprego. No auge do isolamento social, morava sozinha e estava longe dos familiares. Já abalada pelas péssimas experiências vivenciadas nas entrevistas, durante o confinamento a situação piorou; sua saúde mental ficou abalada e ela sofreu com depressão. 

Certo dia, ainda durante o isolamento, Naomy recebeu uma ligação do amigo Jean, que tinha trocado de número de celular. Havia ligado para informá-la da mudança e para saber como ela estava. A conversa se estendeu e Naomy começou a desabafar. Ao perceber que ela passava por um período instável, Jean citou o Banco Colorido: um projeto que busca inserir pessoas LGBTQIA+ no mercado de trabalho formal. 

Criado pelo grupo Ellos, uma organização sediada em Nova Iguaçu (RJ), o Banco Colorido consiste em um formulário online onde a pessoa interessada pode cadastrar seu currículo. Além de estabelecer contato com empresas inclusivas, a iniciativa auxilia no acolhimento psicológico e oferece capacitação teórica. O trabalho recebe apoio do Labora – Fundo de Apoio ao Trabalho Digno, do Fundo Brasil (mesma instituição que mantém Brasil de Direitos).

Naquele momento, Naomy viu no projeto uma esperança de tratar com mais atenção da saúde mental e finalmente ingressar em uma empresa que não fosse hostil.

 

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Emprego formal é ainda mais difícil para mulheres trans

Ao realizar um levantamento de dados no começo de 2020, para checar quais os níveis de escolaridade, empregabilidade e faixa etária de pessoas LGBTQIA+ por toda a Baixada Fluminense, o grupo Ellos notou que as demandas dessa parcela da população são as menos atendidas. Nesse grupo, a taxa de desemprego é alta.

Esse desequilíbrio se repete por todo o território nacional. No conjunto da população brasileira, 37,4% dos trabalhadores tem registro em carteira de trabalho, mas o número é menor quando se trata de pessoas LGBTQIA+. O Fundo Positivo, em colaboração com o Instituto Matizes, avaliou que somente 25% da população LGBTQIA+ têm emprego formal. E de acordo com a ONG Transvida, as estatísticas são ainda mais severas com pessoas trans. No caso delas, somente 15% têm carteira assinada.

Miguel Soares, advogade trabalhista não-binárie e autore do artigo “QUAIS OS CORPOS QUE MAIS SOFREM NAS RELAÇÕES DE TRABALHO? Uma análise da violência contra as pessoas trans e o reflexo nas relações de trabalho” diz que pessoas trans são as mais marginalizadas, sobretudo, por conta da estrutura da sociedade. “A gente vem de uma sociedade pautada no binarismo de gênero, sobre o patriarcado, em que a divisão entre homem e mulher é muito latente. E tudo que foge desse binarismo é considerado dissidente”.

As mulheres trans, além de enfrentar o machismo, sofrem com a transfobia, o que as coloca em uma posição social ainda mais complexa. “Entre as populações monorizadas, há recortes como raça, gênero e classe e de acordo com eles essas pessoas vão sendo mais afetadas”, diz Miguel.

 

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A agressão começa cedo e em ambientes que deveriam ser considerados seguros, como em casa ou na escola. O bullying constante e a sensação de não pertencimento nos colégios, muitas vezes, resultam na evasão escolar. Miguel explica que, para analisar a empregabilidade, deve-se dar um passo atrás e olhar a trajetória de vida dessas pessoas. “Quando a gente fala em integração no mercado de trabalho, além de toda a estrutura opressiva, tem também a falta de educação, a falta de apoio familiar”. Todos esses fatores combinados culminam em um desenvolvimento sem afeto, menos aceitação e em uma menor adaptabilidade ao mercado de trabalho formal. 

Sem moradia estável e tendo abandono dos estudos, é comum que muitas pessoas trans recorram à prostituição como alternativa para gerar renda. De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 90% das pessoas trans e travestis tem a prostituição como principal fonte de renda. Para Miguel, “estar na prostituição é uma maneira de sobrevivência” ainda que a atividade, não regularizada, possa expor as profissionais à insegurança e abusos.

 

Inclusão em empresas e surgimento do Banco Colorido

De modo geral, empresas começaram a ter maior consciência e a investir em iniciativas desenhadas para contratar mais pessoas LGBTQIA+. As políticas DEI (Diversidade, Equidade e Inclusão), por exemplo, têm ganhado força nos últimos anos. Elas têm o objetivo de garantir que o ambiente de trabalho tenha mais populações minorizadas e que o tratamento perante essas pessoas seja igualitário. Mas, na prática, o cenário muitas vezes não é acolhedor. O levantamento feito pelo Fórum de Empresas e Direitos LGBTQIA+ mostra que, por mais que a maioria das empresas afirme contratar pessoas diversas, as pessoas trans não somam 1% do total de colaboradores.

Cátia Cilene, fundadora do grupo Ellos , apresenta uma visão crítica do mercado de trabalho na configuração atual: “várias empresas se dizem inclusivas, só para dizer que têm um núcleo que trabalha diversidade sexual, mas quando se fala em empregabilidade real, para colocar nosso povo lá, a gente sabe que nem sempre isso acontece”, diz.

Quando criou o Banco Colorido, o Grupo Ellos pretendia contribuir para reverter esse quadro, e garantir a inclusão de forma eficaz. Antes mesmo de idealizar o projeto, Cátia já recebia ocasionalmente alguns currículos dos frequentadores da ONG.  Levando em conta as observações cotidianas e as informações colhidas no levantamento promovido pelo grupo em 2020, teve uma ideia: criar uma espécie de banco de talentos que armazenasse o currículo de pessoas LGBTQIA+ da região da Nova Iguaçu e adjacências. 

Com um leve atraso por conta da pandemia, as ações de empregabilidade ganharam força em 2021 e o projeto se concretizou. Além de otimizar o trabalho de mapear a situação das pessoas LGBTQIA+ pela região, se tornou um meio de facilitar o processo de entrada em empresas. 

O cadastro é projetado para ser bastante simples e intuitivo. Por meio do preenchimento de um formulário, é feito o registro dos currículos e dados para contato para que, futuramente, essas pessoas sejam chamadas para vagas afirmativas. A partir dele, são obtidas informações como nome, idade, gênero, orientação afetiva social, telefone e e-mail. 

A partir disso, a equipe do Banco Colorido faz a intermediação com empresas parceiras. A lista de companhias inclui grandes empresas de tecnologia, do ramo farmacêutico e de alimentação, entre outros. Quando novas vagas são disponibilizadas, elas entram em contato com o grupo Ellos, que indica currículos de pessoas cadastradas no formulário. 

Para aprimorar as habilidades dos inscritos, o Banco também atua como uma ponte para a capacitação teórica, que ocorre em locais como o Senai.

Até o momento, já são mais de 1000 inscritos, mas o trabalho persiste. “Continuamos mapeando”, diz a idealizadora, que deseja abranger cada vez mais locais e atingir mais pessoas com a iniciativa.

Uma reunião do Banco Colorido: iniciativa do grupo Ellos faz ponte entre pessoas LGBTQIA+ e empresas (foto: Divulgação)

Uma reunião do Banco Colorido: iniciativa do grupo Ellos faz ponte entre pessoas LGBTQIA+ e empresas (foto: Divulgação)

“Minha vida mudou”, relata Naomy, cuja história contamos no começo dessa reportagem, ao descrever a experiência com o grupo Ellos e o Banco Colorido. Com o auxílio da iniciativa, ela teve acesso a atendimento psicológico e voltou a estudar. Primeiro, se formou como técnica em automação industrial pelo Senai Firjan e, desde maio de 2023, trabalha como ajudante de cozinha. Hoje, ela diz se sentir mais forte

Retomar os estudos despertou nela o desejo de “melhorar cada vez mais e mais no mercado de trabalho” e a motivou a seguir carreira como professora. Atualmente, cursa pedagogia e sente-se mais respeitada. Com emprego formal e um sorriso no rosto, ela relata maior acolhimento. “[Aqui] eles me chamam pelo meu nome, me aceitam como eu sou”.

Foto de topo: Registro da V Caminhada pela Paz do Grande Bom Jardim, em Fortaleza (Lucianna Maria da Silveira Ferreira/Cedeca-Ceará)

 

*Estagiária sob supervisão de Rafael Ciscati

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