Coronavírus – cuidado com a pandemia de falta de humanidade
A chegada do novo vírus evidenciou como políticas de prevenção e cuidado são pensadas com foco em uma pequena parcela da população. O vírus lança luz sobre nossas desigualdades
Maria Teresa Ferreira
5 min
Navegue por tópicos
Saí do trabalho cansada na última segunda-feira. Não bastassem as obrigações do dia, uma coisa me atordoava: as múltiplas informações sobre a pandemia de coronavírus, que já invadem as vidas de todas e todos. Trabalho no serviço de acolhimento institucional. É uma experiência ímpar, e uma comprovação do quanto o Estado pode ser negligente com a política de assistência social. Em dias normais, quando tudo corre bem, faltam ações de suporte dos governos. Diante da ameaça de um novo vírus, só pude pensar: qual o entendimento que temos sobre a importância de mecanismos de assistência social para além dessa pandemia?
>>A liberdade de poder ser o que quiser
As recomendações dos profissionais de saúde são claras: para evitar a propagação do vírus, especialmente perigoso para alguns grupos populacionais, é preciso evitar aglomerações e preferível o distanciamento social. Entendo que essas medidas devam ser tomadas com celeridade. Isso é claro. Falta clareza – e agilidade – do governo em pensar medidas para permitir que fiquem em isolamento aquelas pessoas que, por circunstâncias econômicas, ou pelas característica do próprio trabalho, não podem deixar de circular. Como profissionais autônomos ou pessoas que atuam em serviços de alta complexidade. Caso dos serviços de acolhimento institucional.
>>Por coronavírus, instituto cobra redução de número de presos no Brasil
Fui para casa pensando nessas coisas. No meu caminho, passei pelo terminal de ônibus lotado. Assim também estavam as estações de trem, as balsas, as estações de metrô e demais meios públicos de transporte espalhados pelo Brasil. Todas aquelas pessoas, eu incluída, em constante trânsito. Correndo o risco de virar possíveis vetores de transmissão e contágio. Quem vai dar suporte para que toda essa gente saia das ruas e se proteja?
Nos últimos dias, o governo federal anunciou medidas pensadas para socorrer empresas – e, com sorte, manter empregos. A preocupação é a economia. As empresas ficam liberadas de pagar FGTS, há redução de juros para aposentados (esperando que possam consumir mais), fala-se em ajudar as companhias aéreas. Nada disso, ainda, parece ter refletido na vida dos trabalhadores: não é urgente que as indústrias repensem horários de funcionamento? Façam rodízio de funcionários, interrompam atividades? Não deveriam ter começado por aí as medidas pensadas pelo governo? Antes que me acusem de não pensar na economia, preciso dizer que, diante de uma pandemia, a prioridade deveria ser a saúde das pessoas. E a preservação de serviços essenciais, importantes para garantir a preservação e bem estar de todos.
Li muito sobre solidariedade e empatia nos últimos dias. Para alguns religiosos, esse é um momento para exercitar o amor ao próximo. Em certa medida, concordo com essa visão espiritualista. Contudo, vamos à realidade: às domésticas e diaristas que muitas vezes garantem a boa organização do quebra cabeça das nossas vidas, serão dispensadas, tendo seus salários garantidos? Aqui chegamos à encruzilhada da historia, Laroye. Cruzamos o coronavírus e a desigualdade social. Porque esse mesmo sistema que derrubou juros, deixou de pensar estratégias para pobres, pretos, população LGBTQI+, população carcerária, prostitutas, moradores de rua, comunidade, favela, áreas de risco, quilombolas, ribeirinhos, indígenas …
As estratégias de cuidado foram pensadas para uma pequena parcela da população. Qual é noção de cuidado estamos pensando e tendo para além de dentro das nossas casas?
Não sei, de verdade, qual o ensinamento o dessa pandemia pra cada um de nós. Fato é que muitos não serão atendidos, e há muitas barreiras no entendimento de que fora dos grupos mais vulneráveis à ação do vírus, há um contingente ainda maior de pessoas que vive sem condições de viver. Que sobrevivem na uberização da vida. E essa crise mundial está evidenciando exatamente isso.
Temos medo, isso é fato. E, dentro do nosso medo, exercitamos uma solidariedade virtual distribuindo posts de prevenção, mantras exotéricos e sortilégios de toda espécie. A atitude é válida, porque oração e canja de galinha podem fazer milagres pra quem tem fé e condições de comprar a tal penosa.
Penso que refletir sobre o que está por baixo da ponta desse iceberg que é o coronavírus é a lição de casa para todos nós. De alguma maneira, esse vírus nos fará sair do comodismo da pseudo proteção que os condomínios e a polícia nos apresenta, para nos colocar no cantinho de pensamento e entender nossa responsabilidade sobre tudo isso. Se você pode, fique mesmo em casa. Para quem não tem essa alternativa corra o mínimo de risco. Aproveite o tempo para pensar em que sociedade quer construir. A vida segue depois da pandemia.
A irresponsabilidade do presidente que chamou a rua milhares de pessoas contrariando a OMS, diferente da esquerda brasileira que mesmo de sangrando cancelou TODAS as manifestação referentes a morte de Marielle, é um exemplo do quanto a discussão sobre o coronavírus são mais amplas do que a preservação da saúde em si. Fala sobre a Humanidade e o cuidado com os Humanos, TODOS OS HUMANOS.
Peço à Obaluaê e Oxalá que nos protejam.
Foto de topo: Morro do Papagaio, em Belo Horizonte (Mídia Ninja)
Você vai gostar também:
Cis e trans: qual a diferença dos termos?
3 min
Saiba o que pode e o que não pode em uma abordagem policial
19 min
4 escritoras lésbicas brasileiras que você precisa conhecer
3 min
Entrevista
Ver maisMarielle: como a violência política contra a mulher cresceu desde o assassinato da vereadora
8 min
Com acordo em Alcântara, Estado se antecipa à condenação internacional, diz ativista
9 min
Glossário
Ver maisConsciência negra: qual a origem da data celebrada em 20 de novembro
6 min
Abdias Nascimento: quem foi o artista e ativista do movimento negro
8 min