Covid-19 evidencia caráter misógino e lgbtfóbico do sistema prisional
No Ceará, unidades prisionais com maior índice de contaminação pela doença são destinadas a mulheres e à população LGBTI+. Falta informação para familiares
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por Instituto Negra do Ceará
Em meio à pandemia do novo Coronavírus, a Secretaria de Administração Penitenciária do Ceará (SAP) implementou a mais dura doutrina de contato zero já verificada no sistema prisional do Estado. A propagação da Covid-19 torna essa política ainda mais cruel: pessoas encarceradas são mantidas incomunicáveis. Suas famílias não têm notícias sobre seu estado de saúde, sobre sua vida e sua morte. Atualmente, a imprensa local é o principal meio de informação para familiares e para a sociedade acerca do que acontece no sistema prisional cearense.
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Foi em meio a esse quadro, com ausência absoluta de informações, que a SAP decidiu transferir 51 mulheres, custodiadas na cadeia pública de Sobral, para o Instituto Penal Feminino Auri Moura Costa. A transferência aconteceu no final de maio, e não foi previamente comunicada à familiares ou à defensoria pública. Foi mais uma demonstração de autoritarismo e de irresponsabilidade do Estado. A transferência contraria as orientações internacionais, nacionais e estaduais de saúde, colocando pessoas presas e agentes penitenciários em risco. A mudança ainda contribui para afastar, cada vez mais, as famílias de seus entes privados de liberdade — a mudança brusca para o Auri Moura Costa deslocou essas mulheres mais de 200 quilômetros de seu local de origem.
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A falta de transparência dessa medida já se tornou uma característica das ações da SAP. Desde o início da pandemia, os canais de conunicação da SAP nas redes não informam, à população, de maneira ampla, qual a situação de saúde das pessoas custodiadas. As informações nos chegam através do trabalho da imprensa. Ao não facilitar o acesso aos dados, a secretaria contraria premissa de transparência da Administração Pública, fundamental para garantia da confiabilidade e para adoção de medidas de atendimento e prevenção.
No dia 22 de maio, a primeira morte por Covid19 no sistema penitenciário feminino cearense, foi divulgada apenas por familiares. O falecimento de uma interna do Instituto Penal Feminino Auri Moura Costa não foi comunicado pelos canais institucionais da Secretaria ou noticiado pela mídia. A mulher em questão não teve direito sequer a uma nota de pesar. Houve comoção? Quem era essa mulher? Pessoas que sobreviveram à Covid 19 relatam que é uma doença solitária. Essa condição é ainda mais latente no sistema prisional, pois há uma vivência comum entre mulheres que adentram o cárcere: o abandono e a solidão. Poucas recebem visitas e, por conta disso, há um maior adoecimento mental das mulheres encarceradas e menor acesso a materiais de higiene pessoal, tornando mais desumano e doloroso o cumprimento de pena e por certo, uma sobrecarga de sofrimento entre aquelas afetadas pela doença . Não é curiosos que a Covid 19 tenha entrado no sistema prisional e no sistema socioeducativo pelas suas unidades femininas? O que isso nos diz da realidade das condições das mulheres e meninas privadas de liberdade?
Historicamente, as cadeias e centros de correção para mulheres foram criadas como medidas de correção de caráter, para adequação das mulheres à sociedade através de castigo e privações. Esse histórico sombrio não está distante da nossa realidade atual. Não são poucas as denúncias de castigos físicos nas unidades prisionais femininas, como as investida de spray de pimenta em órgãos genitais. Trata-se de uma violência misógina. Aos métodos tradicionais de tortura se somam, pois, o descaso com a vida dessas mulheres na pandemia. Se a informação é uma das principais armas para o enfrentamento da pandemia, para a população encarcerada e seus familiares a negação do direito à informação se configura como acréscimos de castigos e de negação de sua humanidade
É preciso ter em conta que existe uma seletividade racial do sistema penal quando cerca de 62,96%( segundo o Infopen Mulheres 2017) estão presas provisoriamente e 88,18%são mulheres negras. A Covid 19 não nos trouxe nada de novo, apenas explicitou o caráter misógino, racista, machista e lgbtfóbico do trato do governo do estado e do sistema de justiça com a população prisional feminina e lgbt. As duas unidades com maior índice de contaminação do vírus são o Instituto Penal Feminino Auri Moura Costa com cerca de 34 testes positivos, e a Unidade Prisional Irmã Imelda Lima Pontes com 48 casos. Essa última unidade recebe gays, travestis, bissexuais, idosos, e pessoas com deficiência, que também estão no perfil de abandono familiar e afetivo. Os dois espaços prisionais juntos somam 58,99% dos casos de contaminação. Esse é o diagnóstico de um adoecimento anterior ao vírus que perturba a todes. É o retrato do abandono institucional e de nossa falha enquanto humanidade.
(Foto de topo: Luisa Cytrynowicz/ Pastoral Carcerária Nacional)
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