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Covid-19 nas prisões: organizações apontam subnotificação e falhas de gestão

Um ano depois do início da pandemia, familiares de pessoas presas relatam ausência de notícias. Laços familiares frágeis potencializam violações de direitos

Ícaro Kropidloski

Laura Barcellos de Valls

11 min

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O Brasil registrou a primeira morte por coronavírus dentro do sistema prisional no dia 17 de abril de 2020. A vítima foi um detento de 73 anos do Instituto Penal Cândido Mendes, unidade destinada a idosos no Rio de Janeiro. Desde então, passado pouco mais de um ano, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) contabiliza 401 óbitos em unidades de privação de liberdade. Desses, 218 eram servidores e 183 eram pessoas presas. O CNJ atualiza estes dados quinzenalmente, com o auxílio do programa Fazendo Justiça, a partir de informações repassadas pelos Grupos de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMFs), boletins epidemiológicos de secretarias estaduais e dados informados ao Departamento Penitenciário Nacional (Depen). O dado mais recente, apresentado nesse texto, é do dia 5 de maio.

De acordo com esses levantamentos, o Sudeste é a região campeã de óbitos entre servidores (49,1%) e pessoas presas (45,4%). Em São Paulo, estado com a maior população carcerária do país, os números preocupam organizações sociais, parentes e amigos de pessoas privadas de liberdade. Preocupam pelo que mostram — e pelo que deixam de mostrar. Para Railda Alves, fundadora e presidenta da ONG Amparar – Associação de Amigos e Parentes de Presos de São Paulo, existe subnotificação nas divulgações oficiais.  “Imagine a situação da pandemia nas prisões, nesses espaços onde tudo é abafado. Esses dados não refletem a realidade. A gente só sabe que uma pessoa está com Covid quando ela comunica a família” diz Railda. “Tem o caso de uma esposa que passava email [para a administração da penitenciária] e não tinha resposta. Ela ligou na unidade e informaram que o marido estava isolado, com Covid. A gente fica sabendo assim, ou quando alguém passa um email pra família dizendo: avisa a família de fulano que ele está no hospital”, explica.

Conforme o sistema se fecha perante a pandemia, e a comunicação é afetada, a apreensão de amigos e familiares de pessoas em situação de cárcere aumenta. As visitas presenciais foram suspensas, em diferentes momentos, nas unidades prisionais do país. No estado de São Paulo, por exemplo, onde a Amparar atua desde 1998, houve restrições por nove meses. Segundo Railda, foram priorizados contatos por cartas, encontros virtuais quinzenais e dois e-mails semanais. Quando recebe visitas presenciais, diz Railda, é comum que a pessoa presa tenha de ficar isolada por, pelo menos, dez dias. Relatos de parentes acolhidos pela Amparar chamam atenção para outra estratégia adotada pelas unidades prisionais: quem abraça ou toca algum familiar durante a visita presencial fica 30 dias “no castigo” — jargão usado para se referir às áreas isoladas.

No estado do Rio Grande do Sul o medo do isolamento fez com que presos da Cadeia Pública de Porto Alegre omitisem sintomas de covid. Restringir a circulação de pessoas presas nas galerias e áreas comuns vem sendo uma estratégia para contenção do vírus em diferentes unidades prisionais do país. Do ponto de vista médico, o isolamento é de fato efetivo e recomendado. Mas a insalubridade, fator comum das casas prisionais brasileiras, afeta a saúde física e mental das pessoas em privação de liberdade e gera tensões.

Uma pesquisa conduzida pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), realizada a partir de 56 pedidos via Lei de Acesso à Informação aos estados e ao Departamento Penitenciário Nacional (Depen), demonstra a precariedade em serviços básicos como abastecimento de água e higienização dos locais. Os dados mostram que, durante o segundo semestre do ano passado, apenas cinco estados (Alagoas, Ceará, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e São Paulo), além do Distrito Federal e do sistema penitenciário federal, declararam abastecimento de água 24 horas por dia nas prisões. O estado de Sergipe, por exemplo, informou que disponibilizou água por apenas três horas ao dia. Quanto à limpeza dos locais, medida central na contenção  do coronavírus, apenas Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte, Rondônia e São Paulo relataram que a frequência da sanitização dos espaços das unidades prisionais era diária. O Tocantins, por exemplo, informou que era quinzenal e o Maranhão, por sua vez, informou que ocorria a cada 30 dias. O documento ainda aponta que no Espírito Santo os próprios internos realizavam essa função. Nesse tipo de realidade, ninguém quer “ficar de castigo”.

Para Railda, “a pandemia só veio escancarar toda a violência dentro desses lugares. Porque a gente já denuncia há muito tempo o sistema (prisional). A pandemia fez aparecer realmente a falta de respeito, de formação. O quanto esses familiares que têm um ente querido dentro desses espaços, em dias de pandemia, ficaram três, quatro meses sem notícias. Isso foi muito triste.” A ONG recebe relatos de familiares sobre a dificuldade da entrada dos jumbos ou sacolas, pacotes fornecidos e custeados pelas famílias nos quais são repassados itens básicos não fornecidos pelo Estado, como medicamentos, itens de higiene pessoal ou mesmo alimentação complementar. Esse movimento é de extrema importância para a sobrevivência dos apenados e é visto como essencial para quem está privado de liberdade ou possui algum amigo ou parente nessa situação. A principal reclamação é sobre a renovação da carteirinha credencial que é necessária para familiares, processo afetado pela pandemia que gera às vezes uma resposta com demora de mais de 30 dias. Sem o documento renovado surgem dificuldades para a entrada das sacolas, já que as entregas presenciais dos pacotes também foram suspensas. Além de arcar com os custos dos itens essenciais que compõem o jumbo, fica a cargo da família assumir os custos de envio dos quites pelos correios.

A ONG gaúcha Somos – Comunicação, Saúde e Sexualidade, a partir da execução do Projeto Passagens, pôde constatar in loco, ao entrevistar pessoas LGBTI+ privadas de liberdade e trabalhadores do sistema prisional ao longo do território nacional, a ausência ou fragilização de vínculos familiares desse grupo específico já no contexto anterior à pandemia de covid-19, o que se manifestou pelas narrativas que indicaram número reduzido ou inexistente de visitações à LGBTI+ nas casas prisionais e, portanto, da ausência de apoio material e emocional. As sobrecargas punitivas vivenciadas por aqueles e aquelas que vivenciam dissidências de gênero e/ou sexualidade adquirem ainda maior incidência nesse momento, o que está articulado a invisibilidade imposta a dimensão de gênero e sexualidade adotada ainda como norma pelo sistema de justiça criminal no país.

Vale lembrar que, embora a população privada de liberdade possua legalmente o direito à assistência, é notadamente reconhecido que no Brasil isso, em suas múltiplas dimensões, é viabilizado pelo conjunto familiar daqueles e daquelas que se encontram sob custódia estatal. Nesse sentido, as violações de direito se acentuam no contexto pandêmico, considerando a fragilização dos vínculos familiares e afetivos impostos pela impossibilidade de realização de visitas nas casas prisionais. Na realidade brasileira, a visitação não cumpre papel somente na dinâmica afetiva, mas incide também na dinâmica da satisfação material das necessidades humanas das pessoas privadas de liberdade, considerando a ausência do Estado em cumprir a sua própria legislação, ausentando-se da prestação da assistência à população privada de liberdade.

A presidenta da Amparar lembra, portanto, que:  “hoje quem manda remédio pros presos é a família, desde um antigripal até uma dipirona. Porque todo mundo sabe que essa pandemia mexeu muito com a nossa cabeça, você imagina alguém 24 horas naqueles espaços, como que tá o psicológico? Então as famílias garantem tudo isso, porque o Estado não garante nada praa essas pessoas”.

Patrícia Silveira da Silva,  advogada e mestranda em direito na Universidade Federal do Paraná (UFPR) que atua como voluntária do projeto Infovirus, reitera a preocupação com os dados oficiais e a falta de auxílio às pessoas presas. “Já é um sistema que a gente não tem acesso e sabemos que é muito precarizado, um local de abandono da sociedade. São as famílias que sustentam, sobretudo as mulheres, considerando que elas que levam alimentação, medicação dos presos. Quando as visitas foram suspensas também surgiu uma preocupação por conta da alimentação e o próprio ambiente em que eles estão, de superlotação, aglomeração, um ambiente propício para a proliferação do vírus”.

O Infovirus é um projeto que iniciou em abril do ano passado, a partir da preocupação com o avanço da pandemia na sociedade em geral e, especificamente, no sistema prisional. Patrícia explica que uma equipe voluntária, dividida entre os estados brasileiros, faz um monitoramento diário. Ela, por exemplo, acompanha os sistemas prisional e socioeducativo de Minas Gerais e Rio de Janeiro. “A gente têm acompanhado mais os dados oficiais e as denúncias das famílias no sentido de ausência de informação”, explica.

Ela cita ainda a Recomendação 62 do CNJ, publicada em março de 2020, ainda no começo da pandemia: “O CNJ lançou uma recomendação com uma relação de pessoas que poderiam ser colocadas em prisão domiciliar e também de adolescentes que poderiam receber uma medida em meio aberto se pertencessem a algum grupo de risco ou tivessem alguma doença, além de adolescentes e mulheres grávidas. E nossa preocupação foi acompanhar como isso ia ser feito”. A professora Marília de Nardin Budó, uma das coordenadoras do Infovirus e também coordenadora do Grupo de Pesquisa Poder, Controle e Dano Social, formado por alunos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), fez um levantamento sobre as decisões judiciais tomadas a partir do recebimento de pedidos de liberdade com base nessa recomendação.

Foram analisadas 478 decisões tomadas em junho de 2020 pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS), das quais 92,25% foram em prejuízo do réu. Dessas decisões, 417 tratavam de pedidos formulados pelas defesas dos réus, das quais 96,6% (403) foram denegatórias. O Ministério Público (MP) foi autor de 61 pedidos de revogação da liberdade provisória ou prisão domiciliar, dos quais 62,2% (38) foram concedidos, 36% (22) denegados e um não foi conhecido. O MP também é responsável por pleitear, caso a caso, a adoção da Recomendação nº 62 do CNJ. No entanto, a maioria absoluta das intervenções do MP nas decisões analisadas foram em prejuízo do réu, o que contraria a medida do órgão.

O Infovírus pretende também, por meio de financiamento do Fundo Brasil de Direitos Humanos — mesma fundação que mantém a Brasil de Direitos — lançar um memorial online das pessoas que perderam a vida em decorrência da Covid-19 no sistema prisional. “Eu estou cuidando do Rio de Janeiro e os dados oficiais indicam que foram 19 pessoas que perderam a vida. Então, a gente tá entrando em contato com a Defensoria Pública, as Varas de Execução Penal, pra tentar ter acesso aos nomes dessas pessoas e chegar nos familiares”, ponderou a advogada. A perspectiva é lançar o memorial no final deste ano ou no início do ano que vem. São vidas que, segundo Patrícia, podiam ter sido poupadas a partir de ações efetivas do Estado. “A gente reconhece que nosso trabalho é importante, mas ao mesmo tempo ficamos tristes que a gente ainda tenha que fazer esse trabalho de acompanhamento” desabafa.

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Ícaro Kropidloski. Jornalista, pós-graduando em Direitos Humanos e mestrando em Comunicação Social pela PUCRS. É voluntário na ONG Somos – Comunicação, Saúde e Sexualidade e atua no Projeto Passagens.
Contato: icaro.kropidloski@gmail.com

Laura Barcellos de Valls. Graduanda em serviço social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisadora do JUDIS – Grupo de Estudos em Justiça, Direitos Humanos e Segurança e do GEJUP – Ativista na ONG Somos – Comunicação, Saúde e Sexualidade, onde atua no Núcleo de Justiça e no projeto Passagens: gênero, sexualidade e justiça criminal. Contato: vllslaura@gmail.com
Foto de topo: Petra Pfaller/ Pastoral Carcerária

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