Crianças escrevem livros e fazem teatro em projeto de Salvador
A Oficina Brincante, projeto do Grupo de Mulheres do Alto das Pombas (Grumap) realiza produções anuais. Brincando, criançada discute temas sérios, como combate ao racismo e o fortalecimento da negritude
Bárbara Diamante *
9 min

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Passava das 18h do dia 13 de dezembro de 2024 quando a apresentação teatral começou numa casa da periferia de Salvador. Cerca de quinze crianças cantavam uma música de capoeira escondidas atrás de uma cortina. Pouco a pouco, o pano que tapava o teatro de bonecos desceu para revelar, a princípio, somente as mãozinhas infantis; algumas com dedoches, outras segurando bonecos mamulengos.
A peça daquela tarde fora produzida pelas próprias crianças ao longo de sete meses de trabalho. A ansiedade era tanta que, no dia da apresentação, alguns dos pequenos chegaram mais cedo que o combinado. Às 15h, todas já se concentravam em fazer os ajustes finais do cenário e em realizar o preparo corporal. Após longos exercícios de alongamento e respiração, o sentimento de nervosismo foi substituído por leveza. Quem acompanhava a peça viu a criançada se divertir até mesmo com os imprevistos, como o esquecimento de alguma fala.
A apresentação terminou quase uma hora depois, com mais uma música de capoeira. A plateia aplaudiu e, assim, em clima de festa, mais uma Oficina Brincante do Grumap terminou com sucesso.
O que são oficinas brincantes?
As Oficinas Brincantes são espaços em que crianças, jovens e, em alguns casos, até mesmo adultos desenvolvem o brincar – uma prática que, além de ser divertida, ajuda a melhorar habilidades físicas e sociais dos envolvidos. Enquanto participam, as pessoas refletem sobre diversos assuntos por meio de atividades lúdicas, como música, escrita, desenho e teatro.
O projeto é desenvolvido em Salvador pelo Grupo de Mulheres do Alto das Pombas, mais conhecido como Grumap. Criado há 43 no bairro soteropolitano de mesmo nome, o grupo realiza formação política e oficinas voltadas a mulheres, crianças e adolecentes negros da comunidade.
Para o Grumap, o aprendizado em forma de brincadeira ajuda a trabalhar a criatividade, além de exercitar a imaginação, a consciência corporal e o pensamento crítico. Bricando, também é possível aproximar as crianças de temas sérios, como o combate ao racismo e o fortalecimento da negritude.
A ideia da Oficina Brincante surgiu para promover esse tipo de aprendizado leve e participativo. O projeto deu seus primeiros passos durante a pandemia de covid-19.

Crianças fazem tarefas envolvendo escrita em encontro da Oficina Brincante (Arquivo: Grumap)
Criação da Oficina Brincante
Em outubro de 2020, auge da pandemia de covid-19, membros do Grumap faziam a entrega de cestas básicas nos arredores da instituição quando perceberam que grande parte das crianças não usavam as máscaras sanitárias corretamente quando saíam à rua.
Preocupadas com a saúde delas, as integrantes do coletivo resolveram ensiná-las a se proteger da doença.
As crianças se animaram bastante com a atividade, mas havia outro desafio. Com o confinamento, muitas se mantinham reclusas. O afastamento as impedia de brincar com outras crianças e poucas eram estimuladas a brincar sozinhas. “As crianças estavam esquecendo que tinham um corpo brincante”, lembra Jucélia Ribeiro, facilitadora da Oficina Brincante. Psicóloga de formação, Jucélia sentia que havia a necessidade das crianças se reconectarem consigo mesmas.
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Ela começou a convidar as crianças a participar de dinâmicas voltadas à percepção e interpretação dos movimentos corporais. Feitas num quintal, e com um número reduzido de crianças distantes umas das outras, as atividades envolviam aprender a assobiar e se espreguiçar. Foi o começo da Oficina Brincante.
Com o tempo, e com o recuo da pandemia, a necessidade de manter distância diminuiu e o projeto foi adquirindo novos formatos. A iniciativa só tomou a forma que tem hoje em 2022. Em um dos encontros naquele ano, Davi, um garotinho cheio de energia, descrito por Jucélia como “uma criança muito antenada com o mundo”, disse: “Eu quero escrever um livro”. A fala do participante, que na época tinha apenas 6 anos, surpreendeu as facilitadoras do projeto, que se questionaram: “Como fazer um livro para crianças?”. Ou ainda: “Como fazer um livro de crianças, para crianças?”.
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Após muita pesquisa, chegaram a um modelo simples, mas que deu um novo rumo às dinâmicas do grupo. As crianças contavam a história e faziam os desenhos. Depois, os textos das história eram impressos pelas professoras e colados junto aos desenhos de cada cena. Toda a construção foi idealizada pelas próprias crianças. As professoras atuavam apenas como mediadoras no processo.
A única proposta feita por elas era que os pequenos “se vissem nas histórias”, para garantir representatividade nas produções. Deu certo. Mariana, menina “pouco falante mas com muita vontade de fazer as coisas”, escreveu um livro intitulado “A Pretinha Médica”. Nele, a protagonista é uma médica negra como Mariana.
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No ano seguinte, as crianças continuaram a criar os próprios livros. O diferencial passou a ser o formato das histórias. Ao longo do primeiro ano do projeto, as crianças demonstraram um forte interesse em rimas. O entusiasmo por esse modelo deu origem à construção coletiva de um único livro, composto por versos de todos os participantes. Enquanto o produziam, elas realizaram uma dinâmica de observar o ambiente e reproduzi-lo. O resultado foram ilustrações de animais e plantas que compõem a fauna e flora local, presentes por todas as páginas.

Na imagem, Jucélia mostra a capa do livro de rimas produzido em 2023.
Construção de um teatro de bonecos
A ideia de criar uma peça de teatro apareceu no começo de 2024. Enquanto elaboravam o planejamento anual da oficina, as instrutoras perceberam que, mesmo que bastante sociáveis, as crianças ainda tinham bastante vergonha e medo de falar em público. Concluíram que a melhor forma de treinar a expressão corporal seria levando a meninada ao palco.
O trabalho começou com as oficineiras apresentando as crianças a arte teatral. Por meio de slides, mostraram fotos de figuras negras importantes que as crianças ainda não conheciam, como o dramaturgo Abdias Nascimento, criador do Teatro Experimental do Negro. Apresentaram, ainda, diferentes formatos de teatro, como o de caixas. Aos poucos, as crianças se aproximavam de uma nova forma de contar histórias.
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Em uma espécie de sessão de cinema, as professoras exibiram também vídeos curtos de apresentações teatrais. Os pequenos ficaram encantados. Mas nem tudo era novidade. Alguns reconheceram o teatro de sombras e comentaram felizes que já haviam visto peças do tipo na escola.
Jucélia se divertia com a animação e a vontade de participar das crianças: “elas queriam fazer tudo, mas não dava”. Juntos, os alunos e as facilitadoras foram reduzindo as opções para que o projeto pudesse ter um resultado satisfatório. Inicialmente, as professoras sugeriram realizar um teatro convencional mas, a partir das manifestações dos alunos, acabaram “saindo da linha tradicional” e produzindo uma peça com fantoches: um dos formatos favoritos deles.
Mais uma vez, as crianças se envolveram no processo de criação. Os bonecos foram produzidos do começo ao fim por elas, que contavam com o auxílio das instrutoras apenas para tarefas mais complicadas, como colar tecidos com cola quente. Para realizar tanto a confecção dos bonecos quanto a preparação corporal das crianças, Jucélia contou com o apoio de três alunos da Universidade Federal da Bahia (UFBA), bolsistas do Grupo de Pesquisa Griô.

As cabaças são bastante versáteis. Comumente, são utilizadas para construir utensílios ou acessórios, mas podem ser usadas para outros fins. No caso do teatro, foi utilizada para fazer a cabeça dos bonecos. (Arquivo: Grumap)

Para o teatro, os próprios participantes confeccionaram os personagens. Nas fotos, alunos pintam cabaças, que mais tarde se tornarão as cabeças dos bonecos mamulengos (Foto: arquivo GRUMAP)

Tecidos de temáticas africanas formavam as vestimentas dos personagens. (Foto: arquivo GRUMAP)
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Além dos mamulengos, os alunos construíram dedoches. Ritinha – figura importante para o Grumap – foi representada como uma das personagens do teatro. (Arquivo: Grumap)

As plaquinhas representam falas dos personagens (Arquivo: Instagram Grumap)
O momento escolhido para expor o resultado final do teatro foi uma tarde de sexta-feira em dezembro. Naquele dia, a Casa Grumap estava lotada. Mães, pais e avós se espalhavam pela plateia.
A peça inteira girava em torno de observações feitas pelas crianças. Diariamente, elas comentavam sobre as negligências com a infraestrutura do município. Tudo era anotado pelas instrutoras, que mais tarde fizeram um compilado dessas falas e as transformaram em um roteiro. No enredo final, surgiram denúncias que refletiam a visão real das crianças sobre o descuido da prefeitura com os parquinhos e as escolas.
A cerimônia não se restringiu somente à apresentação. Para comemorar o final de mais um ano de Oficina, o Grumap fez um coquetel colaborativo. A mesa estava repleta de alimentos, Jucélia relembra com carinho: “tinha até salada de frutas, bolo confeitado…”. Foi um momento de confraternização, em que além de demonstrar seus pensamentos através do teatro, as crianças puderam se divertir com os familiares e organizadores.
Jucélia diz que o Grumap já tem planos para o projeto em 2025. Pensam em manter o novo formato e em desenvolver outros tipos de teatro, principalmente os que foram apresentados anteriormente e despertaram interesse. O teatro de caixas e o de sombras são fortes candidatos, já que as duas modalidades foram as que mais deixaram as crianças empolgadas, apesar de ainda não terem tido a oportunidade de colocá-las em prática.
*estagiária sob supervisão de Rafael Ciscati
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