Dados frágeis dificultam reconhecimento de população LGBTQIA+ encarcerada
Levantamento obtido pela ONG Somos mostra que dados públicos têm inconsistências. Mulheres são maioria entre LGBTQIA+ em privação de liberdade
Rafael Ciscati
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Um levantamento realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), e obtido pela ONG Somos, via Lei de Acesso à Informação, sugere que faltam, ao poder público, dados fidedignos sobre o perfil da população LGBTQIA+ privada de liberdade no país. De acordo com os pesquisadores da Somos, existem desencontros entre os números, e há casos de estados que não dispõem dessa informação. As lacunas podem dificultar o atendimento às necessidades específicas desses grupos.
Segundo o levantamento, realizado no início de 2020 mas disponibilizado ao público em julho deste ano, há 10197 pessoas que se identificam como LGBTQIA+ vivendo em situação de cárcere no Brasil. Desse conjunto, a maioria é de mulheres lésbicas ou bissexuais. As mulheres trans aparecem na terceira posição, e correspondem a pouco mais de 16% da população total.
Isso ocorre, destaca a Somos, apesar de a população prisional masculina no Brasil ser maior que a feminina. O levantamento ainda mostra que os delitos que mais encarceram LGBTQIA+ no Brasil estão relacionados a crimes contra o patrimônio — como furto e roubo — ou ao tráfico de drogas.
Mas há incongruências nos números fornecidos pelo Depen. Guilherme Gomes Ferreira, ativista da Somos, conta que o grupo pediu duas informações principais ao Depen: o número total de pessoas LGBTQIA+ encarceradas, dividido por estado; e o número de pessoas encarceradas divididas por tipo prisional. O objetivo era saber quantas pessoas eram presas provisórias e quantas já haviam passado por julgamento. Os dois conjuntos de dados enviados, no entanto, traziam informações conflitantes. “Há um desencontro. Os dados por tipo penal não batem com os dados consolidados, que trazem a população total e foram informados por ofício”, diz Ferreira. “Segundo o ofício enviado pelo Depen, existem 10.197 pessoas LGBTI+ em privação de liberdade. Mas a tabela bruta com os tipos de prisão aponta um número de 8.724 pessoas”. Além disso, o estado do Amapá não forneceu informações ao Depen.
Os dados sobre prisões provisórias importam especialmente porque, na avaliação da Somos, há a possibilidade de ela ser usada excessivamente contra essas populações. Desde 2018, os integrantes do Somos conduzem o projeto Passagens, que discute o encarceramento dessas populações no Brasil. Nas visitas que fizeram a unidades prisionais no Rio Grande do Sul, diz Ferreira, constataram a presença significativa de pessoas LGBTQIA+ presas provisoriamente. “ Além disso, o governo lançou um relatório-diagnóstico, em 2020, que indica que muitas casas prisionais que detém essa população são casas provisórias”, conta ele. Segundo Ferreira, há sinais de que existe uma seletividade penal baseada no gênero e na sexualidade. “A gente consegue avaliar que existe uma diferença de tratamento penal de acordo com o marcador de sexualidade, assim como acontece com o marcador de raça e etnia”, afirma.
Mas os dados incongruentes impedem análises mais assertivas, conta Ferreira.
Falta de transparência e dificuldade para obter dados
Na avaliação dele, essas lacunas de informação podem ser reflexo de dois problemas principais: de um lado, podem indicar que as pessoas privadas de liberdade relutam em se identificar como LGBTQIA+ por temer retaliações. Isso ajudaria a explicar porque, por exemplo, o número de mulheres LGBTQIA+ ultrapassa o de homens.
De outro lado, pode significar que falta qualificação às equipes que trabalham nos estabelecimentos prisionais, e no sistema de justiça prisional, para tratar de temas como identidade de gênero e sexualidade. “A gente vê que os estabelecimentos têm dificuldade em perguntar para as pessoas como elas se identificam, porque não sabem as diferenças entre as identidades”, conta Ferreira. “Frequentemente, ocorre uma homogeinização dessas letras, como se todas as pessoas fossem homossexuais”.
Outro problema constatado pelo grupo foi a dificuldade para obter esses dados. A Somos fez três pedidos via Lei de Acesso a Informação. No primeiro, receberam uma tabela com números consolidados, mas sem informações sobre prisões provisórias. Os dois pedidos seguintes, que insistiam nesses dados, foram negados. “Obtivemos os dados depois, solicitando formalmente ao Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, como membros que somos do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, e foi aí que obtivemos as informações que queríamos”.
Para Ferreira, avançar nessa discussão vai exigir mais transparência. “Que precisa vir acompanhada por educação e sensibilização em direitos humanos, para que os trabalhadores possam atender a essas demandas e reconhecer essas pessoas verdadeiramente”, afirma.
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