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De ameaças à Maria da Penha ao ‘PL do estupro’: um país forjado na misoginia

Rede Lume de Jornalistas

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Nos dias 27 e 28 de maio participei do I Encontro de Movimentos Sociais de Mulheres e Feministas, promovido pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), em Luziânia (GO), representando Néias-Observatório de Feminicídios Londrina. Lá, algumas participantes perguntaram sobre Maria da Penha, membra emérita do CNDM. A resposta foi que ela não participaria do evento, pois tem saído pouco, dada sua condição física. Duas semanas depois veio a público a notícia de que a ativista terá proteção do Estado após sofrer ameaças da extrema direita.

É isso mesmo. Maria da Penha, um símbolo da luta contra a violência doméstica no Brasil, tem sua vida novamente ameaçada, mas desta vez, não por um marido, mas por grupos extremistas que buscam desqualificar sua luta e sua história. Afinal, como é possível que a trajetória de Maria da Penha inspire ódio?

>>Lei também: PL que criminaliza aborto pode punir mulher com pena maior que para estuprador

A desqualificação da enfermeira não é recente. Em 2021, um deputado de Santa Catarina, de extrema direita, recebeu em seu gabinete o agressor de Maria da Penha. Ele ainda postou foto com o mesmo nas redes sociais e uma legenda que parecia por em dúvida a violência sofrida pela ativista. Pouco tempo depois, um canal de youtube produziu documentário questionando a “versão” de Maria da Penha.

Mas, afinal, de onde vem a sanha por desacreditar um símbolo do combate à violência contra as mulheres? Eu tenho a minha visão, mas quis ouvir de pesquisadoras e ativistas quais eram as delas.

Compartilharam comigo seus posicionamentos a antropóloga Martha Ramirez-Gálvez, docente da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e presidenta de Néias; Silvana Mariano, socióloga, docente da UEL e coordenadora do Laboratório de Estudos de Feminicídio (Lesfem-BR), e Sueli Galhardi, assistente social aposentada e presidenta do Conselho Municipal de Defesa dos Direitos das Mulheres (CMDM) de Londrina.

“Meninas e mulheres brasileiras sofrem as mais diversas formas de violência de gênero todos os dias. Quando nos deparamos com os acontecimentos de que uma mulher que é símbolo da luta pelos direitos das mulheres, torna-se alvo de ódio e de graves ameaças, temos a evidência do padrão de misoginia que impera em muitos grupos sociais no Brasil. Maria da Penha é alvo de ódio justamente por ser defensora dos direitos das mulheres. Isso é relevador dos retrocessos que vivenciamos em termos de pacto civilizatório e de reconhecimentos dos direitos humanos. É inadmissível.”, diz Silvana.

Sueli Galhardi lembra que vivemos em um sistema social que estrutura e se estrutura por relações sociais desiguais, dentre elas, as desigualdades de gênero. Essa construção social se expressa numa sociedade patriarcal, machista e misógina. Para ela, os movimentos sociais de mulheres vêm impulsionando ao longo da história mudanças na organização social através de ampliação de politicas públicas.

“Sendo assim poderíamos dizer que a Lei Maria da Penha trouxe um novo paradigma para a sociedade em que reconheceu a existência da desigualdade de gênero e pautou a violência contra mulheres como crime, reconhecendo ainda a necessidade de reabilitação do autor da violência, desafiando toda sociedade a desconstruir essa cultura e construir uma cultura não violenta. Penso que quando os direitos sociais avançam sempre irão incomodar aqueles que os suprimem. A extrema direita pauta-se na manutenção do status quo e, legitimar esses direitos significa reconhecer a necessidade dessa mudança social que a lei nos impôs. Maria da Penha é símbolo dessa luta das mulheres por direitos iguais com autonomia de decisões sobre suas vidas, seus próprios corpos e desejos. Ela escancara a opressão e o domínio masculino que oprime as mulheres e determina suas vidas. Não devemos retroceder na conquista de direitos sociais, mas sim avançar na ampliação desses direitos.”

Martha Ramírez acrescenta o papel dos espaços religiosos como disseminadores e articuladores junto a grupos fundamentalistas. Ela entende que o fato de conquistas das mulheres, como a Lei Maria da Penha, provocarem reações tão fortes (como as ameaças) mostra que discussões sobre gênero se tornaram ameaçadoras para um ordenamento completamente religioso, baseada em papeis pré definidos por uma divindade para homens e mulheres.

“No momento em que se começa a discutir a possibilidade de uma construção social sobre esses lugares isso resulta ser bastante ameaçador para essas religiões, e aí temos a reação. Reação que teve eco dentro de alguns grupos politicos também e que, de alguma maneira – algumas pessoas têm falado – abriram as ‘portas do esgoto’ para manifestações de grupos que se organizam para se retrolaimentar. É um esgarçamento total do tecido social em que as coisas são individualizadas, qualquer mudança que promova direitos de minorias, direitos étnico-raciais, direitos de mulheres, da população LGBT se torna ameaçadora para essas pessoas.”

Para a antropóloga, só é possível pensar que uma figura tão emblemática como Maria da Penha possa ser ameaçada pela mudança social que provocou dentro de uma socidade onde não se vê a possibilidade de os homens exercerem uma masculinidade que não seja tóxica, uma masculinidade “que se vivencia a partir da anulação das mulheres”.

CARTAZ EM MANIFESTAÇÃO DA FRENTE FEMINISTA EM LONDRINA (FOTO: IVO AYRES)

Misoginia

No dia 10 de junho um exemplo claro de como a misoginia pauta o debate público no Brasil: o Projeto de Lei 1904, chamado de “PL da Gravidez Infantil” ou “PL do estupro” foi pautado em regime de urgência na Câmara dos Deputados, numa votação de 23 segundos manobrada pelo presidente da Casa, Arthur Lira (PL). Sustentado pela bancada evangélica, o PL levou mulheres às ruas de diversas cidades do país. Diante da reação, Lira recuou na urgência do texto.

Duas coisas ficaram claras. A primeira delas: pautar o PL teve como objetivo tensionar o governo federal. Os corpos e o futuro de meninas e mulheres foram usados como moeda de troca no jogo político promovido, basicamente, por homens. Mas também ficou claro que somos fortes. A saída às ruas assustou Lira, associado diretamente ao PL que pretende criminalizar vítimas de estupro em casos de aborto acima de 22 semanas, inclusive meninas, e ele recuou da urgência.

Em ano eleitoral, acredito, ninguém quer ser taxado de financiador de estupro.

E qual a relação entre as ameaças a Maria da Penha e o PL do Estupro? A estrutura social que permite a existência das duas situações. Com o respaldo de grande parte da sociedade, a extrema direita busca manter as estruturas opressoras às mulheres, sustentando o modelo de “família tradicional” em um país onde 11 milhões de mulheres criam seus filhos sozinhas.

Moralismo

No encontro nacional de movimentos sociais de mulheres que citei no início do texto pudemos ouvir a socióloga Betânia Alves, do Instituto SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, que, enfaticamente, colocou o combate à misonigia como prioritário. Ela explicou como se dá a relação entre público e privado nessa estrutura social moralista que experimentamos.

“É uma coisa da sociedade liberal: uma prática pública moralista e uma prática privada perversa e violenta. As igrejas se apropriam disso e fazem todo o moralismo. Moralismo é uma prescrição em que aqueles que têm poder definem como devem ser as coisas”, explica.

Para Betânia fica claro o motivo pelo qual os fundamentalistas, incluindo a extrema direita, odeiam movimentos de direitos das mulheres e feministas.

“Porque a gente explodiu com uma instituição que era absolutamente fundamental para essa relação de esfera pública e esfera privada e com a hipocrisia, nós explodimos a família, porque nós mostramos que no interior dessa família burguesa, branca, heterossexual e liberal o que tem é uma violência absoluta de classe, de raça e de gênero”, fundamenta.

A socióloga citou livremente Hannah Arendt (filósofa política alemã de origem judaica): “O espaço privado nunca foi para as mulheres, nem o espaço da privacidade, nem o da intimidade; sempre foi o espaço da privação.”

Compartilho da percepção de Silvana Mariano quando ela afirma que estamos vivenciando intenso retrocesso em termos de pacto civilizatório e de reconhecimento dos direitos humanos. A sensação é de que avançamos um passo e retrocedemos dois. Como na frase lugar-comum da internet, “não temos um minuto de paz”. E não temos mesmo.

Termino lembrando (como não?) Simone de Beauvoir em frase emblemática que também circulou bastante por aqui nas últimas semanas: “Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.

Cansa, mas nos mantemos.

*Cecília França é editora da Rede Lume.

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