Depois da abolição, Estado sofisticou mecanismos de exclusão, diz historiadora
Segundo Wlamyra de Albuquerque, o projeto de abolição vitorioso relegou parte da população a uma espécie de subcidadania. Abolicionistas negros propunham mudanças mais profundas
Rafael Ciscati
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Em 1887, pouco antes de a escravidão ser abolida no Brasil (no dia 13 de maio de 1888), o governo da Bahia se lançou numa discussão sobre qual deveria ser o perfil e a atuação da polícia. Decidiu-se que cabia à força policial zelar pela boa conduta da população: sambas foram proibidos depois das 22h, a capoeira foi considerada crime. Na época, a população negra livre —ou liberta — em Salvador já superava, numericamente, a de escravizados. E a abolição era um evento antecipado pelas elites. O episódio é lembrado pela historiadora Wlamyra Albuquerque para demonstrar como, às vésperas do 13 de maio, as elites brasileiras se organizaram para cercear a atuação de homens e mulheres negras: “Entendia-se que eles não estavam mais sob o controle de um senhor, mas deveriam passar para o controle do Estado”, afirma.
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Professora da Universidade Federal da Bahia, Wlamyra se dedica a um campo de estudos relativamente novo para a historiografia brasileira: o do período da imediata pós-abolição, de 1888 até a década de 1930. Segundo ela, a lei assinada no 13 de maio representava um dentre muitos projetos de emancipação: “O movimento abolicionista não era homogêneo”, afirma. Deixa de lado propostas de lideranças negras que lutaram pela liberdade, e que de defendiam mecanismos para a criação de uma sociedade mais justa — para pessoas negras ou não — como a distribuição de terras públicas a pequenos proprietários. “Esses abolicionistas negros tinham um projeto para o Brasil”, diz a professora.
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Segundo Wlamyra, venceu um projeto de país que criava mecanismos de exclusão, relegando a população negra a uma condição de subcidadania, sem nunca deixar essas intenções explícitas: “A república brasileira se faz cheia de noções de desigualdade racial dadas pelo escravismo.”
Brasil de Direitos: A população negra, na época da abolição, era heterogênea. A maior parte dela, segunda as estatísticas da época, era nascida livre ou liberta. O que o 13 de maio representou para essas pessoas?
Wlamyra de Albuquerque: É mesmo verdade que, a partir da década de 1870, houve uma expressiva diminuição no número de pessoas escravizadas no Brasil. O número caiu mesmo naquelas províncias que concentravam população cativa significativa. Mas isso só acontece nos anos já próximos da abolição, a partir de 1882. É um período muito curto, sobretudo se comparado aos mais de 300 anos de escravismo no Brasil. Na maioria dos casos , a pessoa conquistava a liberdade comprando sua alforria. Essa negociação, com o senhor, era costumeiramente tensa. A compra da alforria tinha por objetivo garantir alguma autonomia à pessoa. É preciso cuidado ao falar em liberdade nesses casos. Porque, além do senhor, esse indivíduo que comprava a alforria tinha ainda de lidar com o Estado brasileiro, que não estava interessado em lhe garantir liberdade plena. Perante o Estado, esses homens libertos eram vistos como suicidadãos. Juridicamente, eles não podiam ser chamados de “livres”. Eram “libertos”. E isso não é mero jogo de palavras. Essa condição o impede de ter diversos direitos políticos. E essa condição perdura até a abolição.
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Havia restrições explicitas, descritas em lei, à atuação dos libertos?
Essa foi a grande sacada do Estado brasileiro, antes e depois da abolição. É o argumento que desenvolvo em um dos meus livros, O Jogo da Dissimulação. Ao contrário do que aconteceu nos EUA, ou em Cuba —países onde a escravidão chegou ao fim quase na mesma época em que o Brasil — o Estado brasileiro nunca explicitou, em leis, as restrições impostas à população negra. Os mecanismos de exclusão são mais sofisticados. Vou exemplificar. Em 1881, o número de pessoas negras nascida livres ou libertas já era maior que o número de escravizados no Brasil. A escravidão estava em crise. Foi quando se empreendeu uma grande reforma no código eleitoral. Ao longo de todo o Império, libertos não poderiam ser eleitos, mas poderiam ser votantes. A eleição acontecia em duas instancias, com uma indireta. Em 1881, o projeto era de que a eleição passasse a ser direta. Mas foram estabelecidas algumas exigências: para ser eleitor, o sujeito devia ser alfabetizado. Isso tirou uma boa parte da população liberta do processo eleitoral — uma população que já havia participado das disputas em outros momentos. Não há uma explicitação, na lei, de que há um limite aos libertos. Mas criam-se restrições a sua cidadania.
Essas restrições veladas perduram depois do 13 de maio?
Como o Estado interefere nas nossas vidas cotidianas? Quando falamos do Estado, falamos da polícia, das políticas educacionais , de saúde, habitação, do acesso a espaços de poder. Saindo da monarquiea e entrando na república, o Estado brasileiro vai sofisticando essas fomas de exclusão por meio desses braços do Estado. Isso começa ainda antes da abolição. Em 1887, às véspera da abolição, surge um debate sobre a restruturação da polícia na Bahia. O objetivo é repensar o perfil e a atuação da força policial. E a discussão ocorreu num momento em que o número de pessoas negras livres ou libertas já era maior que o número de escravizados. Compreende-se, na época, que controle dessa população já não estava nas mãos de um senhor. Ele precisava ser exercido pelo Estado. Para fazer isso, a polícia é reestruturada, para dar conta do controle urbano e para a observação de normas de conduta.
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Aumenta a repressão policial?
Os sambas são proibidos depois das 22h, por exemplo. O candomblé foi proibido em Salvador, bem como a capoeira, que foi proibida em Salvador, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Cabia à polícia fazer cumprir essas proibições. Tudo isso são sinais de tentativas do estado de controlar a população negra livre, e isso se estende para além do século XIX. A Constituição federal, hoje, não estabelece distinções raiais. É verdade —não está dito na constituição que há uma subcidadania para a população negra. Mas as políticas do estado brasileiro foram construídas desde a abolição, e ainda hoje, num sentido de garantir lugares sociais diferentes para esses sujeitos, à partir de uma condição racial.
Hoje, se diz que a lei que aboliu a escravidão foi curta e insuficiente. Em fins do século XIX já se fazia essa crítica? Havia outros projetos de liberdade?
Havia essa crítica. Para muitos abolicionistas, a abolição era uma reforma. Era um ajuste na ordem liberal. Mas o movimento abolicionista não era homogêneo. Havia, por exemplo, abolicionistas que eram sapateiros. Sabemos de abolicionistas que invadiam senzalas para fazer campanha. Na memória nacional, restaram apenas alguns “grandes homens’, que incorporaram a ideia da abolição a partir de uma perspectiva de reforma liberal. Para encontrar outras perspectivas, é importante olhar para os abolicionistas negros, como o Luis Gama. Gama tinha elaborado um plano para o que deveria ser o Brasil depois da abolição. Havia um projeto de habitação, um plano de acesso a espaços na política. Há outras figuras como ele, que foram inviabilizadas. Alguns, anos depois, se tornam lideranças de movimentos operários. Caso de Manoel Quirino, na Bahia. Nascido escravo, ele compra a própria alforria. No pós-abolição, se torna líder operário e chega a fundar um jornal socialista. Elege-se vereador, mas não vai além disso. Eles todos defendem reformas muito mais profundas para a sociedade brasileira do pós-abolição. O mais conhecido deles talvez sejs André Rebouças, que elaborou uma plano de distribuição de terras.
Uma espécie de reforma agrária?
Não era propriamente uma reforma agrária, porque reforma agrária é muito marcado por uma ideia de distribuição de terras privadas. André Rebouças pensava em terras públicas, que deveriam ser transformadas em colônas para serem distribuídas a pequenos proprietários de terras. Pensava também num plano de reforma educacional. Quando se olha para essa pluralidade, a gente se dá conta de que havia propostas muito mais igualitárias, atentas às desigualdades colocadas naquele momento. Esses abolicionistas negros tinham projetos para o Brasil
Essas lideranças negras continuam a atuar no pós-abolição. Que bandeiras defendem?
Eles vão reivindicar que se estabeleça a instrução pública obrigatória a essa população egressa da escravidão. Cobram o estabelecimento de salários. A escravidão acabou à base de um decreto curto. Em muitos lugares, isso não significou a adoção do trabalho livre imediatamente. O estabelecimento de salários, a fixação de um jornada de trabalho, o respeito aos fins de semana livres. Essas bandeiras, que começam a ser incorporadas pela luta operária, surgem como reivindicações dessa população negra para se livrar das continuidades do escravismo. Essas lideranças pensam, então, no 13 de maio como uma alavanca, um ponto de partida, a partir da qual construir um país mais igualitário. Mas isso só vai aparecer nos discursos desses abolicionistas negros. Que acabam sendo inviabilizados naquela galeria de heróis nacionais.
Por que esses protagonistas negros foram esquecidos?
Muito fazendeiros ficam descontentes com o fim da escravidão, e tornam-se republicanos. Defendem um liberalismo — que não o mesmo de hoje— que prevê um Estado que garanta liberdade econômica e direitos de propriedade. Esses fazendeiros garantem o fim da monarquia, e levam para a república esses principios de desigualdade racial, essa ideia de preservação da propriedade acima de qualquer coisa, como a primeira premissa do estado liberal. Eles conseguem manter um processo de desigualdade racial que corre na republica brasileira até hoje. A república brasileira se faz cheia de noções de desigualdade racial dadas pelo escravismo. Há uma tensão política que faz com que a abolição aconteça. Mas ela vem preenchida por vícios, e por um projeto que exclui parte da população da cidadania. Há muita gente querendo que a escravidão acabe. Mas, mesmo entre essas pessoas, há muitos que trabalham para fazer com que essa mudança aconteça sem que, para isso, se desmonte um edifício social desigual.
foto de topo: a professora Wlamyra de Albuquerque (divulgação Companhia das Letras)
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