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Desaparecimentos forçados: documentário discute crime praticado pelo Estado

Nossos corpos são nossos livros mescla histórias de mães cujos filhos desapareceram à análise sociológica. Crime é praticado pelo Estado e milícias como forma de disseminar terror

Rafael Ciscati

6 min

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Margareth* ainda lembra que roupa o filho usava da última vez que o viu: bermuda e chinelos pretos, sem camisa. Passava pouco das 13h de uma tarde de julho de 2020 quando Matheus — um menino de 17 anos, quase 18 — recebeu o telefonema de um amigo e disse para a mãe que sairia para dar uma volta. Ela não se preocupou. Muito quieto, caseiro, Matheus vivia com uma depressão que demorara a ser diagnosticada.  Naqueles dias de 2020, conta Margareth, ele parecia feliz. “Ele tinha conhecido uma menina e voltara a se arrumar”, conta. Mas Matheus nunca voltou para casa. Duas semanas depois, seu corpo seria encontrado em uma praia, na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro. Hoje, Margareth conta carregar duas ausências: a do filho e a de explicações. “Eu só queria saber o que aconteceu com ele”.

>>Glossário: o que são desaparecimentos forçados

Desde 2003, cerca de 1,2 milhão de pessoas desapareceram no estado do Rio de Janeiro. Pelo menos um terço dessas ocorrências se deu na região da Baixada Fluminense, onde Margareth vive. A estatística, no entanto, conta uma história pela metade. “Tradicionalmente, uma pessoa desaparece por causa de conflitos familiares, problemas com drogas ou psiquiátricos”, afirma Giselle Florentino, diretora executiva da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR) — uma organização atuante na Baixada Fluminense. Para histórias como a de Matheus, organizações internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), usam um termo específico: desaparecimento forçado.

O conceito se refere àquelas situações em que pessoas são sequestradas — geralmente por agentes do Estado, como policiais  —e mantidas sem contato com familiares. O desfecho desses casos costuma ser a morte e a ocultação do cadáver. Os desaparecimentos forçados se disseminaram no Brasil a partir da ditadura militar. Na época,  a tática era usada contra opositores do regime. Hoje, o método é utilizado pelas milícias como forma de sedimentar poder. “O desaparecimento forçado é uma forma de terrorismo praticada pelo Estado”, explica Giselle.

O desaparecimento de Matheus é uma das histórias contadas no documentário “Nossos corpos são nossos livros”, que a IDMJR lança no próximo sábado (2). O filme, que mescla histórias de vítimas a análises sociológicas busca chamar a atenção para um tipo de crime que, embora brutal, é pouco discutido.

O documentário traduz, em imagens, mais de dois anos de pesquisas conduzidas pelos membros da IDMJR. Para Giselle, o alerta de que o assunto precisava ganhar fôlego no debate público soou em 2019. Naquele ano, nove pessoas foram mortas por milicianos em Queimados, cidade da Baixada Fluminense. Os corpos das vítimas foram espalhados pela região. “A intenção era mandar um recado para a população. Dizer que aquele território tinha dono”, conta Giselle. “Não tinha como considerar esses crimes como sequestro, ou como homicídio. Eram algo diferente”.

Para entender melhor o que se passava, ela e os colegas entraram em contato com grupos atuantes na América Latina. No México, conta ela, há estatísticas oficiais que contabilizam os casos de desaparecimentos forçados. Organizações da sociedade civil demandam que o mesmo seja feito no Brasil, sob a fiscalização de entidades independentes. “Fazer o acompanhamento desses casos é um desafio”, conta a pesquisadora. “Por anos, nossa estratégia foi a de contar os corpos que apareciam. Hoje, fazemos também um monitoramento na internet. Parentes das vítimas vão às redes sociais buscar ajuda”,

Foi esse o roteiro trilhado por Margareth. Ao perceber a demora do filho, ela foi buscar ajuda na delegacia. Foi recepcionada por uma espécie de interrogatório. “Eles me perguntaram se meu filho era bandido. Se estava envolvido com drogas”. Diante das perguntas, Margareth conta que desabou. “Eu não consegui continuar a responder. Minha mãe completou a ocorrência por mim”.  Sem auxílio da polícia, Margareth peregrinou pelas ruas do bairro, em busca de notícias do filho. Publicou apelos nas redes sociais. Numa entrevista publicada nos jornais da época, disse que, tudo o que queria, era encontrar o corpo de Matheus. Sua história acabou chegando à IDMJR, que lhe ofereceu apoio. “Para essas mães, não ter notícias sobre o paradeiro do filho é, muitas vezes, pior do que encontrar um corpo”, afirma a cineasta Janaína Refém, que dirige o documentário.

Nossos corpos são nossos livros começou a ser filmado em 2020, já durante a pandemia. Contou com baixo orçamento e prazo exíguo: consumiu três meses. O processo, conta Janaína, foi marcado por tensões. “ Desde o início, nossa maior preocupação era contar essas histórias sem expor as pessoas a riscos”. Quem aparece diante da câmera, e também a equipe por detrás das lentes, vive na Baixada Fluminense — um local, dizem os pesquisadores, historicamente utilizado para desova de corpos. “Todo mundo que nasce na Baixada conhece a história de alguém que desapareceu. A gente cresce carregando esse temor”, diz Janaína.

Apesar do receio, ela diz jamais ter considerado deixar de filmar o documentário. “Esse é um debate que precisa ser visibilizado, e essas são histórias que precisam ser preservadas”.

A intenção é a de que o filme circule por escolas, seja exibido em praças e centros culturais. No sábado da pré-estreia, a exibição acontecerá no terreiro Ylê Asè Egi Omim, liderado pela Iyálorixà Wanda de Omolu. Partiu dela, que é uma das entrevistadas, a inspiração para o título do documentário. “A certa altura da entrevista, ela diz que nosso corpos são nossos livros”, lembra Janaína. “No momento em que o corpo some, o livro fecha, e a história deixa de ser contada”.

*Os nomes foram trocados para preservar a identidade da entrevistada

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