Brasil de Direitos
Tamanho de fonte
A A A A

Diferença de renda entre negros e brancos segue igual há 40 anos, diz pesquisa

Rafael Ciscati

11 min

Imagem ilustrativa

Navegue por tópicos

Foto de topo: o economista Michael França (Reprodução/ Instagram)

Quanto o Brasil mudou nos últimos 41 anos? Desde 1982, o país saiu de uma ditadura militar, promulgou uma nova Constituição Federal e expandiu o acesso ao ensino superior. Entre sucessos e fracassos, governos mais à direita ou mais à esquerda, um problema permaneceu intocado: nas últimas quatro décadas, a desigualdade de renda entre pessoas negras e brancas continuou igual. 

Em 1982, uma pessoa branca tinha renda 14% maior que uma pessoa negra com características socioeconômicas similiares: com mesmo grau de instrução e moradia na mesma região, por exemplo. Em 2021, essa distância continuava no mesmo patamar: 13%. Ao longo do período, a disparidade média ficou em 14,25%.

Isso significa que, desde 1982, a cada R$100 ganhos por uma pessoa branca, seu vizinho negro – que estudou tanto quanto ela e desempenha as mesmas funções – ganhou R$85,75.

A conclusão é do economista  Michael França. Professor do Insper, França organizou – em parceria com o colega Allyson Portella – o recém lançado “Números da discriminação racial – desenvolvimento humano, equidade e políticas públicas”. 

O livro analisa dados compilados por levantamento nacionais — como a  Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) — ao longo das últimas décadas. Olha para diferentes campos: educação, saúde, renda, trabalho, violência. E mostra como as estatísticas evoluíram com o passar dos anos. “ Nossa intenção era reunir informações de maneira clara, de modo a orientar quem está começando a se debruçar sobre esse debate”, diz França.  “Mas os resultados de algumas das análises nos assustaram”. 

Os números reunidos por França mostram que, no Brasil dos últimos 40 anos, muita coisa não mudou. Algumas, inclusive, pioraram. 

Caso da desigualdade de renda. Para entender como o país se saiu nessa seara, os autores recorreram a mais de uma metodologia.  Primeiro, comparam a renda média de todas as pessoas negras com a renda média de todas as pessoas brancas que vivem no país.

Funcionou, mais ou menos, assim: todos os salários recebidos por pessoas brancas em um determinado ano (fossem elas altos executivos ou trabalhadores braçais) foram somados. O resultado foi dividido pelo número de pessoas brancas que viviam no país naquele período. O mesmo foi feito com as pessoas negras (entendidas, aqui, como o conjunto de pessoas pretas e pardas). 

Olhando por esse prisma, houve aparente evolução: a partir dos anos 2000, os números sugerem que a renda média dos negros começou a subir, e a se proximar da renda média dos brancos. Essa mudança foi resultado, dizem os autores, do crescimento econômico verificado no período; e da adoção de políticas sociais, como a política de valorização do salário mínimo, que beneficiaram os mais pobres. 

A redução da desigualdade avançou até 2010, quando a distância entre os dois grupos tornou a aumentar. Hoje, um brasileiro negro recebe, em média, 40% menos que um brasileiro branco. 


O problema desse tipo de análise, diz França, é que esse método ignora diferenças como o grau de instrução de cada pessoa, ou a região do país em que ela mora. A média salarial, afinal, pode variar a cada estado. 

Por isso, os pesquisadores decidiram fazer uma segunda análise, usando aquilo que chamam de “média condicional”.  A ideia era comparar as rendas de pessoas brancas e negras que tivessem características parecidas. Contrapor a renda de um executivo negro, com doutorado e que vive em São Paulo com a renda de um executivo branco, com mesmo grau de instrução e que viva na mesma cidade. 

Nesse caso, os pesquisadores descobriram que a distância entre os dois grupos é menor – gira em torno dos 14,25%. Mas não mudou ao longo dos anos. 

Ao eliminar o peso das diferenças socioeconômicas, o estudo sugere que essa disparidade de renda entre negros e brancos pode ser resultado do racismo. Ou, como pontua França, de “mecanismos discriminatórios” que “cobram da população negra um custo”.

Se as diferenças de renda continuaram iguais, na educação, regredimos. 

França e os colegas analisaram dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), que examina a qualidade do ensino oferecido aos estudantes. Compararam estudantes com realidades familiares semelhantes. Descobriram que, No 9º ano do ensino fundamental, por exemplo, alunos negros têm notas menores que seus colegas brancos. Em 2008, a diferença ficou em torno de 08 pontos a menos. Anos depois, em 2021,ela aumentou: chegou a 11 pontos. Um indicativo de que a qualidade da educação oferecida a alunos negros piorou. 

“Estamos deixando uma imensa parcela da população para trás”, diz França. “ E isso terá efeitos negativos para toda a sociedade brasileira”. Na avaliação dele, mudar esse quadro exigirá que o Brasil repense suas políticas públicas de combate à desigualdade. Será preciso, diz ele, garantir que as periferias sejam beneficiadas por um conjunto de políticas eficientes e complementares. 

Brasil de Direitos: Vocês abrem o livro relembrando como diferentes gerações de economistas brasileiros pensaram (ou não) sobre discriminação racial e sobre os efeitos dela na renda de brancos e negros. Demorou até os economistas brasileiros levarem o racismo a sério?

Michael França:  Pesquisadores da sociologia, das ciências sociais, da filosofia, do direito, já vêm, há algum tempo, estudando a questão racial no Brasil. Na economia, por outro lado, ainda não há um expoente desses estudos. As contribuições dos economistas para a agenda racial no Brasil são pontuais. O caso brasileiro contrasta com o que acontece nos Estados Unidos, por exemplo – onde, há mais de 60 anos, os economistas estudam o tema. E a economia pode prestar algumas contribuições importantes: fornecer algumas ferramentas para estimar relações de causa e efeito por exemplo. O que acontece é que essa questão ainda é muito pouco debatida nas escolas de economia do país. Estuda-se a criação de riquezas, mas é preciso estudar mais como essas riquezas são distribuídas. E avançar na avaliação econômica é estratégico para a questão racial, e também para a questão de gênero. É preciso influenciar o trabalho das pessoas que vão definir os orçamentos públicos. 

Vocês demonstram que as pessoas negras ganham, em média, 14% menos que as pessoas brancas com características socioeconômicas semelhantes. E que isso é assim há 40 anos. O Brasil está estagnado?

Nessa dimensão relacionada a salários, a gente tem essa diferença  – que fica em torno de 14,25%. E estamos estacionados nesse patamar há 40 anos. O problema não está restrito à renda. Quando a gente olha para o campo da educação, percebe que, em termos de anos de escolaridade, a distância entre brancos e negros diminuiu. Mas, em termos de qualidade da educação, a distância aumentou. Isso acontece em um cenário econômico marcado pelo forte avanço da tecnologia. Esse avanço tecnológico exige profissionais mais qualificados. Se não conseguirmos levar educação de qualidade para os jovens negros – que são a maioria da população – eles vão ficar para trás. E isso vai ter reflexos para o crescimento econômico do país todo. O Brasil está estacionado em produtividade. Se esse quadro não mudar, o país vai regredir. 

Ao comparar a renda média de todas as pessoas negras com a renda média de todas as pessoas brancas, no entanto, a conclusão foi diferente: a curva mostra que a desigualdade ainda é grande, mas vem diminuindo. Essa não é uma boa notícia?

Por essa análise, a desigualdade entre negros e brancos diminuiu até 2010 e, depois, estacionou. Hoje, a diferença fica entre 45% e 50% – pessoas negras ganham metade do que as pessoas brancas. São 13 anos de estagnação, num patamar de desigualdade ainda muito elevado. A questão é que, quando você faz esse tipo de análise, você compara indivíduos que recebem salários diferentes porque vivem em regiões diferentes. Norte e Nordeste têm, por exemplo, salários menores que Sul e Sudeste. Além disso, a população branca está mais concentrada no Sul. Você compara indivíduos de gênero diferente, não leva em conta diferenças na estrutura ocupacional. Nada. Esse tipo de análise não leva em conta nenhum desses fatores. E, mesmo assim, a diferença entre negros e brancos continua estacionada desde 2010. 

Ao comparar indivíduos com características socioeconômicas parecidas, vocês levam em contam todos esses fatores. Dá para dizer que a diferença que resta entre eles é resultado da discriminação racial? 

Na hora em que você leva em conta essas características socioeconômicas, a distância entre brancos e negros cai para 14%. Isso significa que fatores socioeconômicos – quanto tempo a pessoa estudou, em que região do país ela vive – têm um impacto muito grande na renda das pessoas. Mesmo assim, essa diferença entre negros e brancos continua a existir. A gente ainda tem que lidar com esse viés. E é importante entender isso. Precisamos que as pessoas se conscientizem cada vez mais sobre a existência de mecanismos discriminatórios, sejam de gênero ou de raça, que nem sempre se manifestam de forma explícita. Eles influenciam, inclusive, nas políticas públicas: por muito tempo, os serviços públicos se concentraram  em regiões mais centrais das cidades, onde há mais pessoas brancas. As pessoas negras foram excluídas. 

Como mudar esse quadro?

Esses números demonstram a forte persistência das desigualdades. E mostram que, se quisermos que essa realidade mude, vamos precisar repensar as políticas públicas de combate à desigualdade. Primeiramente, é preciso lidar de forma mais assertiva com esse viés discriminatório. Existe uma tendência de que as políticas públicas focalizem áreas centrais de uma cidade: lugares onde a população tem mais renda e é mais branca. Precisamos fazer com que a política pública de qualidade chegue à periferia. É preciso garantir que o indivíduo tenha acesso à um conjunto de políticas: tenha saneamento básico, Bolsa Família, acesso a métodos anticoncepcionais, educação de qualidade. Só assim, teremos uma política de real inclusão da população. 

Logo no início do livro, vocês destacam que temos, hoje, a elite negra mais numerosa da história do Brasil. Há mais pessoas negras nas universidades. Ainda que existam muitos sinais de que as disparidades raciais persistam, dá para dizer que houve mudanças culturais importantes nos últimos 40 anos?

Essa foi uma das mudanças mais positivas observadas no contexto brasileiro nos últimos anos. Dizer que acabamos com a pobreza, para mim, é balela. Porque não houve melhora estrutural: a melhora estrutural acontece quando você tira a pessoa da pobreza e ela não volta. A mudança estrutural foi essa, do aumento de pessoas negras no ensino superior. E isso não aconteceu somente por causa da política de cotas: houve uma expansão do ensino universitário. Isso é positivo por mais de uma razão. Um dos méritos é a possibilidade de criar novos modelos. Se você não tem profissionais negros na enegenharia ou na política, pode acontecer de a população negra evitar essas áreas. Além disso, conforme se criam novos modelos, é possível que estereótipos raciais aos poucos sejam diluídos. Quando eu peço um carro por aplicativo, é comum que o motorista me pergunte se eu sou músico. Isso acontece por causa da persistência de um estereótipo racial: acredita-se que pessoas negras sejam boas em música. Enquanto isso, quando você pensa em um economista, qual imagem te vem à mente? Provavelmente, um homem branco. 

Você vai gostar também:

Imagem ilustrativa
Combate ao racismo

Maria Edhuarda Gonzaga *

3 abolicionistas negros que você precisa conhecer

Para entender

10 min

Imagem ilustrativa
Mulheres

Rafael Ciscati

Mulheres são principais vítimas de violência, mas país pensa pouco em prevenção

Entrevista

11 min

Imagem ilustrativa
Combate ao racismo

Maria Edhuarda Gonzaga *

Peça de Abdias Nascimento chega ao Brasil 30 anos depois de publicada nos EUA

Notícias

8 min