Dom Pedro Casaldáliga, o bispo dos pobres e dos povos indígenas
Morto no sábado (8) Dom Pedro foi perseguido pela ditadura militar. Crítico do modelo de desenvolvimento adotado pelo Brasil, foi expoente da teologia da libertação
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Dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito de São Félix do Araguaia, faleceu na manhã deste sábado (8). Tinha 92 anos e, de acordo com informações divulgadas pela Congregação dos Missionários Filhos do Imaculado Coração de Maria, estava internado desde a última terça-feira (4) em Batatais, interior de São Paulo. Fora levado à cidade para tratar de um quadro de insuficiência respiratória agravada pelo mal de Parkinson. D. Pedro não foi diagnosticado com Covid-19.
Conhecido pela atuação em defesa dos direitos humanos, Dom Pedro participou de capítulos importantes da luta pela reforma agrária, em favor dos povos indígenas e contra a ditadura militar no Brasil. Em 2006, foi um dos instituidores do Fundo Brasil, — fundação privada que apoia projetos de defesa de direitos em todo o país. A plataforma Brasil de Direitos é um dos projetos da instituição.
A morte de Dom Pedro foi lamentada pela Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros (Apib), e por figuras da política nacional. “É com pesar que recebo a notícia do falecimento de D. Pedro Casaldáliga, notável defensor dos direitos humanos, em especial dos povos indígenas. Bispo prelado em São Félix do Araguaia, D. Pedro dedicou sua vida à proteção dos mais pobres e ao enfrentamento dos poderosos”, escreveu o ex-senador Eduarrdo Suplicy no Twitter.
“Nossa terra, nosso povo perde hoje um grande defensor e exemplo de vida generosa na luta por um mundo melhor, que nos fará muita falta” afirmou o ex-presidente Lula na mesma rede social.
Seu corpo foi velado no Centro Universitário de Batatais na tarde de sábado. De acordo com o Vaticano, o bispo emérito estava descalço, coberto por uma estola de retalhos da Nicarágua e por uma cruz peitoral feita pelos índios xavante.
Nascido em Barcelona, na Espanha, Dom Pedro mudou-se para o Brasil em 1968, tendo sido nomeado bispo da Igreja Católica em 1971. Aqui, foi um dos ícones da Teologia da Libertação. Seu lema, “Nada possuir, nada carregar, nada pedir, nada calar e, sobretudo, nada matar”, inspirou e orientou todo o seu trabalho como líder religioso e defensor dos direitos pela terra das comunidades locais.
Nos anos 70, as fronteiras agropecuárias se expandiram por territórios das regiões Centro-Oeste e Norte do país, que, até então, eram áreas preservadas e habitadas apenas por populações locais. Dom Pedro Casaldáliga foi testemunha disso. Morador de São Félix, município amazônico do Mato Grosso, viu com tristeza a devastação que o modelo econômico imposto causou em boa parte da Amazônia.
Durante mais de cinco décadas, enfrentou grandes e poderosos ruralistas, as empresas exploradoras da região e os políticos locais, na sua luta contra o trabalho escravo, a degradação do meio ambiente e os conflitos fundiários. “Continuamos sendo latifúndio, [há] 500 anos. Continuamos sendo exclusão e violência no campo, acumulação de terra. Continuamos sendo agronegócio, o latifúndio travestido. Continuamos sendo tóxico, depredação”, afirmou em 2011, à equipe do Fundo Brasil.
Como um dos principais ativistas pela reforma agrária, participou ativamente da fundação do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) em 1972 e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 1975. As organizações foram criados para tratar da questão agrária e dos direitos dos povos indígenas no Brasil. “Os governos têm uma dívida com a reforma agrária e, também, com a agrícola. Não atender a essa necessidade signi?ca impulsionar milhões de famílias para o êxodo à cidade, onde encontrarão o desemprego e a violência, que são fatais, principalmente para a juventude. É preciso ter a possibilidade de viver dignamente da terra, para acabar com o trabalho escravo, o subemprego e a mão de obra barata no campo”, avaliava.
A intensa atividade literária do bispo foi um dos instrumentos de sua militância, pela qual expressava sua indignação contra o sistema socioeconômico do Brasil rural. No mesmo ano em que foi nomeado bispo de São Félix do Araguaia, Dom Pedro escreveu a Carta Pastoral “Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social”. No texto, denunciou os prejuízos e os danos causados pelos latifundiários e os grandes projetos desenvolvimentistas, iniciados pela ditadura militar no eixo sul-sudeste da Amazônia. “O fato de ser nomeado bispo me possibilitava falar. Eu pretendia dar um grito [contra] a casa-grande e a senzala… Uns poucos tendo tudo e uns muitos sendo escravos. A carta foi assumida por muitas forças de esquerda e da Igreja mais comprometida. Nós apresentamos dados, nomes, processos. Não foi uma carta pastoral apenas teórica, de considerações religiosas, políticas ou econômicas; era uma carta que dava os detalhes minúsculos das injustiças da região.”
Por causa de resistência às violações de direitos humanos Dom Pedro foi ameaçado de morte várias vezes. Durante a ditadura militar, foi alvo de cinco processos de expulsão do Brasil. Na época, contou com a intervenção do arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns. “A própria repressão estimulava a nossa responsabilidade por todo o panorama. Não podíamos prescindir de falar de terra, censurar o governo, criticar a polícia. O que era evidente para a nossa consciência poderia se transformar num grito para os outros que buscavam a libertação”, afirmou, em entrevista concedida em 2011, para publicação comemorativa dos 5 anos do Fundo Brasil.
Na ocasião, depois de 40 anos de trabalho na Amazônia, Dom Pedro acreditava que o modelo de desenvolvimento adotado no Brasil era ainda equivocado: “Todos os grandes projetos, por definição, já são antipopulares e antieconômicos. [Eles] são para a acumulação acelerada de capital e investimento. Para o povo [local], fará falta o ritmo normal de vida, enquanto os elefantes brancos ficam por aí, como a transposição do rio São Francisco e [a hidrelétrica de] Belo Monte. É a obsessão do grande e do imediato”, refletia.
Olhava, com algum otimismo, o que considerava ser uma mudança na forma como a sociedade brasileira encarava a defesa dos direitos humanos: “Falamos de direitos com toda a naturalidade, mas, em décadas passadas, era uma palavra esquisita, de alguns fanáticos. Hoje percebemos que é uma questão radicalmente vital e essencial. Sinto que, em certa medida, os direitos humanos ainda são luxo e privilégio de alguns, que se veem mais humanos que outros humanos. E, por outro lado, quando as condições de vida humana são muito precárias, a própria dignidade humana fica proibida; há muita gente que vive a pensar apenas na sobrevivência”. Mesmo após o seu pedido de renúncia à prelazia, em 2003, sendo nomeado como seu sucessor o bispo Leonardo Ulrich Steiner, Dom Pedro continuou atuante na comunidade.
Imagem de topo: divulgação/ Vatican News
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