Elitismo no Enem pode aprofundar desigualdades raciais no Brasil
Uma decisão do governo Bolsonaro, derrubada pelo STF, dificultou o acesso de estudantes negros e pobres ao exame. Enem precisa abandonar o discurso da meritocracia
George Oliveira
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GEORGE R B OLIVEIRA – Doutorando em Educação- UFBA
Faltando pouco mais de setenta dias para realização das versões impressa e digital do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), a prova ainda provoca uma série de dúvidas, contradições e questões judiciais. Isso porque as desigualdades sociais e econômicas parecem invisíveis ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), órgão ligado ao Ministério da Educação (MEC), responsável pela organização do exame.
Hoje, o Enem 2021 ainda caminha para ser aquele com menor número de participantes dos últimos 14 anos. A prova teve 3,1 milhões de inscritos, uma fração dos 8,7 milhões de estudantes que chegou a atrair em anos anteriores.
O esvaziamento é reflexo de uma decisão tomada pelo governo Bolsonaro. O processo seletivo de 2021 tentou manter uma “punição” que já existia nos anos anteriores, mas que perde o sentido no atual contexto de crise sanitária: aqueles que foram contemplados com a isenção da taxa de inscrição no ano passado, mas faltaram à prova, não teriam direito à isenção neste ano. A prova de 2020 aconteceu no auge da crise sanitária, o que pode explicar as ausências.
Tal decisão fez parte de uma série de ações e declarações elitistas do governo Bolsonaro, referendadas por Milton Ribeiro, ministro da Educação, que em entrevista afirmou que as universidades “devem ser para poucos” e que não são úteis. Ribeiro ainda declarou, em outra entrevista, acreditar que crianças com deficiência “atrapalham” o aprendizado de outros estudantes.
Partidos da oposição e entidades ligadas à educação como a Educafro, União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes) e União Nacional dos Estudantes (UNE) acionaram o Supremo Tribunal Federal (STF) . Na última sexta-feira (3) a Corte decidiu que o MEC deve reabrir o prazo de solicitação de isenção da taxa de inscrição para o Enem. Agora, o MEC diz estudar como fará para incluir os novos inscritos. Segundo reportagem do jornal Folha de S. Paulo, há dois caminhos desenhados: adiar a realização da prova ou colocar os novos inscritos para fazer o exame na mesma data em que as pessoas privadas de liberdade.
A mudança é essencial porque, da maneira como estava planejado, o Enem excluía as parcelas mais pobres da população. De acordo com um levantamento feito pelo Sindicato das Mantenedoras de Ensino Superior (Semesp), a edição 2021 do ENEM tem, até aqui, a menor taxa de pessoas pretas, pardas e indígenas inscritas desde 2009. Os inscritos pretos para este ano representam apenas 11,7% do total, menor proporção desde 2009. Os pardos são 42,2% dos participantes, menor porcentagem desde 2012.
A tendência é de que o exame seja o mais branco e elitista dos últimos dez anos. Além disso, antes da decisão do STF, a prova também teria a menor participação de estudantes com isenção de taxa, ou seja, aqueles cuja renda familiar é de até 1,5 salário mínimo. Agora, depois da decisão da Corte, é preciso observar os próximos passos do Inep, para avaliar se esse quadro será revertido.
O Enem e o aprofundamento das desigualdades raciais
Realizado anualmente, o Enem faz mais do que avaliar o ensino médio. A prova é também essencial para que os estudantes tenham acesso a programas como o Sistema de Seleção Unificada (Sisu), o Programa Universidade para Todos (PROUNI) e o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES). Os três utilizam a participação e a nota no exame como critério de seleção.
Desde que a pandemia de Covid-19 começou no Brasil, há cerca de 18 meses, houve atrasos no calendário do ensino público, as taxas de desemprego subiram, e a imunização da juventude contra o vírus seguiu lenta — é improvável que os adolescente e jovens estejam vacinados, com as duas doses, até a realização da prova, se a data original ( os dias 21 e 28 de novembro) for mantida . Todos esses fatores sociais e sanitários afetam, ainda mais, a realidade das famílias de baixa renda. O discurso meritocrático usado pelo Inep para justificar suas decisões levam ao acirramento das desigualdades sociais no país.
Nos últimos meses, os movimentos sociais, em especial o Movimento Negro, vêm denunciando que as desigualdades têm se agravado em diversas regiões do Brasil. No país de proporções continentais, o ensino remoto evidenciou, ainda mais, que o ensino público e o privado estão separadas por um abismo social. E essas questões econômicas, sociais, políticas e sanitárias parecem ter aumentado o fosso das desigualdades sociorraciais que emergem com mais força na vida das famílias negras. A juventude negra é a mais afetada.
Dados da edição 2021 do Atlas da Violência, revelam que entre 2009 e 2019, o número de negros vítimas de homicídio aumentou 1,6%, passando de 33.929 vítimas em 2009 para 34.466 em 2019. A análise nos revela que a redução dos homicídios ocorrida no país esteve muito mais concentrada entre a população não negra do que entre a negra.
As desigualdades que separam negros e brancos também podem ser constatadas a partir da taxa de desemprego entre as mulheres negras, que é o dobro da taxa dos homens brancos, segundo análise do data_labe, laboratório de dados localizado na Favela da Maré (RJ), que realizou cruzamentos entre as pesquisas “Pnad Contínua de 2017 a 2021” e “Pandemia na Favela – A realidade de 14 milhões de favelados no combate ao novo Coronavírus”.
O Enem deveria estar atento aos próprios dados que produz a partir do questionário socioeconômica aplicado no momento da inscrição. Mais ainda: deveria provocar um debate sobre as desigualdades que podem afetar estudantes que prestarão o exame a fim de mitigar os possíveis danos em suas trajetórias escolares.
Quem sabe assim, abandonaria o discurso que flerta com a meritocracia e parece insensível às iniquidades a que grande parcela da juventude está submetida historicamente, e que tem se agravado a cada dia durante a pandemia que já ceifou a vida de mais de 580 mil pessoas no Brasil.
Geoge Oliveira (foto: Ismael Silva)
Foto de topo: estudantes chegam a um dos locais de aplicação do Enem 2019 (Divulgação/ Inep)
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