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Em Dourados, Guarani-Kaiowá vivem crise humanitária, afirmam especialistas

Em menos de duas semanas, três casas de guarani-kaiowá foram queimadas. Trator blindado é usado para destruir cultivos dos indígenas

Rafael Ciscati

6 min

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Passava pouco das 11h do último dia 06 quando os moradores da território indígena Avae’te— ocupado por indígenas Guarani-Kaiowá em Dourados, no Mato Grosso do Sul — ouviram os primeiros tiros. À distancia, era possível ver os carros que transportavam os pistoleiros se aproximando rapidamente. Não deu tempo de salvar muita coisa : deixando nas panelas a comida que preparava para o almoço, a nhandesi — uma liderança religiosa do povo Guarani-Kaiowá — arrastou para fora de casa os três filhos, de 11, 8 e 3 anos de idade. Os criminosos atearam fogo em tudo o que ficou para trás. A ação foi registrada pelos indígenas em vídeo.

A tekoha Avae’te é uma das nove áreas de retomada que se formaram, ao longo dos últimos anos, nas bordas da reserva indígena de Dourados, no sul do estado. Trata-se de um pedaço de terra que os Guarani-kaiowá entendem como sendo seu, uma vez que foi ocupado tradicionalmente por seus ancestrais, mas que o governo brasileiro nunca demarcou. É também uma área de conflito. Desde o final de agosto, de acordo com o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), pelo menos três casas de indígenas que moram na região foram incendiadas. Os responsáveis pelos ataques, segundo os Guarani-Kaiowá, são seguranças particulares — empregados das fazendas que disputam o mesmo território. “Muitas pessoas se feriram nos últimos quatro anos”, conta o antropólogo Guarani-Kaiowá Tonico Benites, que acompanha a situação em Dourados. “A cada dois meses, às vezes com maior frequência, uma casa é incendiada. As famílias vivem sob violência permanente”.
Sem ter para onde ir, conta Benites, a família vítima do ataque se abrigou em uma barraca de lona. Falta comida, e os cinco moradores da casa incendiada não têm mais roupas ou utensílios básicos. “Organizamos uma vaquinha para oferecer alguma ajuda emergencial”, afirma o antropólogo.
O clima de violência constante na região é reflexo, ao menos em parte, de uma decisão tomada pelo governo brasileiro há pouco mais de 100 anos. A reserva indígena de Dourados é hoje a mais populosa do Brasil: abriga mais de 20 mil indígenas. O tamanho da população contrasta com com sua extensão territorial: meros 3,4 mil hectares.

Criada pelo antigo Sistema de Proteção ao Indígena (SPI), a reserva fora pensada como uma espécie de abrigo transitório. Na época, as decisões do governo brasileiros eram orientadas pela ideia de que os povos indígenas deveriam desaparecer, assimilados pela sociedade nacional. “Foram criadas oito reservas indígenas no Mato Grosso do Sul. Os indígenas eram conduzidos a essas reservas para ser catequizados”, conta Flávio Machado, coordenador do Cimi em Dourados.

“Reservas” são, juridicamente e na prática, diferentes de “terras indígenas”. As terras indígenas, cuja demarcação é um dever do Estado brasileiro, estabelecido na Constituição Federal de 1988, devem ter tamanho suficiente para garantir a sobrevivência desses povos e de suas culturas. No caso das reservas, não havia esse compromisso. Pequena, a reserva de Dourados não dispõe de terra capaz de garantir o cultivo de alimentos para todos os moradores. Buscando lugar onde plantar, grupos de guarani-kaiowá deixaram a reserva e se estabeleceram no seu entorno, em áreas de retomada: acampamentos improvisados, montados em territórios de ocupação tradicional. Nesses locais, os indígenas ficam vulneráveis a ataques. “O que acontece em Dourados é uma crise humanitária”, afirma Machado.

Hoje, os Guarani-Kaiowá demandam que seu território tradicional seja demarcado. A cobrança esbarra em um nó fundiário: ao longo do final do século XIX e do início do século XX, os governos estadual e federal concederam títulos de posse dessas terras a fazendeiros, como uma forma de estimular a colonização da região e de expulsar a população indígena. Já de saída, esse quadro desenhado pelo Estado torna a demarcação de terras no Mato Grosso do Sul mais demorada e custosa. Há anos, o processo não avança. “A última novidade foi a criação de grupos de trabalho, em 2007, para discutir a demarcação”, conta Machado.

Enquanto isso, os conflitos se sucedem, num crescendo de violência. Relatos dos moradores da região dão conta de que, para destruir casas e cultivos, os seguranças das fazendas próximas das áreas de retomada utilizam uma espécie de trator protegido por placas de aço, que os indígenas apelidaram de “caveirão”. As ações das autoridades policiais são insuficientes para deter os embates. Em outubro do ano passado, o Ministério Público Federal emitiu uma nota apontando a morosidade da polícia no cumprimento de mandados de busca e apreensão. A demora, segundo o MPF, dificulta as investigações, e pode “frustar a coleta de provas do conflito”.

A situação é trágica para os indígenas. Já há décadas, os Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul amargam alguns dos piores indicadores sociais do país. São comuns os casos de suicídio. “Durante algum tempo se supôs que fosse um traço cultural daquele grupo, hoje há fortes indícios de que essa questão [dos suicídios] está associada à insuficiência de terras”, disse, em 2011, a então vice-Procuradora Geral da República, Deborah Duprat. “A reserva de Dourados é talvez a maior tragédia conhecida na questão indígena em todo o mundo”.

Nas cidades da região, os guarani-kaiowá são marginalizados e alvo de preconceito; “Dizem que os indígenas não querem produzir, que não querem trabalhar. Mas não há terra para cultivar. A demanda pela demarcação é antiga, de décadas”, conta o antropólogo Benites. “Enquanto isso, as pessoas vivem na miséria. Não há casa ou comida. Já houve mortes por desnutrição”, afirma.

Em guarani, Avae’te — o nome da área atacada — significa “terra autenticamente indígena”. O reconhecimento do direitos sobre esse território é o que os guarani-kaiowá almejam, ressalta o antropólogo. “Mas esse caso, do último dia 06, mostra como são tratados os indígenas no Mato Grosso do Sul. Eles podem ser perseguidos, suas casas podem ser queimadas, que não há punição. E a impunidade estimula novas violências”.

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