Em Dourados, Guarani-Kaiowá vivem crise humanitária, afirmam especialistas
Em menos de duas semanas, três casas de guarani-kaiowá foram queimadas. Trator blindado é usado para destruir cultivos dos indígenas
Rafael Ciscati
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Criada pelo antigo Sistema de Proteção ao Indígena (SPI), a reserva fora pensada como uma espécie de abrigo transitório. Na época, as decisões do governo brasileiros eram orientadas pela ideia de que os povos indígenas deveriam desaparecer, assimilados pela sociedade nacional. “Foram criadas oito reservas indígenas no Mato Grosso do Sul. Os indígenas eram conduzidos a essas reservas para ser catequizados”, conta Flávio Machado, coordenador do Cimi em Dourados.
“Reservas” são, juridicamente e na prática, diferentes de “terras indígenas”. As terras indígenas, cuja demarcação é um dever do Estado brasileiro, estabelecido na Constituição Federal de 1988, devem ter tamanho suficiente para garantir a sobrevivência desses povos e de suas culturas. No caso das reservas, não havia esse compromisso. Pequena, a reserva de Dourados não dispõe de terra capaz de garantir o cultivo de alimentos para todos os moradores. Buscando lugar onde plantar, grupos de guarani-kaiowá deixaram a reserva e se estabeleceram no seu entorno, em áreas de retomada: acampamentos improvisados, montados em territórios de ocupação tradicional. Nesses locais, os indígenas ficam vulneráveis a ataques. “O que acontece em Dourados é uma crise humanitária”, afirma Machado.
Hoje, os Guarani-Kaiowá demandam que seu território tradicional seja demarcado. A cobrança esbarra em um nó fundiário: ao longo do final do século XIX e do início do século XX, os governos estadual e federal concederam títulos de posse dessas terras a fazendeiros, como uma forma de estimular a colonização da região e de expulsar a população indígena. Já de saída, esse quadro desenhado pelo Estado torna a demarcação de terras no Mato Grosso do Sul mais demorada e custosa. Há anos, o processo não avança. “A última novidade foi a criação de grupos de trabalho, em 2007, para discutir a demarcação”, conta Machado.
A situação é trágica para os indígenas. Já há décadas, os Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul amargam alguns dos piores indicadores sociais do país. São comuns os casos de suicídio. “Durante algum tempo se supôs que fosse um traço cultural daquele grupo, hoje há fortes indícios de que essa questão [dos suicídios] está associada à insuficiência de terras”, disse, em 2011, a então vice-Procuradora Geral da República, Deborah Duprat. “A reserva de Dourados é talvez a maior tragédia conhecida na questão indígena em todo o mundo”.
Nas cidades da região, os guarani-kaiowá são marginalizados e alvo de preconceito; “Dizem que os indígenas não querem produzir, que não querem trabalhar. Mas não há terra para cultivar. A demanda pela demarcação é antiga, de décadas”, conta o antropólogo Benites. “Enquanto isso, as pessoas vivem na miséria. Não há casa ou comida. Já houve mortes por desnutrição”, afirma.
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