Cria da Fazenda Grande do Retiro, em Salvador, e filha de ex-empregada doméstica, Bárbara Carine mostra que temos potências pretas na periferia. Além de Doutora em Química pela Universidade Federal do Estado da Bahia, Bárbara é uma mulher negra, professora, escritora, empresária, mãe e se denomina “uma intelectual diferentona”.
“O diferentona nasce porque eu não abro mão de ser quem eu sou para performar academicamente dentro do escopo do que a universidade julga ser uma pesquisadora respeitável, como no modo de falar, de vestir e até nas minhas bases culturais, como o pagode, que eu adoro”, destaca a pesquisadora. “Faz toda diferença [deixar de ] imaginar que você veio dos escravos, para imaginar que você veio dos primeiros humanos, dos primeiros reis, rainhas e dos primeiros cientistas”. Assim, Bárbara traz para a nossa conversa a importância de pessoas negras se atentarem para qual ótica da narrativa histórica se ouve e como ela influencia na formação das subjetividades da população negra brasileira. Então, a Biko convidou Bárbara para um bate papo sobre a sua trajetória na academia, para falar do seu mais novo livro, que trata do apagamento das contribuições de pessoas negras na produção do conhecimento, e para contar detalhes sobre a iniciação científica, para pessoas pretas, no campo da Química.
BIKO: No seu livro “História preta”, além de pontuar os feitos de personalidades negras, você cita conceitos fundamentais sobre o apagamento histórico dos saberes negros. De onde surgiu a vontade de criar uma obra combativa como esta?
BÁRBARA CARINE: O livro história preta das coisas tem como finalidade apresentar 50 invenções científico-tecnológicas de pessoas negras e expor uma ancestralidade africana e afrodiaspórica científica pioneira, potente, que reconstrua uma dimensão histórica da nossa ancestralidade, retirando-a de um eixo ontológico escravocrata e mostrando que somos os primeiros humanos, os primeiros cientistas, as primeiras cientistas, os primeiros, as primeiras matemáticas, engenheiros, arquitetos, arquitetas…O que faz todo sentido uma vez que a humanidade surgiu em África há 350 mil anos. Não faria nenhum sentido a gente desaparecer do mundo para reaparecer há 400 anos para sermos escravos. Então, a finalidade do livro, a motivação fundamental, vem desse lugar de reconstrução da subjetividade no tempo presente a partir do “passado-outro”, uma lógica Sankofa. Acessando uma história, não a história eurocentrada, não uma história única ocidental que nos define enquanto subalternizados, enquanto subservientes, mas acessando uma ancestralidade, uma história-memória a partir de um marcador africano. Percebemos que os nossos ancestrais eram intelectuais, eram produtores de conhecimento e isso nos reorienta na atualidade diante do nosso entendimento acerca do que nos somos.
BIKO: Para além da academia e não só em livros, mas você também usa a internet para ampliar a propagação dessas informações. Em suas percepções, como o “descolonizando saberes” no instagram tem contribuído na luta antirracista?
BÁRBARA CARINE: A ideia é que o conteúdo chegue para a maior quantidade de pessoas possível. Estou, enquanto pesquisadora, produzindo esse conteúdo dentro do locus acadêmico, mas eu quero escrever um livro científico que chegue nas escolas, que saia desse muro da academia. Mas para além da academia, eu quero chegar nessa juventude que as vezes não lê um livro, mas que acessa essas matérias no instagram e youtube. Então, o “descolonizando saberes” tem essa finalidade de ser um repositório para os estudantes pesquisarem suas disciplinas de ciências, é um repositório para os professores fazerem pesquisas e levarem para a sala de aula, um repositório para que as famílias socializem esse ambiente virtual com seus filhos, suas filhas, netos, sobrinhos… Para que eles se potencializem com a página, então, a finalidade é de divulgação de ciência preta. Onde eu posso, eu chego buscando gerar o impacto dessa educação antirracista para além da dimensão institucional ou acadêmica.
BIKO: Conta para gente como foi o seu processo de ingresso na universidade. Quais as suas motivações? Você teve alguma referência de pessoa negra nesta fase?
BÁRBARA CARINE: Esse caminho até a universidade não foi trivial, tanto no sentido material, quanto no sentido subjetivo, afinal, eu não me via naquele espaço, eu nem sabia como entrava na universidade. Estudei no CEFET no ensino médio e lá essas oportunidades, esses olhares acerca da formação universitária se ampliaram pra mim. Mas ainda assim não era algo que dialogava diretamente comigo e aí eu me recordo de ter na Fazenda Grande duas referências, o primeiro era o Alessandro, que entrou na faculdade de Geografia antes de mim, e o Cadu, Carlos Eduardo, era meu amigo que dois anos antes tinha entrado no curso de Ciências Sociais na UFBA. Duas pessoas negras que foram referências pra mim, não só no sentido de me inspirar, mas no sentido de me educar. O Alessandro desenhou em um papel pra mim, um mapa de como eu ia pegar o ônibus da Fazenda Grande para que eu chegasse na segunda fase da UFBA. Eu já gostava de matemática e química desde o ensino médio e essa foi a minha escolha na universidade. Depois disso, foi uma escassez absurda de referências negras. Não tive professores negros na graduação, mestrado e o doutorado, ou melhor, tive apenas um no quinto semestre da graduação de Química.
BIKO: Sabemos que por muito tempo insistiu-se em afirmar que espaços acadêmicos não são pensados para serem ocupados por pessoas pretas. Tendo concluído um doutorado com 27 anos, como você enxerga esse espaço onde você marca presença, hoje?
BÁRBARA CARINE: A minha trajetória dentro da academia foi uma construção subjetiva a partir de um “não-lugar”. Mesmo sendo extremamente genial, uma menina periférica negra, filha de ex-doméstica, doutora aos 27 anos, eu não me reconhecia como cientista, não me reconhecia como pesquisadora, como intelectual, justamente por que foi uma construção subjetiva a partir de espelho quebrado. Então, toda a minha construção posterior foi no sentido de resginificar essa subjetividade, que não é só no plano particular, mas coletivo, que outras e outros que venham depois de mim se formem psicologicamente a partir de marcadores potencializadores de suas existências, das suas praticas de pesquisas de investigação.
BIKO: Você é uma mulher que transforma a sua realidade, transformando realidades, através da educação. E isso vem sendo construído não só dentro da universidade, mas logo ali do comecinho da vida escolar das crianças. Como funciona a Escola afrobrasileira Maria Felipa, a qual você é idealizadora?
BÁRBARA CARINE: A Escolinha Maria Felipa é uma escola afro-referenciada decolonial, isso por que ela também pauta conhecimentos ameríndios, conhecimentos africanos e afrodiaspóricos sem descartar os conhecimentos de base europeia. O que a gente problematiza é a centralidade do conhecimento europeu, é o eurocentrismo, o “brancocentrismo”… a gente problematiza o fato de que nós somos constituídos por três grandes marcos civilizatórios, que é o africano, o indígena e o europeu e a gente acessa apenas o conhecimento “brancocêntrico”, colonialista nos espaços escolares.
Pautamos uma educação positivada, uma pedagogia do reforço positivo. A gente não fala “isso não foi o branco que fez”, nós simplesmente apontamos aquilo que nós fizemos. Então, nós dominamos a técnica do fogo, criamos o papiro, a cerâmica, desenvolvemos as ligas metálicas, as primeiras formas de escrita, as primeiras civilizações foram nos que organizamos… são esses saberes que as crianças da escolinha Maria Felipa acessam.
Crianças negras compreendendo a potência de suas existências e, assim, se emancipando e crianças brancas compreendendo que não são o centro do mundo, que o outro é igualmente potente, necessário e humano.
BIKO: O que você diria a uma pessoa preta que tem o sonho de ingressar em uma universidade, na área de química, e está lendo essa entrevista, agora?
BÁRBARA CARINE: Eu digo não desista! É um curso difícil, de fato, mas eu sempre tive a impressão que mais difícil que os conteúdos matemáticos, físicos e químicos que eu acessei ao longo da minha graduação foi a minha trajetória. Sempre tive uma impressão que minha dificuldade maior era sobreviver nos espaços acadêmicos, sobreviver no sentido objetivo mesmo, como transporte, alimentação, EPIs, equipamentos de laboratório…
É um curso bonito, que encanta, que existe varias frentes de atuação como indústria, a sala de aula, a pesquisa… é um curso que abre janelas para campos de pesquisas-outros como atuar na área farmacológica, cosmetológica, alimentícia… ela abre um leque de atuação para você. Mas busque se aquilombar. Hoje, já conseguimos pensar em referências negras na química do Brasil e do mundo. Eu apresento os meus livros, livros do Carlo Machado, que a gente já tem apontado pra químicos e químicas negras no mundo. O @descolonizandosaberes, o @investigamenina, que também é uma página no instagram da Federal de Goiás com referências pra gente se agarrar e permitir que elas deem régua e compasso para as nossas trajetórias. Então, siga em frente! Por que essa área precisa cada vez mais de intelectuais negros e negras.
Onde encontrar Bárbara Carine:
Bárbara Carine Soares Pinheiro é mãe, mulher negra cis, nordestina, professora, escritora, empresária, formada em Química pela UFBA, mestre e doutora em Ensino de Química pela (UFBA/UEFS). Realiza estágio de pós-doutorado na Cátedra de Educação Básica – IEA USP. Atualmente professora adjunta e vice-diretora do instituto de Química da UFBA. Membro permanente do corpo docente do programa de pós-graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências (UFBA/UEFS). Líder do grupo de pesquisa Diversidade e Criticidade nas Ciências Naturais (DICCINA). Autora de livros, tais como: “@descolonizando_saberes: mulheres negras na ciência” e “História Preta Das Coisas: 50 invenções científico-tecnológicas de pessoas negras”. Idealizadora, sócia e consultora pedagógica da escola Afro-brasileira Maria Felipa (@escolinhamariafelipa). Influenciadora digital nas páginas @descolonizando_saberes (Instagram) e Uma Intelectual Diferentona (YouTube).