Em Salvador, uma comunidade relata os impactos do racismo ambiental
Há décadas, a península de Itapagipe sofre com poluição e estrutura urbana precária. Novo estudo revela caso histórico de exclusão
Maria Edhuarda Gonzaga *
10 min
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Foto de topo: A equipe do Cama,responsável pelo mapeamento, em visita a movimentos sociais da península de Itapagipe (reprodução/ Instagram)
Moradores antigos da Península de Itapagipe, área central da capital baiana, contam que a Enseada dos Tainheiros, mar que cerca a região, recebeu esse nome graças a abundância de tainhas e traineiras que por lá nadavam. A pesca era atividade comum entre os moradores, em especial as mulheres. “Era só raspar a areia da praia que os mariscos brotavam”, relembra Ana Suely Moraes. Itapagipana há 66 anos, Ana recorda que, “ainda menina”, ia de barco para o que hoje é o bairro Uruguai “catar siris com as vizinhas”. Essa realidade mudou ao longo dos anos com o processo de industrialização. Hoje, os peixes e crustáceos que vivem na enseada dos Tainheiros não servem para a pesca, devido ao risco de intoxicação por metais pesados e pelo esgoto de Salvador, que deságua nessa mesma área de maré: “Essa abundância de pesca foi substituída por um canal de bate-estaca destampado. Conseguimos ver toda a sujeira que contamina esse canal.”
Para o Centro de Arte e Meio Ambiente (CAMA), organização nascida em 1996 na própria Península, a poluição da baía dos Tainheiros é sintoma de um fenômeno que afeta toda aquela região: o racismo ambiental.
O conceito foi criado nos anos 1980, e aponta como populações racializadas – como a população negra – são levadas a viver nas áreas menos valorizadas das cidades, onde falta infraestrutura urbana e onde os serviços públicos falham.
Há dois anos, o CAMA criou o Observatório do Racismo Ambiental (ORA), uma iniciativa que estuda a maneira como o fenômeno afeta a vida de quem mora em Itapagipe. As conclusões foram recém-publicadas no estudo Mapeamento do Racismo Ambiental na Península de Itapagipe. O trabalho analisou questões como empregabilidade, renda, mobilidade, saúde e saneamento básico.
O foco da análise foram os dois lados que compõem Itapagipe, os distritos de Mares e Penha. Ambos habitados por uma população majoritariamente negra e pobre. Que sofre com o lixo que faz transbordar os canais pluviais no verão; e com os resíduos de antigas atividades industriais que, até hoje, poluem o mar na enseada.
“Em Penha, há uma população formada, basicamente, por mulheres negras. Muitas delas têm renda inferior ao salário mínimo e são chefes de família, ou seja, possuem jornada mais que triplicada”, explica Joilson Santana, pesquisador envolvido na construção do mapeamento. Há também uma grande quantidade de mulheres negras sem rendimento em ambos os subdistritos: 83,91% delas residentes na Penha e 73,96%, em Mares.
“Nosso objetivo é apontar caminhos e alternativas para enfrentar essas violações dos direitos humanos, buscando, através desse processo de formação, colocar a comunidade para discutir como enfrentar as demandas identificadas”, aponta o pesquisador.
O histórico de exclusão em Itapagipe é antigo, e remonta à primeira metade do século XX. A partir dos anos 1940, a região atraiu a indústria têxtil, de cigarros e de beneficiamento de cacau. Cerca de 120 empresas se instalaram na península interessadas na proximidade com o porto de Salvador e com a linha férrea, que facilitavam o escoamento da produção.
Conforme a importância econômica da região crescia, aumentava também a população local. Mal remunerados, e sem contar com o devido suporte do governo, os recém-chegados construíam casas desordenadamente. Logo, as novas construções invadiram a água: na década de 1970, a península de Itapagipe ficou conhecida no mundo todo por abrigar a maior favela de palafitas das Américas, Alagados. Para aterrar o mar e estender a faixa de areia, a população usava lixo descartado pela população de Salvador. “O que não prestava da cidade alta vinha para aterrar o nosso espaço”, lembra Ana Suely.
A situação se agravou por volta dos anos 1970, quando as indústrias de Itapagipe migraram para a região metropolitana de Salvador. Os empregos minguaram. “Na península ficou o passivo ambiental do primeiro ciclo industrial estadual, levando à organização social dos moradores para lutar por direitos diante dos crimes ambientais que as empresas cometeram, inclusive, ao deixar o território sem política de reparação”, escreve a equipe do Mapeamento.
Ao longo dos anos 1990 e 2000, programas governamentais de moradia substituíram as casas de palafita por moradias de alvenaria. O avanço foi resultado da pressão exercida pelos movimentos populares organizados na península. A qualidade de vida na região melhorou, mas restaram problemas graves.
Além da questão econômica exposta no levantamento, quem vive em Itapagipe enfrenta alagamentos, agravados pela má gestão dos resíduos descartados pela população. Cercada de água e abaixo do nível do mar, Itapagipe sofre sazonalmente com o aumento da maré, que por vezes invade as casas e impede a circulação das pessoas por horas e, às vezes, até dias.
Ana Suely conta que a falta de regularidade na coleta de lixo e o desconhecimento dos moradores sobre como descartá-los estão diretamente relacionados às enchentes. “Muitas vezes não sabemos o horário que o caminhão de lixo vai passar, então as pessoas deixam os sacos na rua o dia inteiro, o que facilita para os cachorros rasgarem e espalharem tudo, entupindo os bueiros. Quando chove, alaga. Além de regularidade no serviço, o estado ainda precisa investir muito em educação ambiental para que as pessoas tenham mais consciência sobre como despejar seus lixos.”
A perda de bens materiais nesses episódios também se deve à maneira como as casas foram projetadas. A maioria foi construída através do programa governamental Minha Casa Minha Vida, numa tentativa do Estado de retirar os itapagipanos das palafitas. “As moradias foram construídas a partir de décadas de brigas com os moradores para decidir a melhor maneira de lidar com essa questão”, diz Ana Carine Oliveira, mestranda em Desenvolvimento e Gestão Social e integrante do CAMA.
Apesar da transição para terra firme ter sido bem-sucedida, moradores da Penha relatam que a qualidade das casas distribuídas foi diferente de acordo com o território de Itapagipe. Era recorrente, segundo Ana Carine, que janelas tortas e banheiros disfuncionais fossem entregues aos itapagipanos que residiam em áreas menos turísticas ou nobres da península. A Comissão de Articulação e Mobilização dos Moradores da Península de Itapagipe chegou a questionar o governo baiano a respeito dessas diferenças. Segundo a resposta do governo, as casas diferentes faziam parte de outro programa habitacional. O governo também diz que a diferença estava apenas no terreno escolhido para construção – os materiais e a estrutura utilizada de base seriam as mesmas.
A pesquisadora Ana aponta que o racismo velado ainda acontece dentro do mesmo território, espelhado pelas condições ambientais distintas convivendo em Itapagipe. “Atualmente debatemos por um território sem segregação, mas as casas construídas na Baixa do Bonfim são diferentes das construídas no que era Alagados. Temos várias ‘Salvador’ com níveis de desigualdade propositais”, afirma.
“É como se o poder público dissesse: ‘para quem já morou em palafitas, qualquer coisa está bom’. Essa é a sensação que eu tenho”, diz Ana Suely, a itapagipana que ouvimos no começo da matéria.
A Salvador de Itapagipe ainda sofre com os passivos ambientais e econômicos deixados na Península pela industrialização da década de 1950. Instaladas junto da costa, as empresas utilizaram-se da larga área de maré para despejar efluentes e resíduos sólidos. Esses poluentes são, em sua maioria, mercúrio e derivados do petróleo, sedimentados no fundo das regiões de manguezal e observados em concentrações acima do recomendado.
A população teme que o contato com esses metais pesados acarrete problemas de saúde. “Os estudos ainda não apontam uma correlação entre a saúde dos moradores com esse problema, mas não se pesca mais naquela área porque os poucos mariscos restantes provavelmente estão contaminados”, diz Ana Carine.
Em 2014, o Ministério Público Federal na Bahia (MPF-BA) ajuizou uma ação civil pública contra a Braskem S.A. A empresa é a atual dona da antiga Companhia Química do Recôncavo Baiano que, de acordo com o MPF, poluiu a enseada dos Tainheiros ao despejar cloreto de mercúrio diretamente no mar. O MPF cobra que a Braskem repare os prejuízos ambientais e pague uma indenização por danos morais coletivos.
O processo tramita no Tribunal Regional Federal da Primeira Região. A Brasil de Direitos, o TRF1 informou que “os processos seguem a ordem de antiguidade, observadas as preferências legais, metas do CNJ ou urgência do caso. No caso citado, os autos estão no fluxo prioritário para inclusão oportuna na pauta de julgamento”.
Mesmo que o contato direto com a área poluída não seja recomendado, a falta de oportunidades de lazer na Península faz com que os jovens soteropolitanos entrem na área com poluentes sedimentados e no canal de escoamento que corta Itapagipe. No canal, água da chuva e esgoto se misturam. “As crianças brincam na saída do esgoto. A Empresa Baiana de Águas e Saneamento (EMBASA) sinaliza que ali é água tratada da chuva, mas há várias canalizações clandestinas que desaguam naquele espaço. Em março, época de maré cheia, a água da Enseada dos Tainheiros se encontra com a água contaminada. Já solicitamos os estudos dessa água para ver se era, de fato, tratada, mas não obtivemos êxito.”
Brasil de Direitos entrou em contato com os órgãos ambientais que fazem parte da prefeitura municipal de Salvador, dentre eles, a Secretaria Municipal de Sustentabilidade e Resiliência e o Sistema Estadual de Informações Ambientais e Recursos Hídricos. Até o momento da publicação da reportagem, não recebeu retorno.
Os integrantes do CAMA fazem uma distinção de termos quando definem a Península de Itapagipe: é um território empobrecido por política de Estado, e não pobre por natureza. Os diálogos da organização com o município são constantes: a briga é por acesso a condições que possibilitem o desenvolvimento da população itapagipana. “Quando discutimos racismo ambiental em Itapagipe, frisamos que não é só a casa. É o lazer, a escola, a mobilidade, a geração de trabalho e renda, a saúde e também a qualidade de moradia. Não é viável que em um território de mais de 162 mil pessoas, tenhamos só dois postos de saúde, nenhuma ciclovia para nos transportar de um bairro para o outro e uma família de seis pessoas morando em uma casa com dois quartos”, finaliza Ana Carine.
*Estagiária sob supervisão de Rafael Ciscati
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