Envelhecimento de mulheres negras é marcado por exclusão previdenciária
Altos índices de desemprego e informalidade impedem que muitas mulheres negras contribuam com a Previdência Social e enfrentem dificuldade para se aposentar
Revista Afirmativa
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por Por Karla Souza e Patrícia Rosa, da Revista Afirmativa
Dona Maria do Rosário*, de 61 anos, é uma mulher negra que, como tantas outras, não conseguiu contribuir para a previdência social durante a maior parte da sua vida de trabalho. Durante seus anos de atuação como trabalhadora doméstica, diarista, auxiliar de serviços gerais e cabeleireira autônoma, ela não coletou a previdência social.
Ela relata que, ao longo dos anos nestes trabalhos, chegou a cumprir uma carga horária de dez horas diárias, sem direito a horas extras, auxílio alimentação, transporte, muito menos teve acesso a direitos como carteira assinada e contribuição ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
“O que ganhava mensalmente era menos da metade de um salário mínimo. Esse valor mal cobria a cesta básica, o que me impedia de contribuir ao INSS. Hoje, vejo o quanto perdi por não poder contribuir com a previdência como autônoma”, relatou dona Maria.
Aos 54 anos, após ingressar pela primeira vez em um trabalho formal numa empresa de Feira de Santana (BA), desenvolveu lesões graves no ombro, braço e coluna após três anos e meio de serviço. Mesmo assim, continuou trabalhando até ser dispensada pelo empregador. Dona Maria do Rosário ficou então sem renda e sem emprego.
“A ausência de contribuições para a previdência afetou diretamente a minha vida, especialmente ao perceber que, por conta da doença, poderia ter me aposentado mais cedo se tivesse contribuído”, lamentou a trabalhadora.
Previdência Social
A Previdência Social é um seguro adquirido por meio de uma contribuição mensal que garante ao segurado uma renda no momento em que ele não puder trabalhar. Através da contribuição, os trabalhadores garantem o direito a benefícios como aposentadoria, pensão por morte, auxílio-doença, licença maternidade, benefício de prestação continuada (BPC) e reabilitação profissional.
No entanto, os dados mostram que o Brasil não é um país seguro para o envelhecimento sossegado e digno de mulheres negras. Em 2016, 19,2% delas estavam desprotegidas pela previdência e sem capacidade contributiva. O percentual subiu para 21,2% em 2022, segundo dados da plataforma Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que teve sua nova versão lançada em agosto deste ano.
O técnico de planejamento e pesquisa do Ipea, Antônio Teixeira Lima, avalia a diminuição da contribuição de mulheres negras ao longo dos anos, como relacionada à divisão sexual do trabalho, que impõe às mulheres o trabalho reprodutivo, funções relacionadas aos trabalhos domésticos, cuidados com crianças e idosos.
Conforme Ivonildes Fonseca, vice-reitora da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e doutora em sociologia, a exclusão previdenciária das mulheres negras tem raízes históricas profundas, ligadas à escravidão e ao racismo estrutural no Brasil. “A discussão sobre exclusão dos direitos sociais da população negra não pode ser desvinculada do legado de quase quatro séculos de escravização. Esses fatores históricos perpetuam-se em todas as relações sociais, como no trabalho, nas igrejas, nas escolas e nas políticas públicas.”
A pandemia da Covid-19, aumentou o desemprego entre mulheres negras, o número de desempregadas negras deu um salto em dois anos: saiu de 4,4 milhões em 2019 para 7,3 milhões em 2021, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PnadC), do IBGE. Fato compreendido por Antônio Teixeira, como um dos fatores que contribuíram para o quadro de desamparo previdenciário atual das mulheres negras.
“Na pandemia, com a desestruturação das redes formais e informais de cuidado, a atribuição socialmente auferida às mulheres do trabalho de cuidado causou impacto mais significativo em sua taxa de participação na força de trabalho, motivo pelo qual muitas mulheres migraram para a desocupação ou para a inatividade”, apontou o técnico do IPEA.
Uma amarga realidade para um país onde as mulheres negras são o maior grupo populacional. A advogada e pesquisadora do Núcleo de Direito do Trabalho Além do Trabalho da Universidade de São Paulo (USP), Cláudia Luna, que atua na defesa e garantia dos direitos das mulheres, reforça que as mulheres negras estão na base da sociedade, enfrentando a ausência de direitos e sofrendo diversas violências.
“Temos o fenômeno da feminização da pobreza. Quando essa mulher negra não tem outra escolha senão prover o sustento da família, você acredita que, entre comprar o arroz, o feijão e o angu para alimentar seus filhos, ela terá condições de separar um valor para contribuir com a previdência social? Não tem como!”, ressalta a advogada.
Em seu relato, Maria do Rosário* comenta sobre a falta de informação e orientação sobre os direitos que lhes foram negados, “é urgente que ocorram mudanças e que haja maior divulgação sobre os direitos previdenciários”. Fato reforçado por Claudia Luna.
“Se ela não conhece esses direitos, também não se considerará como destinatária do sistema, o que deveria ser para ela também. A primeira coisa que dizem é: ‘Eu não tenho condição’, ‘a previdência não é para mim’. Há mulheres negras se aposentando com 75 anos, após uma vida inteira de trabalho como empregadas domésticas sem registro ou na economia informal”, aponta.
Cláudia Luna também considera a precariedade do empreendedorismo como um problema grave. Segundo uma pesquisa realizada pelo Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE) em 2021, 47% das mulheres que empreendem no Brasil eram negras. A advogada explica que seria interessante que essas mulheres fossem incentivadas não apenas a empreender para produzir, mas a empreender de maneira sustentável, pensando no longo prazo, na garantia de sua própria existência.
“Quando se fala sobre o empreendedorismo de mulheres negras, é geralmente visto de uma forma exploratória. Não se pensa na sustentabilidade do empreendedorismo da mulher negra a longo prazo, incluindo a questão dos direitos que ela pode ter, como os direitos previdenciários”, explica.
Informalidade
A informalidade e a precarização do trabalho são uma constante para as mulheres negras, obrigadas a adotar estratégias de sobrevivência que dificultam sua contribuição para a Previdência Social. “A maioria dessas mulheres são responsáveis, sozinhas, pelo sustento de suas famílias. Com uma carga horária extenuante e salários que muitas vezes não cobrem nem o custo da cesta básica, a contribuição previdenciária é simplesmente inviável”, analisa Ivonildes.
Ela observa que, devido à falta de acesso a creches públicas e à inadequação dos horários de funcionamento dessas instituições, muitas mães negras recorrem ao trabalho informal, como vender doces na rua ou lavar roupas para sobreviver.
Ivonildes destaca ainda que a precarização não se limita ao trabalho doméstico tradicional. Atualmente, muitas empregadas domésticas estão sendo contratadas como microempreendedoras individuais (MEI), o que garante alguns direitos previdenciários, como aposentadoria por idade e auxílio-doença, mas não cobre outros direitos previstos pela Consolidação das Leis de Trabalho (CLT), como férias e 13º salário.
“Essas mulheres estão cada vez mais sendo empurradas para contratos informais, onde não têm a proteção de um vínculo empregatício formal”, apontou.
A importância de políticas públicas inclusivas
Neste ano, foi aprovado a proposta que concede, pelo INSS, um aumento de 25% sobre o valor da aposentadoria para segurados que necessitam de assistência diária para realizar suas atividades cotidianas. Esse adicional é destinado a aposentados que precisam contratar cuidadores devido a limitações físicas. No entanto, um projeto de lei que tramita na Câmara desde 2018 propõe estender esse benefício a todos os tipos de aposentadoria, como por tempo de contribuição e por idade, e não apenas para aposentadorias por invalidez.
Assim como tal iniciativa tem como objetivo proporcionar mais apoio financeiro às famílias que precisam arcar com os custos de cuidados para os aposentados, permitindo uma melhor qualidade de vida para essa população, as mulheres negras precisam de políticas públicas que entendam os recortes e atravessamos que as alcancem.
Ivonildes Fonseca enfatiza a necessidade urgente de políticas públicas que incluam mulheres negras no sistema previdenciário. “São necessárias creches em tempo integral, salários dignos, campanhas de conscientização sobre paternidade responsável e a criação de programas que incentivem a escolarização e a profissionalização dessas mulheres. Sem isso, continuaremos a ver mulheres negras sendo excluídas dos direitos previdenciários e sociais.”
Ela também pontua que é fundamental combater o racismo institucional, que perpetua a exclusão social e econômica dessas trabalhadoras. Fonseca defende que os parlamentos precisam entender que políticas públicas que promovam a inclusão não são favores, mas uma responsabilidade para com uma população historicamente desamparada.
“A população precisa ter acesso a informações por meio das redes sociais, palestras e até panfletos, para que, diante das adversidades, possamos ter maior conhecimento sobre nossos direitos como segurados e entender a importância de contribuir para a previdência social o quanto antes”, finaliza Dona Maria do Socorro*, que torce para conseguir se aposentar em breve.
* Identidade da fonte mantida em sigilo para preservar sua segurança e privacidade.
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