Escola leva pioneiras do movimento trans para o Carnaval na Sapucaí
Enredo da Paraíso do Tuiuti conta a história de Xica Manicongo, primeira travesti não-indígena do Brasil. Carro do traviarcado contará com ativistas históricas do movimento trans

Rafael Ciscati
6 min

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Era já começo de noite, em junho do ano passado, quando a ativista Jovanna Cardoso recebeu um telefonema inesperado. Jovanna Baby — como é conhecida entre militantes — se notabilizou ao criar, em 1992, a Associação de Travestis e Liberados (Astral), a primeira devotada aos direitos dessa comunidade. Antes disso, no final da década de 1970, reunira as colegas para denunciar a violência policial de que as travestis eram alvo em Vitória (ES). O trabalho lhe valeu o reconhecimento como iniciadora do movimento trans no Brasil.
Quem ligava era Bruna Benevides, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Desde abril daquele ano, Bruna trabalhava como consultora da escola de Samba Paraíso do Tuiuti. A agremiação de São Cristóvão, zona Norte carioca, preparava um samba-enredo sobre Xica Manicongo: a escravizada que, tendo vivido na Salvador do século XVI, é hoje considerada a primeira travesti não-indígena brasileira.
“A Bruna procurava lideranças trans para participar do desfile”, lembra Jovanna. “E eu fui a primeira pessoa que ela convidou. Chorei de emoção”. Naquela noite, Jovanna “amanheceu o dia em claro”. Animada com a proposta, que aceitou de pronto, não dormiu um só minuto.
>>Leia também: No 1º encontro de travestis e transexuais, ativistas cobram segurança para atuar
Não que Jovanna Baby seja uma mulher carnavalesca. “Só desfilei duas vezes a vida toda”, conta. Acontece que, num dos países que mais mata pessoas trans e travestis em todo mundo (foram 122 assassinados em 2024, segundo levantamento da Antra), um samba-enredo protagonizado por elas tem um quê de revolução. “Meu sentimento é de reparação”.
Jovanna será uma das 28 traviarcas do desfile “Quem tem medo de Xica Manicongo”, que a escola carioca leva para a Sapucaí no próximo dia 4. “Traviarca” é como a comunidade chama as travestis mais velhas. Trata-se daquelas que lançaram as bases para que o movimento ganhasse corpo no Brasil. E que, ao sobreviver num país transfóbico – onde a expectativa de vida de uma pessoa trans é de 35 anos – fizeram da própria vida um ato de resistência.

Deborah Sabará, do Grupo Gold: “Esse desfile é um ato político” (Foto: reprodução Instagram)
Além dela, o carro do traviarcado vai ser composto por nomes como Gilmara Cunha, fundadora do Grupo Conexão G, da favela da Maré (RJ). E pela capixaba Deborah Sabará, do Grupo Orgulho, Liberdade e Dignidade (GOLD). “Vou desfilar na Sapucaí, mas meu sentimento é o de participar de um evento político”, conta Deborah, sem esconder a animação. Ela é apaixonada pelo Carnaval: só em 2025, já saiu por seis escolas de samba do Espírito Santo. O desfile do próximo dia 4 será sua estreia na Sapucaí. “E não vou encenar o papel de uma personalidade histórica. As homenageadas seremos nós mesmas. Isso é incrível”.
O convite para desfilar na Sapucaí soa a Jovanna como uma espécie de coroação de uma trajetória que já dura mais de quatro décadas. Ela saiu de casa aos 13 anos de idade, para “me tornar a mulher que eu tinha o direito de ser”. Rumou para Vitória, capital do Espírito Santo. Naquele tempo, início dos anos 1970, termos como “transexual” e travesti não faziam parte do léxico nacional. “Nas ruas, diziam que éramos homens que se vestiam de mulher”, diz ela. “Levou um tempo até que eu me entendesse como uma mulher transgênero”.
A polícia capixaba tampouco entendia de identidade de gênero. Mas isso não impedia que os soldados identificassem as travestis como alvo preferencial da violência fardada. “As pessoas aplaudiam quando os policiais nos espancavam na rua”, relatou a ativista à Brasil de Direitos em 2022.
Foi por se revoltar contra a violência do Estado que Jovanna resolveu se organizar politicamente. Ela tinha 20 anos e estava na fila do cinema, aguardando a próxima sessão, quando foi presa, acusada de vadiagem. Foi o estopim: naquele mesmo ano, convocou as colegas para fundar a Associação das Damas da Noite do Espírito Santo, dedicada a promover os direitos de prostitutas e mulheres trans. Hoje, aos 65 anos, Jovanna dirige o Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (Fonatrans).

Matéria da extinta revista Manchete sobre a fundação da Astral. Associação foi a primeira inteiramente devotada aos direitos de travestis e transexuais (Foto: Divulgação)
Nas suas histórias de insubmissão, ela e as demais traviarcas se assemelham à Xica Manicongo, homenageada da Paraíso do Tuiuti. Nascida no Congo, ela chegou a Salvador por volta do final do século XVI. Por aqui, recebeu o nome de Francisco.
Sua história foi redescoberta pelo antropólogo baiano Luiz Mott, fundador do Grupo Gay da Bahia. As pesquisas de Mott mostram que Xica chamou a atenção da sociedade colonial ao se vestir com roupas consideradas femininas. Na sua terra natal, ela era uma quimbanda, espécie de sacerdotisa que os europeus do período descreviam como “feiticeiros sodomitas”.
No artigo “Raízes históricas da homossexualidade no Atlântico lusófono negro”, Mott reproduz um relato deixado por Giovanni Montecuccolo, padre capuchinho que viveu entre Angola e o Congo no final do século XVII. De acordo com o religioso, o quimbanda “para sinal do papel a que está obrigado pelo seu ministério, veste […] e usa maneiras e porte de mulher, chamando-se também a ‘grande mãe’”.
Por causa da maneira como se vestia, Xica foi denunciada ao tribunal da Santa Inquisição. Julgada e condenada, morreu queimada em praça pública. Na década de 2000, o movimento de transexuais se apropriou do então “Francisco” e o reinventou como Xica. Ela virou símbolo de resistência. “A bicha, invertida e vulgar/ A voz que calou o “Cis tema”/ A bruxa do conservador / O prazer e a dor”, canta o samba-enredo da Tuiuti.
Para as traviarcas que vão marcar presença na Sapucaí, essa quinta-feira (27) que antecede os desfiles foi dedicada aos últimos ajustes. Deborah Sabarah, que mora em Vitória (ES), arruma as malas, e deve aterrissar no Rio de Janeiro na sexta. Já Jovanna passou a manhã provando a fantasia que usará na avenida. Interrompeu a tarefa somente por alguns minutos, para conversar com Brasil de Direitos. O figurino delas ficou à cargo do estilista Almir França. “E está deslumbrante” garante Jovanna. Até o dia do desfile, ela quer arrumar o cabelo e se bronzear. “Vou ser uma traviarca bonita na avenida”.
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