“Estamos exaustos”: depois de um mês, como ativistas reagem à crise no RS
Organizações da sociedade civil gaúchas se mobilizaram para amparar população. Conforme a emergência se estende, precisam de apoio, e reforçam importância da atuação do Estado
Rafael Ciscati
7 min
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Foto: Divulgação/ Levante Popular da Juventude
A psicóloga Mariana Dambroz ainda cruzava o trânsito de Porto Alegre, na última quarta-feira (22), quando começou a chover. Mariana é militante do Levante Popular da Juventude, um movimento social surgido na capital gaúcha em 2006. Naquela tarde, seu destino era uma das cozinhas populares que o Levante gerencia desde o começo de maio – quando Porto Alegre inundou e, em todo o estado, mais de 500 mil pessoas tiveram de deixar suas casas. Acostumados a organizar mobilizações e discussões políticas, os militantes do Levante se movimentaram para alimentar quem precisasse. Diariamente, o grupo chegou a produzir e distribuir até 1500 marmitas. Foi assim até aquela quarta. Em 12 horas, choveu na capital gaúcha o esperado para o mês inteiro. Não demorou muito para o celular de Mariana apitar com mensagens urgentes. “Eram os colegas me dizendo que a nossa cozinha tinha inundado”, contou Mariana à Brasil de Direitos dois dias depois, na tarde de sexta-feira. “Só consegui pensar: ‘e agora, como é que a gente vai preparar a comida?”.
Localizada num bairro periférico e alto, a Cozinha Popular da Juventude, onde Mariana trabalha, tinha passado incólume pelas inundações até ali. Ela fora montada, meio que de improviso, em um barracão usado como espaço para reuniões pela Associação de Moradores da Vila Cruzeiro. No dia 1º de maio, o Levante utilizou o espaço como cozinha pela primeira vez, durante as comemorações pelo Dia do Trabalhador. Na ocasião, as fortes chuvas já tinham causado estragos no interior do estado. Era questão de tempo até que a emergência atingisse Porto Alegre. “Percebemos logo que o trabalho de produção de marmitas ia ter de continuar”, afirma Mariana.
Nos 20 dias seguintes, o grupo se desdobrou para adequar o espaço. Conseguiram dois fogões industriais, doados. E construíram, na frente do barracão, gazebos sob os quais a comida preparada na cozinha passou a ser acomodada nas marmitas. Logo, a cozinha da Vila Cruzeiro virou uma central de operações, onde o Levante recebe doações e redistribui para as outras 10 cozinhas populares administradas pelo grupo em todo o estado. Divididos em turnos, os voluntários e militantes chegam a trabalhar mais de oito horas por dia.
Por isso, quando as chuvas tornaram a atingir a cidade naquela quarta-feira, todos já estavam cansados. Era um momento em que as águas da inundação pareciam baixar, e pessoas se preparavam para limpar o entulho deixado pela enxurrada. O sistema de esgoto de Porto Alegre entrou em colapso. Saindo aos borbotões pela pia e pelos ralos, a água invadiu a cozinha da Vila Cruzeiro. Na sexta-feira, quando conversou com a reportagem, Mariana e os colegas já haviam limpado o espaço. Temiam novo revés. “ A situação está caótica. Chove em Porto Alegre, e está ventando muito”, contou Mariana. “Estamos exaustos”.
Foto: Ricardo Stuckert
Desde que as inundações no Rio Grande do Sul começaram, no dia 29 de abril, movimentos sociais e organizações da sociedade civil de todo o estado tiveram de mudar seu curso de ação. Hoje, a emergência já dura mais de um mês, e todos esses voluntários veem emergir novos problemas. Do cansaço acumulado às doações que rareiam. Agora, ativistas gaúchos repensam ações sem saber quando a vida vai retomar qualquer sinal de normalidade.
É o caso da equipe da ONG Somos. Criada em 2001, a Somos atua em defesa dos direitos da população LGBTQIA+. Trabalha em várias frentes: propõe ações coletivas na Justiça, orienta sobre cuidados em saúde, realiza pesquisas. O prédio onde funciona, no centro de Porto Alegre, inundou. Ainda que a água não tenha atingido o escritório do grupo, no segundo andar, ela invadiu o fosso do elevador e comprometeu as instalações elétricas. Coordenador da ONG, o advogado Caio Klein conta que, na unidade básica de saúde vizinha, com a qual o grupo costuma atuar proximamente, a água ultrapassou 1,5m de altura. Medicamentos caros, como antirretrovirais usados no tratamento do HIV, se perderam na enchente.
Sem previsão de quando vão retornar à sede, os ativistas da Somos passaram a atuar nos abrigos para onde foi a população mais afetada. De segunda a quinta-feira, prestam atendimento jurídico e psicossocial a quem precisar. “A ideia, por ora, é fazer atendimentos gerais. Não estamos focando na população LGBTQIA+”, conta Klein. “Mesmo assim, quando chega no abrigo, a equipe faz uma busca ativa. Procura saber se há pessoas transexuais abrigadas, por exemplo”.
Por meio de um projeto financiado pela Unaids, o programa das Nações Unidas para HIV e aids, o grupo pretende reforçar esse atendimento itinerante, e produzir uma cartilha com informações emergenciais, de modo a auxiliar no atendimento de pessoas LGBTQIA+ e com HIV nos abrigos. Klein conta que não eram esses os planos originais. “Mas, diante da emergência, não tinha como manter os planos inalterados”.
Nos abrigos, a principal demanda que chega à ONG é a de atendimento psicológico. Forçadas a sair de casa, as pessoas estão traumatizadas. O mal afeta, inclusive, os ativistas da Somos. Alguns também sofreram perdas. Mesmo quem não foi diretamente atingido pela água sofre a pressão da tragédia. “Temos tentado fortalecer nossas redes de apoio”, conta Klein. “Na medida do possível, tentamos ficar inteiros, para continuar o trabalho de ajudar outras pessoas”.
Conforme o tempo passa, aumenta ainda a preocupação em relação às pessoas desabrigadas. Coordenadora do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Alexania Rossato conta que, atualmente, a emergência assume características distintas em diferentes pontos do Estado. Na região metropolitana de Porto Alegre e na região das ilhas, ainda há pontos de alagamento. No Vale do Taquari, em cidades como Arroio do Meio, as águas já baixaram. Deixaram, atrás de si, um rastro de destruição. “Muita gente ficou sem casa, e continua vivendo em abrigos”, afirma. “As moradias foram destruídas, e as famílias não têm para onde voltar”. Na região metropolitana, ela conta que há pessoas vivendo em barracas na beira de estradas.
Desde o começo de maio, o MAB apoia o trabalho de produção e distribuição de alimentos em cozinhas populares de todo o estado. Alexania estima que esse trabalho terá que continuar por ainda muito tempo, mesmo que as águas regridam, visto que as pessoas não têm onde morar. “A persistência dessa calamidade, caso o acesso à moradia não seja logo resolvido, vai agravar a situação das pessoas e representar uma violação de direitos”, assevera.
O movimento cobra que o poder público atue com celeridade na reconstrução de casas. É uma corrida contra o tempo: logo, as temperaturas na região Sul devem cair com a chegada do inverno. “Quem é gaúcho sabe que o frio congela até a vontade da gente. A luta contra o inverno nos preocupa muito”.
Nas cozinhas do Levante, o que preocupa Mariana sãos as doações que escasseiam. Conforme os dias passam, voluntários que tinham se deslocado para apoiar o trabalho nas cozinhas retomam seus empregos habituais, e já não podem ajudar. Ao mesmo tempo, a comida doada na primeira onda de solidariedade vai acabando. Na semana passada, conta Mariana, ela já não foi suficiente para atender a toda a demanda por marmitas. “Deixamos de preparar 40 refeições, por falta de mantimentos”. Nos mercados, diz ela, os preços dispararam.
“O Levante nos ensina a ser resilientes”, diz Mariana, contando que, apesar dos problemas e do cansaço, vai continuar com o trabalho de amparo à população. “Mas não temos como atravessar essa crise sem apoio do Estado. Os movimentos sociais estão trabalhando. Mas essa emergência evidencia que precisamos de um Estado mais presente”.
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