Estamos na era da demarcação de telas, diz liderança indígena
Luene Karipuna fala sobre a importância de formar comunicadores indígenas: “mostramos a nossa diversidade como ela é”
Maria Edhuarda Gonzaga *
11 min
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por Luene Karipuna, em depoimento à Maria Edhuarda
Nossa luta não é só pelo arco e flecha e pela caneta, mas pelo computador e pelo celular.
Meu nome é Luene Karipuna, tenho 25 anos e atuo como comunicadora indígena na Amazônia em conjunto com a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e algumas organizações de base do estado do Amapá. Também dou suporte a coletivos indígenas a nível nacional e sou acadêmica do curso de licenciatura intercultural indígena.
Minha história com a comunicação começou na pandemia. Havia um tempo que eu me incomodava com as “homenagens” que as pessoas do Amapá prestavam aos povos indígenas no dia 19 de abril, quando se comemora o Dia dos Povos Indígenas no Brasil. Por não conhecer os povos que vivem no estado, usavam as imagens de indígenas de outras regiões, como os Kayapó, que estão no Mato Grosso e no Pará.
Sempre tive o desejo de mostrar que os povos indígenas existem aqui e que somos importantes para o estado. Prova disso é que o Amapá tem o maior índice de preservação ambiental do país. É uma forma de promover o governo daqui, mas não se fala que essa preservação existe por causa dos povos tradicionais que vivem no estado: os Karipuna, os Palikur, os Galibi Marworno e os Galibi Kalinã.
Em 2020, surgiu um projeto da COIAB em parceria com a The Nature Conservancy (TNC) voltado para a formação de comunicadores indígenas. Na época, eu não tinha dinheiro nem equipamento para acessar as aulas online, mas fazia muito tempo que eu sonhava com essa oportunidade. Simone Karipuna, então coordenadora da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Amapá e Norte do Pará (APOIANP), custeou meu deslocamento do Oiapoque — onde eu morava — para Macapá e me abrigou na casa dela pelos seis meses da formação. Realizei todas as atividades por meio de um celular doado.
Quando estava no final dessa formação, a COIAB conseguiu financiamento para outro projeto, dessa vez voltado a levar informação de qualidade para dentro do território. Na época, no meio da pandemia de covid-19,as notícias falsas circulavam muito. Os parentes não queriam se vacinar, estava uma loucura. O povo Palikur, por exemplo, recebeu um vídeo via Whatsapp que mostrava pessoas tomando a vacina e se transformando em zumbi. O vídeo foi montado de uma forma tão verdadeira que eles acreditaram.
Esse novo projeto nos deu mais um celular e uma bolsa para produzir conteúdo. Como as coisas começaram a melhorar, fizemos muitas ações voltadas a explicar sobre a vacina. Eu tinha grande visibilidade no território e já tinha trabalhado com as lideranças no Conselho de Caciques dos Povos Indígenas do Oiapoque, então eles confiavam em mim. Pensando nisso, eu me vacinei e filmei o dia a dia do pós-vacina, mostrando que eu estava bem.
Também escrevemos um livro chamado A Covid-19 chegou entre nós, que é uma coletânea de relatos sobre como os indígenas estavam enfrentando o isolamento. Esses relatos chegaram por meio de uma campanha que fizemos nas redes sociais. Tínhamos pouquíssima expectativa de que fôssemos receber um grande volume de textos, mas estávamos enganados. Pessoas de todas as idades desabafaram e contaram o que viviam. Depois disso, eu percebi que a comunicação era algo além de divulgação, de celular e computador. A comunicação nos ajudou a tecer uma rede de acolhimento.
Em 2022, já num cenário diferente e com mais experiência, fui para o Acampamento Terra Livre (ATL). [Trata-se da maior mobilização indígena do país. Todo ano, lideranças do país todo se reúnem em Brasília no mês de abril para ocupar a Esplanada dos Ministérios]. Eu e mais dois parentes, companheiros de luta, tivemos a ideia de criar um podcast. Não tínhamos estúdio e quase nenhum equipamento, então fazíamos o seguinte: nos distanciávamos bastante do ATL para diminuir o ruído e gravávamos até as 2h da manhã. Esse era o horário que nosso editor acordava para pegar o material, que ficava com ele até às cinco da manhã porque três horas depois postávamos o episódio e começávamos a fazer a cobertura daquele dia inteiro. Trabalhamos dia e noite para entregar o material do jeito que a gente gostaria de representar os povos indígenas.
Lembro de nós três sentados no chão, chocados com a proporção de tudo. Foi uma época em que as redes sociais de várias organizações indígenas estouraram e nosso podcast fez sucesso. Tudo isso só com um celular. Lembro também de pensar nas aulas de comunicação que tive dois anos antes. Eu fugi da minha primeira aula de podcast. Faltei porque tinha medo e vergonha, não sabia como fazer locução. Hoje sou apaixonada por produzir nesse estilo.
Quando eu voltei do ATL, ministrei uma formação de comunicadores no Oiapoque porque acreditamos que o conhecimento precisa ser repassado. A partir daí, as coisas foram acontecendo muito rápidamente já que a formação que eu tive na pandemia me deu as ferramentas para ensinar as técnicas que eu aprendi.
Hoje, eu participo de um podcast exclusivo da COIAB chamado “Amazônia Indígena”, em que relatamos as atividades executadas pela organização e levantamos informações sobre o que vêm acontecendo na Amazônia e nos territórios. Além dele, também ajudei na construção do PodParente, um podcast novo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).
Considero que ambos são meus filhos, e é uma vitória ter conseguido construir esse entendimento com as lideranças mais velhas, de que a comunicação vem para nos auxiliar na luta. É uma forma de somar forças. Elas começaram a ter dimensão dessa importância quando nossas denúncias começaram a ser veiculadas e a mídia deu vazão às nossas reivindicações. A cobrança veio tão forte que os governos do estado e até o governo federal não tinham para onde correr.
Os comunicadores indígenas começaram esse movimento. A existência deles é fundamental para nós porque onde eu não posso chegar, outro comunicador chega e ele consegue nos dizer o que está acontecendo no seu território. É a rede.
E essa é uma rede de comunicação que vai além da tecnologia do celular, ela é ancestral. Temos a nossa comunicação, aquela que aprendemos no território: nossa forma de se comunicar com a natureza e entre si, a maneira com a qual a gente ouve os presságios que chegam até nós. Eu ando com essas duas comunicações para construir o ativismo que eu faço hoje.
O machismo no movimento indígena
Minha trajetória é minha, mas é composta por um monte de mulheres. Cada uma trilhou meus passos junto comigo, segurando minha mão. Em momentos que eu não aguentava mais, elas diziam que dava para continuar.
Fui muito descredibilizada no início da minha trajetória. Apesar de ter crescido em meio a luta pelos direitos do meu povo, como toda sociedade há machismo enraizado. Comigo não foi diferente.
Comecei no movimento indígena muito jovem, aos 15 anos. Participava das atividades internas, reuniões e debates, trazendo principalmente a pauta da juventude. Na aldeia acreditamos na formação dos mais jovens para que possamos ocupar os lugares que nossos mais velhos estão hoje. Para isso, precisamos acompanhar desde cedo todos os processos para entender como funciona a luta coletiva.
Eu comecei a ter destaque nessas reuniões voltadas para a juventude. Aos 17 anos me confiaram o papel de trabalhar na comunidade como uma liderança. Depois disso, fui fazendo esses movimentos fora dela também. Eu acompanhava as assembleias, fazia os registros e organizava as viagens. Quando eu comecei a ter um papel de maior protagonismo, tudo ficou mais difícil. A maior parte dos indígenas nas assembleias eram homens e eles me viam como secretária. Achavam que eu estava ali para resolver questões burocráticas e encaminhar documentações.
Havia uma crença comum de que naquela idade eu já tinha que construir minha família, casar e ter filhos. Quebrei esse ciclo que diziam ser o “natural” da mulher vendo outras lideranças mulheres e sendo fortalecida por elas. A Vó Xandoca, anciã do meu povo, enquanto esteve viva me validou. Ela me instigava a participar dos processos apoiada na minha posição de mulher. Foi um escudo e uma das primeiras pessoas a me reconhecer como liderança.
Quando o meu pai não queria me deixar atuar fora da comunidade e participar das reuniões, Vó Xandoca ia em casa, já bem velhinha, e o enfrentava. Dizia que ele não podia me impedir porque eu lutava pelo nosso povo.
Antes de morrer, ela me chamou para conversar e me avisou: “Esse lugar vai ficar muito pequeno porque você é uma liderança. Quando isso acontecer você vai para outros lugares”.
Ano passado eu estive na COP em Dubai como a primeira jovem do meu povo a participar desse evento. Enquanto eu falava sobre as nossas dificuldades no território, eu só me lembrava disso. Ela traçou esses caminhos para que pudéssemos acessar outros espaços, não só pelo direito do nosso povo, mas pelos direitos das mulheres indígenas. Hoje a concepção de que deveríamos só casar e ter filhos é menos presente entre os homens, mas algumas lideranças ainda se incomodam. Principalmente quando nossas falas, posicionamentos e ativismo começam a repercutir mais do que o trabalho que eles estão fazendo. Aí eles começam a desmerecer o nosso papel, como se não fôssemos lideranças que atuam no território do mesmo jeito que eles. Mas com Vó Xandoca todas nós aprendemos que temos que ter o pulso firme.
Comunicação indígena
Sempre sofremos com as desinformações, a falta de visibilidade e o uso indevido da nossa imagem. Antes, tínhamos essa preocupação mas não sabíamos como lidar com isso e as ações que poderíamos ter para combater o problema. Hoje, temos uma rede que entende comunicação não só como mídia e redes sociais, mas todas as informações que transmitimos com intenção e confiabilidade.
É além de denúncia e mobilização, é orientação para o nosso povo. Costumo dizer que estamos na era da demarcação de telas e hoje eu me vejo como alguém que faz parte desse movimento. Por meio da comunicação, posso levar as demandas do território e dos meus parentes para todos os espaços em que estou.
A importância de termos comunicadores indígenas é essa: entendemos a nossa diversidade, lutamos por ela e a mostramos como ela é. Por mais que os jornalistas não-indígenas falem sobre nós e nos respeitem, sempre haverá estereótipos porque não é uma realidade que eles vivem. Eles escrevem sobre nós da forma como eles imaginam que nós somos.
Quando nos transformamos nessa rede de parceiros que constroem a comunicação em conjunto, botamos luz às verdades e à história do nosso país. E não há nada mais fundamental do que isso porque se não conhecemos a história dos povos indígenas do Brasil, não os conhecemos de verdade.
*Estagiária sob supervisão de Rafael Ciscati
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