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Falta de orçamento emperra aplicação da Lei 10.639

Lei que torna obrigatória ensino de história e cultura afro-brasileira completou duas décadas em 2023. Poucos municípios a implementaram

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Por Andrea Fernandes e Carla Aragão
Conteúdo publicado na Revista Lugar de Criança, n° 4

Política pública só existe com orçamento. Sem recursos, as ações não conseguem sair do planejamento e tornar-se prática de forma ampla, como um direito. É desse raciocínio que nasce o questionamento da advogada e integrante-fundadora da Comissão Antirracista do Colégio Equipe (SP), Evie Santiago.

Ela faz um comparativo com a implementação do Novo Ensino Médio, que movimentou intensamente a opinião pública na recente história do país. “Por que a lei que impõe o Novo Ensino Médio está sendo praticada com investimentos financeiros e a Lei 10.639 não é praticada?  É tão Lei quanto”, questiona.

Para esquentar a polêmica, vale lembrar que o Novo Ensino Médio foi aprovado há apenas 5 anos (em 2017), por meio da Lei nº 13.415, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Enquanto a Lei 10.639, que também alterou a LDB para tornar obrigatória a inclusão no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, completou 20 anos de existência em 2023.

Duas décadas depois da aprovação da Lei, uma pesquisa realizada por Instituto Alana e Geledés – Instituto da Mulher Negra, revela que apenas 29% dos municípios brasileiros realizam ações consistentes para implementação da Lei 10.639 nas escolas brasileiras. Ou seja, 71% das secretarias municipais de educação realizam pouca ou nenhuma ação para a efetividade da Lei. E sabe qual um dos maiores entraves apontados pela pesquisa? Isso mesmo – “a falta de cooperação técnica e financeira por parte do Governo Federal e dos governos estaduais”.

A pesquisa mostra que apenas 8% das secretarias que participaram do levantamento têm algum tipo de dotação orçamentária para viabilizar essa política pública e apenas 5% dizem ter uma área específica para cuidar da educação para relações étnico-raciais.

Para Evie Santiago, a dificuldade de investimento e implementação da Lei 10.639 perpassa pelo racismo estrutural que impregna as relações da sociedade brasileira. “Eu vou ser bem direta, acredito que as instituições que decidem e que têm o poder para fazer mudanças são instituições embranquecidas.

Quando se fala da Lei 10.639 isso pode não significar nada para uma pessoa branca, sem letramento racial e que não foi educada a partir dessa perspectiva, pois muitas vezes nem têm contato com pessoas negras no seu dia a dia”, defende.

Educação Decolonial (sabe o que é?) na Primeira Infância

Bárbara Carine Soares Pinheiro, professora adjunta do Instituto de Química da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e fundadora da Escola Afro-Brasileira Maria Felipa, @umaintelectualdiferentona nas redes sociais, concorda: “As escolas não cumprem a lei 10.639, o Ministério Público não fiscaliza, a Secretaria de Educação não fiscaliza porque todas essas complexidades sociais têm como seus agentes fundamentais a branquitude (…), infelizmente, o racismo estrutural e institucional é muito forte e é um grande responsável pela morosidade do cumprimento da Lei”.

Como enfrentamento a essa estrutura social emerge a proposta de uma Educação Decolonial – aquela que garante um currículo que resiste, desconstrói e liberta de padrões, conceitos e perspectivas impostas historicamente, colaborando para o desenvolvimento de um pensamento e um olhar críticos, que valorize a diversidade, desde a mais tenra idade.

Para Bábara, a importância de assegurar às crianças, desde a primeira infância, esta formação contribui para a formação de sujeitos diferentes, que vão compor um cenário sócio-histórico outro. “A gente educa para uma sociedade que a gente almeja e a gente almeja uma sociedade sem racismo.

Então, as crianças, todas elas, crianças negras, crianças indígenas, crianças brancas, crianças todas, elas precisam ser educadas para o respeito ao outro, para o respeito às memórias ancestrais do mundo, para o respeito à existência do outro”, afirma.

Em março de 2008, o Brasil avança e sanciona a Lei 11.645/08, incluindo a obrigatoriedade do estudo da história e cultura indígenas no currículo. Mas, para que essas Leis possam mudar a realidade, precisam ser colocadas em prática. Para isso, torna-se fundamental mobilizar as estruturas de poder e as políticas públicas estão no cerne da questão. E como dissemos no início deste texto: Política pública só existe com orçamento.

Enquanto a política não for de fato pública, a transformação desses processos educacionais não atingirá larga escala. Enquanto isso, iniciativas desenvolvidas por escolas que buscam efetivar a lei são implementadas e revelam a potência desse processo, apontando que, sim, é possível!

Território e identidade étnico-racial no currículo da Educação Infantil

A equipe do Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) Castro Alves, em Salvador (BA), vem acompanhando essas reformulações e buscando caminhos para tirar as leis do papel por meio de estudos, vivências e práticas que garantam um maior aprofundamento sobre elas.

“Durante a nossa jornada pedagógica, avaliamos a necessidade e a importância de garantirmos mais formação, pesquisa e mais projetos pedagógicos que tivessem como eixo central a importância das Leis 10.639/03 e 11.645/08 no desenvolvimento formativo das nossas crianças, incluindo não somente os professores e crianças, mas toda a comunidade escolar”, explica Cristiane Valente, coordenadora pedagógica do CMEI.

Um dos focos do trabalho desenvolvido tem sido a valorização do local onde o CMEI está inserido, a partir da história de vida de cada criança e de suas famílias. O objetivo da equipe é “construir e fortalecer a identidade étnico-racial, evidenciando orgulho de pertencer a um grupo onde a sua história e sua cultura sejam valorizadas e respeitadas”, ressalta.

Tudo começa com o diálogo com o território

O CMEI fica localizado numa comunidade do Bate Facho, que tem esse nome herdado de um tempo em que a energia elétrica não era uma realidade para a comunidade, localizada na Rua da Bolandeira, no Imbuí, em Salvador (BA). Os primeiros moradores da então ocupação acendiam fachos de luz com as folhas do licuri, palmeira típica do Nordeste, que produz pequenos cocos.

Hoje, a energia elétrica é uma realidade e são outros os problemas que preocupam seus moradores, entre os quais, as enchentes. E foi por conta delas, das enchentes, que Cristiane Giffoni, diretora do CMEI, localizado no mesmo bairro, causou um rebuliço no projeto arquitetônico da instituição, para assegurar que a unidade ficasse acima do nível da rua.

“Aqui nas redondezas tem o Rio das Pedras e, quando chove, esse rio transborda. Aconteceram vários episódios de alagamento na região, inclusive, envolvendo nossos alunos. A gente tem muita preocupação com eles, que já até ficaram sem abrigo. Quando as obras estavam perto de começar, nós procuramos os engenheiros responsáveis e mostramos a necessidade de o prédio estar acima do nível da rua, pelo menos 1 metro e 30 centímetros. Eles entenderam e assim fizeram. Mudaram o projeto, teve aditivo… É uma alegria para a gente saber que isso não vai acontecer conosco e que podemos ser um espaço de abrigo para quem precisar”, conta a coordenadora pedagógica do CMEI.

A implicação do CMEI com o território é reflexo de uma proposta político pedagógica de profundo diálogo com o contexto das crianças e das famílias, além de uma construção de reconhecimento e valorização da identidade do lugar.

O CMEI – que leva o nome do “Poeta do Povo”, pois a temática central da escrita de Castro Alves era o povo negro, suas angústias, sofrimentos, resistência, força – inspira o seu trabalho nas história e nas lutas da comunidade, que é um remanescente de quilombo, tornando viva a proposta de um currículo decolonial, inclusivo e antirracista.

Cristiane Valente nos explica que o Referencial Curricular Municipal para a Educação Infantil de Salvador traz, na página 71, que quando o foco é a primeira infância negra, há um sensível desafio, porque se lida com os mais invisíveis dos invisíveis, “por serem negras e, por serem, dentro da população negra, crianças”. “Desde a fundação do nosso CMEI, em fevereiro de 2013, que: conhecer, valorizar e respeitar a história e cultura afro-brasileira e africana, a fim de promover o fortalecimento da autoestima e autoconfiança e a construção da identidade racial de nossas crianças, tem sido a nossa preocupação. Preocupação esta que se encontra expressa por meio do eixo norteador ‘Construção da Identidade Racial e de Gênero’ da nossa Proposta Pedagógica, que está em reformulação, acompanhando as orientações da Rede”, conta.

O CMEI Castro Alves funciona em período integral e tem como missão contribuir para melhoria das condições educacionais da população de 02 a 05 anos, a partir da construção da identidade étnico-racial, social e de gênero, proporcionando o desenvolvimento cognitivo, social e emocional das crianças.

Casa nova de portas abertas

O CMEI funciona em espaço próprio e novo, inaugurado em 08 de agosto de 2022. Para celebrar a casa nova, a primeira ação pedagógica, dentro da Semana de Arte e Cultura, foi convidar os moradores mais antigos do bairro para nos contar a história daquele território, andar pelas suas ruas para conhecer o local onde a maioria das crianças moram.

Cristiane embra que o objetivo foi conhecer e começar a construir a história do CMEI no território. “Quando a instituição recebe uma criança, recebe junto sua família. A parceria família-escola é processual, construída na convivência do cotidiano”, reflete. Relações de confiança e trocas entre educadores e familiares vêm se estabelecendo desde então por meio do diálogo efetivo e frequente, delimitando de forma clara os papéis, os direitos e deveres, e o valor de cada um.

Estabelecer e manter essa relação da escola com o território e as famílias é um grande desafio, mas também uma riqueza, na medida em que qualificar essa parceria de maneira respeitosa e aberta permite oferecer um espaço educativo para todas e todos, que trazem os seus valores, saberes e fazeres. “Estamos, TODOS, ensinando e aprendendo, nessa parceria”, ressalta Cristiane. Ela conta que o trabalho de mobilização das famílias é constante, para que elas participem desde a construção da proposta pedagógica, o fortalecimento do conselho escolar, os plantões e reuniões pedagógicas, os grupos de WhatsApp e as ações dos projetos.

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