Atualização (24/02): No último dia 23, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) determinaram que o governo federal deve implementar um plano de enfretamento à pandemia nos quilombos. A decisão é resultado de uma ação movida pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Segundo o STF, quilombolas devem ser incluídos na fase prioritária para vacinação, “com a adoção de protocolos sanitários visando a eficácia da medida”.
Quase um ano depois do início da pandemia de Covid-19 no Brasil, entidades ligadas a
comunidades quilombolas se queixam da falta de diálogo com o governo federal, e apontam a ausência de um plano estruturado para conter o avanço do vírus nos quilombos. De acordo com dados levantados pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) , 204 quilombolas já morreram em todo o Brasil, vítimas da nova doença, e quase 5 mil foram infectados pelo vírus. Isoladas, e depois de enfrentar dificuldades para acessar o auxílio emergencial ao longo de 2020, algumas comunidades relatam o temor de passar fome.
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A questão foi levada pela Conaq ao Supremo Tribunal Federal (STF) em setembro do ano passado, e deve começar a ser julgada na próxima sexta-feira (12). Na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental ( ADPF ) 742, o grupo pede, entre outras medidas, o fortalecimento do programa Saúde da Família nos quilombos, e o acesso a testes perídicos para diagnóstico de Convid-19. Cobra, também, um plano que preveja a distribuição de cestas básicas às comunidades quilombolas em quantidade adequada para atender suas necessidades nutricionais. Em meados de dezembro, a ação foi editada para pedir a inclusão dessas populações nos grupos prioritário para vacinação. Dados epidemiológicos levantados pela Conaq em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA) sustentam que a letalidade do Sarscov-2 é maior entre quilombolas que no restante da população brasileira: de 3,6, superior aos 3,0 registrados na população em geral.
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Na avaliação da Conaq, as medidas são urgentes, mas a impressão é de que chegam com atraso: "A ação foi protocolada há cinco meses. A avaliação é de que demorou demais", afirma a advogada Vercilene Franciso Dias, assessora jurídica da Conaq e da organização Terra de Direitos. "Enquanto isso, as comunidades sofrem com a desassistência do poder executivo", diz a advogada, nascida no quilombo Kalunga, em Goiás.
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Para a Conaq , o governo federal é responsável por "ações e omissões que ferem reiteradamente preceitos fundamentais das populações quilombolas ". Na sua sustenção oral, enviada em vídeo ao Supremo na noite de terça-feira (9), Vercilene destaca que o governo não se encarregou de criar um plano para mitigar os efeitos da pandemia "sobre comunidades que já se encontravam em situação de vulnerabilidade". Nem tampouco buscou monitorar o avanço de casos da doença em meio a essa população — os dados disponíveis foram compilados, de maneira independente, por organizações da sociedade civil. "O governo federal assumiu o risco da nossa morte coletiva", afirma a advogada.
Na ação, a Conaq também questiona a quantidade de cestas básicas distribuídas pela União aos quilombos. De acordo com
um parecer da Advocacia Geral da União (AGU) do dia 17 de dezembro, o governo firmou um acordo de cooperação técnica com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), com a a Fundação Nacional do Índio, a Fundação Cultural Palmares e a Secretaria Especial de Saúde Indígena, para distribuir 40 mil cestas de alimentos "em favor dos vulneráveis". Hoje, segundo dados do Instituto Cultural Palmares, há 3 mil comunidades quilombolas certificadas no Brasil — cada uma pode reunir até 500 famílias. "Essas 40 mil cestas são insuficientes. As famílias não comem somente uma vez ao ano", diz Vercilene. "Existe uma indefinição muito grande — não há dados quanto a periodicidade dessas distribuição. E nem há parâmetros para avaliar se a quantidade de cestas básicas distribuídas basta para atender a todas as comunidades ".
A questão preocupa sobretudo porque, segundo Vercilene, os alimentos se tornaram mais escassos em alguma quilombos desde que a ação foi protocolada, há cinco meses. A advogada explica que nem todos os quilombos dispõem de recursos e de terra para produzir alimentos em quantidade suficiente para toda a comunidade. A situação é mais grave naqueles quilombos que ainda não foram titulados, ou que enfrentam conflitos com proprietários rurais . Os conflitos fundiários desarticulam a produção e, sem o título de posse sobre a terra, os agricultores relatam dificuldade para acessar linhas de crédito rural — dinheiro empregado para comprar maquinário e sementes. Mesmo nos casos em que é possível plantar, há situações em que os cultivos não vingam: "Algumas localidades sofreram com seca fora de época, com chuva intermitente " diz Vercilene. "O rendimento dos cultivos ficou muito abaixo do que se esperava ".
A ação encaminhada pela Conaq vem na esteira de outra medida semelhante: em agosto do ano passado, a Articulação dos povos indígenas do Brasil (Apib) foi ao STF cobrar que a união tomasse medidas para combater a pandemia entre povos indígenas. O pedido foi acatado por unanimidade pelos ministros do Supremo. "O sucesso da Apib nos animou a buscar o mesmo caminho ", afirmou Vercilene à Brasil de direitos em setembro passado. Menos de seis meses depois da decisão do STF, no entanto,
entidades indígenas e indigenistas avaliam que o plano não foi implantado de maneira satisfatória.
Apesar disso, o julgamento de sexta-feira é cercado por grande expectativa. A previsão é de que a discussão na corte siga até o dia 18 , mas ela pode se estender. A ansiedade é grande : "O diálogo com o governo federal é impossível. Por isso temos muita esperança nessa ADPF".
Foto de topo: Em setembro de 2020, lideranças quilombolas foram ao STF cobrar do governo ações de combate à pandemia nos quilombos (Reprodução/ Conaq)