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Ilegal, arrendamento de terra indígena provoca conflito e morte no RS

Dois indígenas kaingang foram assassinados em conflito sobre arrendamento para plantio de soja. Nos anos 1930, prática foi estimulada pelo Estado para branquear população

Rafael Ciscati

9 min

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O assassinato de dois indígenas kaingang no Rio Grande do Sul, na manhã do último sábado (16), lançou luz sobre uma prática ilegal mas recorrente em todo o país: o arrendamento de terras indígenas para o agronegócio. Ela consiste em destinar parte do território indígena — terras da União, de usufruto exclusivo desses povos — a atividades agropecuárias desenvolvidas por proprietários de terra não-indígenas. Na maioria dos acordos, os agricultores (que variam de produtores familiares a grandes empresas) pagam um aluguel ou uma porcentagem da produção à comunidade ou seus representantes. O arrendamento de terras para a produção de soja está no cerne do conflito que terminou em morte no último final de semana.

Testemunhas afirmam que os assassinatos aconteceram quando um grupo de 12 famílias Kaingang, reunidas nas imediações da rodovia RS324, foi atacado. O grupo era formado por opositores do cacique Marciano Inácio Claudino, da terra indígena Serrinha, uma área de retomada no norte do estado. É ele quem preside a Cooperativa dos Trabalhadores Indígenas da Serrinha (Cotrisserra), responsável pelo arrendamento de parte do território a produtores de soja. Lideranças contrárias ao cacicado afirmam que a Cotrisserra concentra os recursos gerados pelo arrendamento, relegando a maior parte da aldeia à pobreza. Em setembro, uma nota divulgada pelo Conselho de Anciãos da Serrinha afirmava que 59% das famílias da reserva não têm terra para cultivar. O Conselho cobra que a cooperativa preste contas à comunidade. As tensões avançaram até que, numa decisão recente, Claudino expulsou as 12 famílias opositoras da aldeia. No sábado, elas se organizavam para protestar contra a medida quando foram atacadas, de acordo com testemunhas, a mando do cacique. Claudino nega. À imprensa, disse ter sido vítima de uma emboscada enquanto circulava de carro pela rodovia.

 

Com 12 mil hectares , a reserva Serrinha é um território pequeno, onde o arrendamento para o agronegócio deixa outros cultivos sem espaço. Moradores da aldeia afirmam que a prática é mantida por meio de violência. “Nossa terra tem sido governada por milícias armadas. Lideranças que se mantêm pela força das armas e às custas do arrendamento” afirmou a advogada Fernanda Kaingang em vídeo divulgado nas redes sociais no último dia 13. “O conselho de anciãos tem denunciado corrupção na gestão das terras. Desde 2020, o conselho denuncia administrativamente essa situação. Nada foi feito pelo Ministério Público nem pela Funai”. Sob ameaça, Fernanda e a família tiveram de deixar às pressas o território.

 

Histórias semelhantes se sucedem em outras terras indígenas próximas. “Há conflitos prestes a explodir nas terras indígena Nonoai e Guarita. Todos causados pelo arrendamento”, afirma o professor Paulo Carbonari, membro do Conselho Estadual de Direitos Humanos. A escalada de violência levou o Ministério da Justiça e Segurança Pública a enviar a Força Nacional para a região.

 

Os acontecimentos recentes engrossam um longo histórico de violência gerado pelo arrendamento de terras no Rio Grande do Sul. A prática remonta à primeira metade do século XX e, por um período, chegou a ser estimulada pelo Estado. Sua permanência ainda hoje, segundo especialistas, é resultado de um quadro em que povos indígenas encontram dificuldade para acessar crédito, maquinário e insumos necessários para desenvolver atividades agrícolas por conta própria. Acabam recorrendo ao arrendamento como alternativa para geração de renda. “Há uma completa ausência de políticas públicas. Nesse cenário, restam poucas alternativas ao arrendamento” afirma o historiador Danilo Braga Kaingang, membro do Conselho Estadual Indígena de Direitos Humanos.

 

Estratégia de branqueamento e escravização de indígenas

Braga estuda a luta dos kaingang no Rio Grande do Sul pela demarcação de suas terras tradicionais. Suas pesquisas apontam que a história dos arrendamentos para produção agrícola remonta aos anos 1930. Na época, os Kaingang viviam em reservas criadas pelo Estado e administradas pelo Serviço de Proteção do Índio (SPI), o órgão indigenista da época. Reservas Indígenas têm status jurídico distindo das atuais Terras Indígenas — e, em média, são muito menos extensas. A legislação atual determina que as TIs são de usufruto exclusico dos indígenas. Naquele início de século, o SPI arrendava parte das reservas sob seus cuidados a agricultores locais.

Na época, além de cultivar a terra, os agricultores estabeleciam residência no interior das reservas. “Com isso, o governo queria estimular a miscigenação. A intenção era branquear a população indígena, e faze-la ser assimilada pela sociedade nacional”, conta Braga. Além de historiador, Braga já foi cacique da Terra Indígena Ligero, vizinha à Serrinha, no início dos anos 2000.

 

Nos arrendamentos da década de 1930, era comum que os Kaingang trabalhassem como funcionários dos colonos, num regime análogo à escravidão. “Juntavam os kaingang para trabalhar em lavouras coletivas, os chamados mutirões”. Como pagamento, o arrendatário entregava uma parte da produção ao armazém administrado pelo SPI. “Não havia retorno para os indígenas, que trabalhavam por um prato de comida”.

 

Com o passar dos anos, as áreas ocupadas pelos indígenas foram sendo reduzidas. A situação se tornou especialmente grave a partir da ditadura militar, quando todas as reservas indígenas do Rio Grande do Sul passaram por diminuição, e algumas foram extintas. Com pouca terra à disposição, as áreas ocupadas pelos colonos competiam com a produção de subsistência dos indígenas. O problema perdurou até 1978 quando, numa série de revoltas, os kaingang expulsaram os agricultores de suas terras.

 

Depois disso, o arrendamento sobreviveria em algumas poucas aldeias, às custas de conflitos. “No início dos anos 1980, dois caciques irmãos dividiram a aldeia Guarita, onde o arrendamento de terras permanecia”, conta Braga. “Em dado momento, um quis dominar o outro. Houve mortos e feridos”.

 

A prática ganharia novo fôlego no final daquela década. Danilo conta que os indígenas passaram a enfrentar problemas para ter acesso a crédito, treinamento e insumos agrícolas — recursos necessários para produzir de maneira autônoma. Por isso, voltaram a arrendar terras aos agricultores da região. A decisão divide as comunidades. ” O arrendamento traz uma série de prejuízos. Com a circulação de não-indígenas, aumenta a circulação de bebidas, drogas, os casos de prostituição”, afirma.

 

Sem acesso a crédito para produzir, no entanto, ele diz enxergar pouca saída para esse impasse.

 

Casos se repetem pelo país

A situação do Rio Grande do Sul está longe de ser única. Um levantamento obtido pelo jornal O Estado de S.Paulo no final de 2018, via lei de acesso à informação, mostrou que a Funai tem conhecimento de ao menos 22 situações semelhantes em todo o país. De acordo com os dados da Fundação, cerca de 3 milhões de hectares de terra indígena eram arrendados a produtores externos naquele ano. É possível que o número seja maior.

 

Oficialmente, a Funai diz trabalhar para coibir a prática, e colocar fim aos casos identificados. Em 2019, o órgão indigenista, o Ministério Público Federal em Passo Fundo e a Cotrissera, que coordena o arrendamento na terra indígena Serrinha, assinaram um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). O acordo estabeleceu, entre outras medidas, uma espécie de tempo de transição: por cinco anos, as terras poderiam continuar a ser arrendadas. Os recursos gerados nesse período seriam destinado à criação de um fundo que, passados os cinco anos, deveria bancar a produção agrícola autônoma dos indígenas. As famílias expulsas da aldeia, no entanto, afirmam que o TAC nunca foi fiscalizado.

 

No último domingo (17), a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) divulgou uma nota em que cobrava atuação mais assertiva do Estado para coibir os arrendamentos. De acordo com a Apib, trata-se de um “processo que coopta e corrompe lideranças colocando indígenas contra indígenas em uma política de violência incentivada pelo atual Governo, fomentada pelo agronegócio e que gera mortes.” Hoje, tramita no Congresso Nacional uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que pretende regularizar a prática em todo o país. Na avaliação da Apib, “a proposta ruralista é mais uma ameaça aos direitos constitucionais dos povos indígenas e pode agravar ainda mais o quadro de violências contra os povos originários”.

 

Na mesma nota, a articulação ressaltou que, no Rio Grande do Sul, os arrendamentos foram historicamente patrocinados pelo governo, com prejuízo para a população indígena. “Desde a época do SPI (Serviço de Proteção ao Índio) o arrendamento das Terras Indígenas no Sul é feito com o incentivo do Estado e quem era contra acabava sendo assassinado, expulso ou preso. Depois com a Funai (Fundação Nacional do Índio), na década de 70, as violências continuaram. A partir da década de 80 o povo Kaingang começou a praticar arrendamento e os conflitos seguem até os dias atuais com o agravamento da violência política alimentada pelo agronegócio que arma milícias para perseguir e matar nossas lideranças”, alertou Kretã Kaingang, coordenador executivo da Apib.

Foto de topo: divulgação Apib

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