Incêndio destrói ponto de memória em comunidade quilombola no Espírito Santo
Comunidade suspeita que atentado tenha sido motivado por racismo religioso. Centro cultural preservava a memória do Jongo de Santa Bárbara, uma dança tradicional
Rafael Ciscati
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Passava pouco das seis da manhã quando a líder quilombola Gessi Cassiano, mestra de Jongo de Santa Bárbara, chegou ao ponto de cultura que ajudou a construir no quilombo onde vive, no Espírito Santo. Foi recepcionada pelo cheiro de madeira queimada. Na madrugada de terça-feira (9), a casa de estuque que abrigava o centro cultural foi incendiada. Paredes ruíram e parte do telhado desabou. A imagem de Santa Bárbara, antes posta sobre uma mesa cercada por santos e orixás, foi carbonizada. Diante do cenário, Dona Gessi conta que vacilou. “Foi um momento de dor”, diz. “Fiquei me perguntando quem teria coragem de fazer isso com a gente”.
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A comunidade suspeita de um atentado motivado por racismo religioso. Apesar do fogo, nada foi roubado. “Acredito que fui vítima de intolerância religiosa ou de algum tipo de intimidação”, disse Donda Gessi em mensagem divulgada a conhecidos por Whatsapp. “Nós vivemos numa área de conflito. O quilombo está cercado por fazendas de eucalipto e cana de açúcar”, afirma Rogério Cassiano, filho de Dona Gessi. “Tem havido invasões. Mas estamos aqui há mais de 300 anos. Vivo onde antes morava meu pai e o pai dele”.
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A comunidade de Linharinho é parte de um território quilombola mais vasto conhecido como Sapê do Norte. No norte do Espírito Santo, ele se estende entre os municípios de Conceição da Barra, São Mateus e Jaguaré. É também palco de um conflito socioambiental que recrudesce desde meados do século XX. Desde os anos 1960, as comunidades quilombolas da região são pressionadas pela expansão de lavouras de cana de açúcar e de eucalipto. A substituição da vegetação local pela monocultura mudou o clima da região, poluiu rios e secou lençóis freáticos. Dados da Fiocruz atestam que 90% das famílias quilombolas precisaram migrar. Em 2021, Brasil de Direitos contou como as comunidades se organizam para recuperar nascentes degradadas.
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O espaço, gerido pela própria comunidade, foi construído num terreno antes ocupado por fazendas de eucalipto e recém-retomado. Ali, aconteciam celebrações, rodas de conversa e oficinas que ensinavam como bater o tambor e dançar o jongo, uma forma de dança tradicional. Era uma maneira, diz dona Gessi, de manter a cultura viva entre os mais jovens. “Para mim, esse é um lugar divino. Aqui, fazemos festas e remédios tradicionais que curam todo o Sapê do Norte”.
Nesta sexta-feira (12) o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) da Universidade Federal do Espírito Santo divulgou uma nota de repúdio, em que condena a violência contra a comunidade e seu ponto de memória. “Essa prática violenta pode estar associada também aos crimes de ódio, racismo, intolerância religiosa e racismo religioso que têm crescido no Brasil nos últimos anos. […] Neste sentido, solicitamos a apuração do caso e o firme empenho dos órgãos públicos competentes, a saber, IPHAN, Secult (Secretaria de Estado da Cultura), Ministério Público do Estado do Espírito Santo e Ministério Público Federal para que esses atos de violência contra a liberdade de expressão e a liberdade religiosa que ferem os direitos humanos, territoriais e culturais, não se repitam”.
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