Ineficaz, revista vexatória em prisões é forma de tortura, diz pesquisadora
Apesar de proibida em nove estados, revista íntima ainda é comum e afeta até crianças. Julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) pode pôr fim à prática

Rafael Ciscati
7 min

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Defendida como forma de evitar a entrada de drogas e armas em estabelecimentos prisionais, a revista vexatória de visitantes raras vezes resulta em apreensões. Levantamento realizado pela Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo mostra que menos de 0,02% (2 a cada 10 mil) das pessoas revistadas são flagradas com algum material ilegal.
O dado é de 2012. A informação foi incluída em um memorial recém enviado por organizações do terceiro setor aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).
No documento, as organizações Instituto Terra Trabalho e Cidadania (Ittc), Conectas Direitos Humanos, Pastoral Carcerária, Ibccrim, Iser, Nesc e a Agenda Nacional pelo Desencarceramento argumentam que a prática da revista vexatória expõe familiares de pessoas presas —mulheres e crianças negras, em sua maioria— a constrangimento. Durante esse tipo de inspeção, é comum que a pessoa seja forçada a ficar nua, e tenha cavidades corporais vistoriadas. As organizações avaliam tratar-se de uma forma de tortura.
O assunto é tema de um julgamento que se desenrola na Corte desde 2020. O STF avalia se é constitucional o uso de provas obtidas a partir desse tipo de inspeção. Em 2024, a maioria dos ministros chegou a votar para pôr fim às revistas vexatórias. O julgamento ocorria no plenário virtual. Foi interrompido e retomado no dia 06 de fevereiro de 2025 no plenário físico. O movimento zerou o placar: todos os ministros terão de reapresentar suas posições.
Por ora, votaram o relator, ministro Edson Fachin, que considerou a prática inconstitucional; e o ministro Alexandre de Moraes, para quem o fim das revistas íntimas poderia levar a “rebeliões” no sistema prisional. Na avaliação dele, seria necessário suspender visitas de familiares às pessoas presas até que todas as unidades fossem equipadas com scanners corporais e máquinas de raio x. “E, ao criar essa proibição, vamos ter uma sequência de rebeliões. Porque se tem algo que cria rebelião, é quando se perde a visita”, afirmou. Na avaliação do ministro, é possível criar protocolos que permitam que a revista íntima seja realizada de forma “humanizada” e em caráter excepcional. A defesa do ministro é de que a revista íntima não precisa ser vexatória.
Na avaliação de Michele Ferreira, pesquisadora do programa Justiça sem Muros da ong ITTC, a posição de Moraes é incongruente. Ela aponta que é importante distinguir a revista íntima de uma “busca pessoal” — quando a pessoa tem os bolsos apalpados ou é obrigada a passar por um detector de metais. “Uma revista íntima é necessariamente vexatória. Justamente porque as cavidades corporais da pessoa são analisadas, tocadas. Ela tem de ficar despida na frente de pessoas que não conhece,com quem não tem intimidade. É obrigada a, estando nua, agachar, tossir, colocar um espelho sob o corpo”, diz. “É invasivo, constrangedor e humilhante”.
Michele lembra que um dos principais argumentos em favor da revista vexatória — o de que a prática coibiria a entrada de artefatos ilegais nas penitenciárias— tampouco encontra amparo em dados. O levantamento da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo, de que falamos no começo desse texto, foi realizado há mais de 10 anos. A pesquisa continua sendo uma das mais recentes e amplas sobre o assunto. A ausência de dados oficiais, diz Michele, é mais um sinal de que o argumento da segurança é frágil. “Não são divulgados dados sobre o volume de apreensões. Tudo é muito nebuloso”.
Além disso, diz ela, já há tecnologia disponível capaz de substituir esse procedimento com eficiência. “Não há como justificar a realização de uma revista vexatória quando já há scanners corporais capazes de identificar qualquer artefato que a pessoa carrega consigo”, diz.
Até as crianças passam por revista vexatória
Além de expor os visitantes a sofrimento, especialistas afirmam que a revista vexatória pode contribuir para a dissolução de laços familiares, e dificultar a ressocialização da pessoa presa. “A humilhação da revista é tão grande que as chances de o visitante querer voltar futuramente são mínimas”, diz Michele.
Em 2021, o ITTC e outras organizações parceiras conversaram com 471 familiares de pessoas presas em todas as regiões do país. Na ausência de dados oficiais abrangentes, o objetivo da pesquisa era entender com que frequência as revistas íntimas acontecem, e como são conduzidas.
Mais de 77% dos visitantes relataram já ter passado pelo procedimento. A violação se estende às crianças: mais de 70% delas tiveram seus corpos revistados, de acordo com o estudo.
“[A agente] mandou minha filha tirar a roupa e tirar também as roupas íntimas e abaixar três vezes seguidas. Tirei a roupa do meu filho e abri o bumbum dele para a agente ver se estava tudo em ordem. Não me esqueço daquela cena , já faz quase 2 anos”, relatou uma das entrevistadas pelo levantamento.
Na avaliação de Michele, a manutenção das revistas vexatórias contraria tratados assinados pelo Brasil de combate à tortura; e viola o princípio de que a pena não pode ser estendida para além da pessoa que foi condenada. Ou seja: não tendo cometido crimes, os familiares da pessoa presa não podem ser punidos ao visitá-la.
Excepcionalidade que virou regra
Hoje, há leis que restringem ou proíbem a revista íntima em nove estados brasileiros e na cidade de Manaus (AM). Apesar disso, relatos recebidos por organizações do terceiro setor e pelas defensorias públicas dessas localidades indicam que o procedimento ocorre com frequência.
Em São Paulo, por exemplo, a prática é vedada por uma lei de 2014. Apesar disso, a Defensoria Pública do Estado contabilizou 158 denúncias envolvendo “visitas familiares e revista vexatória” em 2024. O órgão informa que, sob essa categoria, são agrupadas diversas queixas — e não somente aquelas relacionadas a revistas íntimas.
Em Minas Gerais, uma lei de 1997 — pioneira no país — estabeleceu que as revistas íntimas devem ser exceção. A defensoria pública mineira disse, por email, que não contabiliza denúncias envolvendo o procedimento. Mas avalia que o que deveria ser exceção, “na prática, é a regra”.
Leis semelhantes existem, ainda, na Paraíba, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Mato Grosso, Rio Grande do Sul, Goiás e Santa Catarina. No caso deste último, a Defensoria Pública do estado informou que a proibição resultou de uma ação movida pelo órgão em 2014. Dados enviados pela Penintenciária da Capital à defensoria catarinense no ano passado atestam que, hoje, a “vistoria por scanner é suficiente e regular para a visita pessoal do familiar”: “Apenas 3% dos visitantes não conseguiram concluir a revista por scanner porque as imagens revelavam inconsistências (suspeitas), caso em que o visitante é encaminhado para visitação por parlatório (sem contato físico com o preso)”.
Michele avalia que uma decisão do STF contrária à prática pode eliminar essa distância entre o que dizem as leis e o que acontece na realidade. “Hoje, as leis estaduais são poucas e esparsas. Uma decisão do STF obrigaria o Brasil todo a se adaptar. E nos daria forças para questionar ilegalidades judicialmente”.
A discussão na Corte foi interrompida no último dia 06, e ainda não tem data para ser retomada.
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