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Isolados pela Covid-19, indígenas temem passar fome no MS

Preocupação envolve grupos em áreas de litígio, sem espaço para plantar e criar animais. Má nutrição e problemas no sistema de saúde deixam indígenas vulneráveis

Rafael Ciscati

8 min

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Isoladas para evitar casos de contaminação pelo novo coronavírus, comunidades indígena Guarani-kaiowá do Mato Grosso do Sul temem passar fome durante a pandemia de Covid-19. O estado reúne a segunda maior população indígena do país: cerca de 50 mil Guarani-Kaiowá, segundo informações da fundação Nacional do Índio (Funai). São grupos que, em alguns casos, não dispõem de área de cultivo capaz de produzir alimento para toda a aldeia.  A situação se agrava para aquelas populações que vivem em territórios disputados por fazendeiros, ainda não homologados. Nesses casos, as famílias moram em barracas de lona. Não há espaço para plantações ou criação de animais.

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A preocupação é manifestada por lideranças indígenas Guarani-Kaiowá em grupos de whatsapp. Segundo os relatos enviados à Brasil de Direitos, correntes fecham os acessos às aldeias da região, para barrar a passagem de intrusos. Tentam evitar, também, que os indígenas frequentem as cidades, e tragam consigo a covid-19. “A polícia fica na entrada. Ninguém entra nem sai da aldeia”, afirma uma liderança em vídeo enviado para a reportagem. Sem poder circular, temendo os efeitos da pandemia, as famílias veem a comida escassear: “Estamos passando fome. Nas aldeias e nas retomadas”, afirma uma mulher numa mensagem de áudio.

A importância do isolamento, apoiado por muitas das lideranças, foi reforçada pela Funai. No dia 17 de março, a autarquia publicou uma portaria limitando  o contato de seus funcionários com os povos indígenas “ao essencial, de modo a prevenir a expansão da epidemia”. Suspendeu, também, a concessão de novas autorizações de entrada nas terras indígenas. Ações de isolamento são consideradas  essenciais por especialistas em saúde e pela Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Para a organização, a medida pode evitar a propagação do coronavírus em meio a essa população. No passado, epidemias virais causaram a morte de comunidades inteiras.

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Na avaliação de especialistas, as restrições também arriscam deixar algumas populações em situação de risco nutricional, se não vierem acompanhadas por ações de suporte do Estado. “Há uma grande diversidade de realidades entre as populações indígenas. Nem todas dispõem de condições para cultivar o próprio alimento ” explica o antropólogo Tonico Benites, pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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É esse o caso dos guarani-kaiowá de Mato Grosso do Sul. Com área de cultivo insuficiente, essas populações complementam a alimentação com artigos comprados nas cidades próximas. Dependem, também, das cestas básicas entregues pelo governo do estado  – no caso das áreas demarcadas – e pela Funai às aldeias. “Mas há atrasos na entrega desses alimentos”, afirma Benites, que acompanha a situação no estado. “As remessas de fevereiro foram entregues. Mas as de março ainda não”. O quadro é ainda mais delicado para aquelas comunidades em área de litígio. São cerca de 1500 famílias guarani-kaiowá, nos cálculos de Benites. Desde o início de 2020, elas travam um cabo de guerra com a Funai.

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Habitualmente, a entrega dos alimentos  às comunidades em áreas não demarcadas é feita pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), uma empresa pública. Os técnicos da Conab são guiados pelos funcionários da Funai até as famílias beneficiadas. No começo deste ano, um despacho enviado pela diretoria da Funai afirmou que não cabia à autarquia distribuir alimentos para famílias residentes em áreas não demarcadas. A ordem foi contestada pelo Ministério Público Federal. Segundo o MPF, a Funai alega que a distribuição dos alimentos a essas comunidades é papel da União. O MPF rebate que a Funai é um órgão da União e que, portanto, a responsabilidade é da autarquia.


Indígenas guarani-Kaiowá mostram corrente posta no acesso a aldeia no Mato Grosso do Sul (Foto: reprodução whatsapp)

Sem remessas de comida, e sem conseguir ir às cidades, as mensagens trocadas pelos guarani-kaiowá são de apreensão: “O coronavírus é mortal. Mas a fome também mata”, afirma uma mulher num dos grupos de whatsapp. “Não nos deixam ir às cidades, e ninguém vem vender alimento aqui. Eu já não tenho nada em casa. Quem tem criança precisa de comida”, diz outra.

Procurada, a Funai afirmou, em nota, que as famílias indígenas receberam as cestas de alimento no mês de março. Segundo a autarquia, os artigos começaram a ser distribuídos com uma semana de atraso. O órgão também afirmou que já deu início à distribuição das remessas do mês de abril: “Os trabalhos iniciaram na semana retrasada, quando foram entregues 497 cestas na Coordenação Regional da Funai em Campo Grande. Na semana passada, 1.100 cestas de alimentos foram entregues na unidade da Funai em Dourados. Já as 1.400 restantes serão doadas a partir desta segunda-feira (30), seguindo até 8 de abril. Ao todo, serão entregues 2.997 cestas até o dia 8 de abril, com o suporte da Funai”, informa a nota. A autarquia também ressaltou que, ao definir que famílias serão beneficiadas, “a Funai não parte do pressuposto do estágio de demarcação de Terra Indígena para distribuição das cestas básicas”. 
Faltam recursos para saúde indígena
Em maior ou menor grau, o temor de que faltem alimentos se repete entre comunidades indígenas pelo país: “A ideia de que essas populações vivem isoladas e são autossuficientes é equivocada. Muitos grupos dependem da venda de artesanato, e do contato com as cidades”, conta Ana Lúcia Pontes, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e especialista em saúde indígena. Segundo ela, hoje se discute a inclusão dessas populações em programas de combate à insegurança alimentar: “Seria uma forma de garantir sua sobrevivência e limitar a necessidade de deslocamentos”.
Um cenário de alimentação precária pode aumentar a fragilidade de populações que, por razões epidemiológicas e sociais, já estão especialmente vulneráveis à epidemia. Casos de má nutrição já são  frequentes entre indígenas, explica Pontes. “Nos últimos anos, a população indígena aumentou,e se acirraram também as disputas por terra com proprietários rurais”, afirma. Por causa disso, há situações em que a terra disponível para plantar já não basta para alimentar toda a aldeia. Além disso, segundo a pesquisadora, essas populações estão expostas a  doenças que podem ocorrer simultaneamente à Covid-19, como malária e outros agravos respiratórios. A alimentação ruim, associada a más condições de saúde, pode comprometer a resposta do sistema imunológico à infecção pelo Sars-Cov-2.
Em meio à pandemia, preocupa, ainda, a fragilidade do subsistema de saúde indígena. Criado em 1999, o subsistema compreende políticas e instituições que se encarregam de garantir o atendimento integral em saúde das populações indígenas. Ele é organizado em Departamentos Especiais de Saúde Indígena (Dseis), divisões territoriais que somam 34 em todo o Brasil.  Estas, por sua vez, são coordenadas pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Habitualmente, a Sesai lida com dificuldades para prestar atendimentos, como diferenças culturais e a necessidade de percorrer grandes distância para chegar a populações aldeadas. “Esse é um trabalho já caro por natureza”, diz Pontes. Desde o ano passado, essa estrutura vem sendo questionada. No começo de 2019, o governo Bolsonaro considerou extinguir o subsistema de saúde indígena. A ideia, na ocasião, era municipalizar os cuidados a essas populações. O plano não seguiu adiante mas, desde então, especialistas no setor falam em contigenciamentos dos recursos da Sesai. “Tudo isso vai afetar a capacidade de resposta à emergência do coronavírus”, diz Pontes.
Por ora, a Sesai registra 13 casos suspeitos, e nenhum confirmado, de coronavírus entre indígenas.

Atualização: no dia 01 de abril, a Sesai comunicou a identificação do primeiro caso de coronavírus entre indígenas. A paciente diagnosticada é uma mulher de 19 anos da etnia Kokana, que mora na aldeia São José, em Santo Antônio do Iça — no departamento do Alto Rio Solimões.

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