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Leci Carvalho: Homens fazem política baseada em acordos. Mulheres, em resultados

Em entrevista ao Fórum Grita Baixada, a professora defende a importância de políticas que promovam a equidade de gênero

Fabio Leon

14 min

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A data de 25 de julho celebra o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, homenagem à Tereza de Benguela, líder quilombola que se tornou rainha, resistindo bravamente à escravidão por duas décadas. Esse ano, a data traz à tona a luta da mulher contra o feminicídio, as reformas que destroem os direitos do povo brasileiro, principalmente, das mulheres negras e por reparações à comunidade negra. A data é importante por chamar à reflexão para a situação de um dos grupos majoritários da sociedade, porém mais explorados e oprimidos, que é a mulher negra.

A efeméride resgata a história da mulher negra no Brasil. É um histórico de luta e resistência, como no período colonial, em que mulheres enfrentaram o escravismo, dirigindo insurreições, fazendo parte da direção dos quilombos, como é o caso da Tereza de Benguela. Ela liderou o Quilombo de Quariterê após a morte de seu companheiro, José Piolho. Conforme documentos da época, o lugar abrigava mais de 100 pessoas, com aproximadamente 80 negros e 30 indígenas. O quilombo, localizado no Vale do Guaporé (MT), resistiu da década de 1730 até o final do século XVIII. Tereza foi morta após ser capturada por soldados em 1770.

Para simbolizar a luta de todas essas mulheres, Fórum Grita Baixada convidou uma representante histórica na luta pelos direitos humanos ligados à Educação da Baixada Fluminense, a professora Leci Carvalho. Formada em Pedagogia e com especialização em História da África e do Negro do Brasil, sua militância começa no movimento estudantil em 1984. Cinco anos depois ingressa no movimento feminista, sempre pontuando a questão dos direitos reprodutivos, em especial as políticas de maternidade, assim como os direitos à concepção digna e contracepção.

A militância não se retingiu somente ao campo educacional. Ingressou em dois partidos políticos, primeiro o PT e posteriormente no PSOL. Foi candidata a prefeita de Nova Iguaçu, em 2016, a deputada federal, em 2018 e, novamente, à prefeitura da cidade em 2020.

Está em vias de terminar sua dissertação de mestrado sobre políticas públicas de gênero com enfoque nas escolas municipais em Nova Iguaçu. Em seu estudo, ela afirma que as unidades básicas de ensino estão reproduzindo o modelo patriarcal especialmente nos horários do recreio. As meninas, segundo a professora, ficam cada vez mais acuadas e os espaços são dominados pelos meninos. “Há uma imposição dos meninos para que as meninas fiquem ali apenas pulando cordinha. As escolas estão pouco discutindo racismo, machismo e homofobia”, diz Leci.  

Fórum Grita Baixada: O que a militância, especialmente a político-partidária, ainda precisa aprender sobre a defesa da igualdade de gênero?
Leci Carvalho: Eu acho que tem de aprender muito. Não basta estar num partido político de esquerda e ignorar que existe um machismo estrutural. Vivemos numa sociedade estruturalmente machista, racista e patriarcal e isso reflete na militância. Eu sofro problemas sérios de gênero dentro do partido. A forma de militar das mulheres é diferente da dos homens. Não que não possamos fazer igual, mas é porque você tem uma trajetória cultural diferenciada, nos posicionamos de uma maneira diferente. Normalmente as mulheres precisam ser mais incisivas na forma de como resolver certas questões. Nós temos um fazer político cuja base é a conciliação. Os homens constroem suas políticas na base dos acordos, mas isso não quer dizer que em ambos os casos não haja erros. O problema é que muitos acordos que nós mulheres fazemos não possuem tanta elasticidade. Nós trabalhamos muito mais com resultados, percebemos esses resultados com mais sensibilidade em função de nosso cotidiano prático: é o acesso ao posto de saúde, o filho que não está podendo ir à escola, é a condução que está ruim, é a falta de água. Como vou tomar banho, lavar roupa, fazer comida? Sentimos muito mais esses efeitos, porque a sociedade patriarcal nos coloca nesses cotidianos de precariedade, reforçando uma divisão social do trabalho que não é igual.

Como você vê as medidas do governo federal no campo do mundo do trabalho e seus impactos para a população negra, em especial as mulheres?
Eles têm atacado elementos que nós mulheres conquistamos há pouco tempo. Licença maternidade, licença paternidade. São políticas que, para eles, reforçam uma série de prejuízos aos empregadores. A mulher engravida, fica um tempo sem trabalhar e não pode, por lei, ser mandada embora. Pra esse sistema capitalista e o mundo do trabalho em geral, a mulher dá prejuízo. Com isso, os índices de desemprego entre as mulheres e, principalmente, entre as mulheres negras é maior. Esse hiato aumenta quando você faz uma comparação com os salários entre homens e mulheres. E vivemos em um país em que 61% dos lares são chefiados por mulheres, especialmente entre a população negra.

Como você analisa os impactos da Covid na ampliação da pobreza e na vulnerabilidade das famílias, muitas delas chefiadas por mulheres?
Nós escutamos durante um certo tempo que a pandemia atingiu a todos da mesma forma. Isso não é verdade. As famílias que já eram historicamente vulnerabilizadas ficaram mais vulnerabilizadas ainda. Estamos falando das mulheres chefes de família que não estão no trabalho formal. A gente precisa lembrar a questão das empregadas ou trabalhadoras domésticas. É um setor que há pouco tempo saiu da condição análoga à escravidão, pelo menos oficialmente falando. Direitos como o 13º.salário, férias, eram garantidas para todas as classes trabalhadoras, menos elas. Com isso, surgiu uma classe média que ficou completamente descontente com essas medidas e direitos dados a essa parcela da sociedade, porque perdeu-se um pouco a manutenção desse processo de escravização que ainda se mantém, pra você ver o nível de mesquinhez da nossa sociedade. São os mesmos descontentes com programas como o Bolsa Família, por fornecer esse resgate de cidadania, mas aí vieram os descontentes de novo e disseram que muitas mulheres de favelas e periferias teriam mais filhos apenas para ganhar o benefício. E várias pesquisas apontaram que as mulheres que queriam entrar no Bolsa Família, eram mães solteiras com dois, três filhos no máximo. Elas não queriam mais. E muitas delas passando fome. É um percentual da população que não conseguiu se salvaguardar no momento mais caótico da pandemia, especialmente quando começou a vigorar o período de isolamento social. Isso é um atravessamento muito sério. É um número que não para de crescer; são mulheres que não conseguem dar o café da manhã pros seus filhos. O que estamos vendo é uma desestruturação das políticas públicas redistributivas.

Como você enxerga os desafios atuais para a luta das mulheres e homens contra o racismo e o machismo?
Vivemos numa sociedade machista e racista, isso é um fato. Embora exista um conjunto de esforços sendo feitos —que até passa por uma ocupação de espaços—, eles (os esforços) ainda são frágeis quando consideramos as questões estruturais e efetivas. Hoje, quando nós, mulheres latino-americanas, falamos da questão racial e patriarcal não podemos nos esquecer da população indígena que já estava aqui antes de nós chegarmos. Ainda não conseguimos fazer uma discussão sobre diminuição da desigualdade no âmbito racial e de gênero. Esses dois elementos precisam estar na centralidade. Embora existam, por exemplo, políticas de cotas nas universidades, elas resolvem a questão racial dentro do mercado de trabalho? E as bolsas cortadas por esse governo? Como se manter nas universidades sem dinheiro? Como está a questão do transporte para as alunas e alunos da rede pública e das próprias universidades, considerando que nós mulheres negras moramos na periferia e são basicamente alunas e alunos negros que mais necessitam desse subsídio? Não basta apenas conquistar o direito, mas como ter e garantir o acesso a ele.  Infelizmente, ainda vivemos numa sociedade branca e racista, e o pior, pactuada com a falta de entendimento de figuras públicas negras que não conseguem fazer um confronto com as pautas estruturais. Aí o discurso cai na superficialidade da “ocupação de espaço”. Essa estrutura está nos partidos políticos e é a partir daí que são feitos esses acordos. Vou dar um exemplo: como é que uma pauta feminista sobre o aborto, que é um assunto caro para as mulheres negras e pobres, pode ser feita dentro dos partidos, inclusive os de esquerda, com um conjunto de homens que estão negociando com a parcela mais conservadora que é a religiosa? Como avançar, então, na pauta da descriminalização do aborto? Você acha que a proibição significa que elas não vão fazer? Claro que vão! Mas vão fazer em clínicas clandestinas, com material de péssima qualidade. Então torna-se uma questão entre morrer ou sobreviver. Desde as décadas de 1980 e 1990, nós, feministas, discutimos o aborto como uma questão de saúde pública. E em 2022 ainda discutimos sobre o direito de fazer o que quisermos com os nossos corpos! Mas também é preciso evitar as polarizações, pois temos de ter uma maternidade de qualidade para as mulheres negras e pobres, a medicina obstétrica humanizada e de qualidade precisa ter acessibilidade de mulheres negras e pobres também. Qualquer dicotomia nesse sentido é muito perigosa.

A Baixada muitas vezes expressa os piores indicadores sociais do Estado. No aspecto das políticas públicas como você avalia nossos principais desafios?
É preciso diminuir as desigualdades, mas falar apenas isso não é suficiente, pois há outros interesses que permeiam os nossos gestores. Quando falamos em política pública estamos falando de uma necessidade de atendimento a grupos específicos dentro da sociedade como negros, mulheres, crianças, etc. Como atender a esses grupos? Através de diagnósticos também específicos. O problema é que os políticos trabalham com currais eleitorais e tentam atender às necessidades que eles, somente, consideram essenciais nesses currais. Para se fazer uma gestão pública, que é algo bem diferente, é preciso se criar fóruns mais amplos para se ouvir a sociedade. Tem dinheiro pra tudo? Não tem. Mas quais são as prioridades e quem as define? E como vai ser gasto esse dinheiro público dentro dessas prioridades? Pra isso tudo acontecer com eficiência, é preciso fazer uma consulta pública. Isso não pode ser perdido de vista. Já fizemos pesquisas em Nova Iguaçu em que a gente considerava que o primeiro elemento enquanto política pública a ser considerada seria a educação. No entanto, vimos depois que era o transporte. Mas por que o transporte era algo primordial? Em função da grande massa de trabalhadores que se desloca para a cidade do Rio de Janeiro, considerando a histórica condição de Nova Iguaçu como “cidade-dormitório”. Mas depois pensamos mais um pouco. Será que investir em transporte público de qualidade poderia impedir que moradores da periferia madrugassem nos postos de saúde em função de algum tipo de emergência? Porque pra acessar a saúde você tem que sair de casa. Nova Iguaçu é uma das cidades da Baixada com os maiores índices de violência doméstica, principalmente nas comunidades do bairro do K11, que virou território da milícia. Embora seja um bairro colado ao centro de Nova Iguaçu, ficou muito difícil apurar denúncias nessa região. Além da questão do transporte que ficou muito precarizado, com moradores tendo de desembarcar na estação de trem e irem para suas casas à pé. São vários elementos de vulnerabilidade.

A violência de gênero e a violência doméstica atingem de sobremaneira as mulheres negras. O que ainda precisa ser feito para reduzir essa chaga?
Quando a gente fala sobre violência doméstica, falamos de uma sociedade que desassiste as mulheres quase que completamente. Quando a mulher é obrigada a conviver com um homem violento, qual a rede de proteção que ela recebe para se separar desse homem e cuidar para que os filhos não tenham sequelas? Das 13 cidades que compõem a Baixada Fluminense, várias não possuem Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher (DEAMs). Praticamente só Caxias e Nova Iguaçu têm. Não tem DEAM em Queimados, Mesquita, Japeri, São João de Meriti. Como sistematizar essas denúncias? E o CIAM? (Centro Integrado de Atendimento à Mulher) ali no Bairro da Luz, também em Nova Iguaçu, uma referência no atendimento à violência doméstica, pois tinha atendimento jurídico, psicológico, espaço para as crianças brincarem enquanto as mães eram atendidas. Foi sendo desmontado aos poucos. O CIAM era do Estado, mas os funcionários eram cedidos pelo município. A prefeitura de Nova Iguaçu parou de pagá-los, alguns trabalharam com seis meses de salário atrasado e, aos poucos, eles foram se retirando, psicólogas, advogadas, assistentes sociais… Era um equipamento público de primeira, aí foi abandonado, a população de rua se apropriou do prédio. E o que sobrou está em uma salinha da 56ª. DP com homens passando o tempo inteiro ali, vulnerabilizando cada vez mais as mulheres que sofreram casos de abuso. É um atendimento quase fictício. Vivemos uma situação tão extrema que chega a ser surreal. Uma das regras no novo Plano Municipal de Educação (PME) era suprimir a palavra gênero, inclusive de expressões como “gênero alimentício”, para evitar a politização da expressão! As igrejas neopentecostais fizeram lobby para a retirada da palavra. Imagina, então, as educadoras e educadores lidando com isso, sem ter nenhum respaldo de segurança para que lecionem em paz. É preciso que se discuta a transversalidade da questão e não apenas punir os professores e professoras que queiram discutir sobre.

O que as mulheres negras querem do futuro presidente e dos futuros governadores?
Acho que os governos deveriam criar condições mínimas para radicalizar a democracia. E garantir as consultas para as políticas públicas. Mas essa radicalização eu acho que não vai ter. Acho que ainda vamos ter governos muito ruins em função de uma conjuntura muito difícil e há um outro elemento que devemos levar muito em consideração que são as candidaturas de coalizão. Quando as candidaturas fazem coalizão, a gente sabe que elas vão abrir mão de suas pautas tradicionais em função dos acordos. E nem estou falando de uma frente ampla, estou falado de mega coalizões. E o que a burguesia, que faz parte dessas grandes coalizões, espera disso tudo? Ela espera dois elementos: meter a mão no dinheiro dos fundos como o FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), o FGI (Fundo Garantidor para Investimentos, do BNDES) e o FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica – conjunto de fundos contábeis formado por recursos da administração estatal do Brasil para promover o financiamento da educação básica pública), por exemplo. Ela quer garantia jurídica por parte dos governos para não sofrerem qualquer tipo de represália ou operação para incriminá-las de alguma forma. Ela quer ser blindada de qualquer suspeita de corrupção. E como se garante políticas públicas para os mais vulneráveis dessa forma? O capital está em crise e precisa expropriar recursos para a sua manutenção, destruindo os direitos dos trabalhadores. Eu, particularmente, tenho pouca expectativa, mas não podemos acreditar somente no processo eleitoral, não podemos nos desmobilizar e devemos juntar mais aliados a favor de uma radicalização da democracia para disputar a hegemonia. Precisamos é de um enfrentamento real.

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