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Letalidade, Violência e Política De Segurança Pública no Maranhão

Pessoas negras são principais vítimas da violência policial. É preciso uma cultura institucional de promoção da igualdade racial e controle popular da segurança pública

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Por Cristian Gamba e Jorge Serejo*
*Pesquisadores do Projeto “Enfrentando o seletivismo penal e suas consequências” 

Na semana em que a Folha de São Paulo veiculou vergonhoso de opinião acerca do que chama de “neorracismo reverso”, “racismo negro”, “projeto supremacista negro” e outras aleivosias próprias daquele desagradável tio do pavê racista que estraga a felicidade do domingo em família defendendo Bolsonaro, o noticiário de São Luís do Maranhão estampou um caso de discriminação racial que sintetiza, a um só tempo, a realidade descomunal a que corpos negros estão submetidos em uma tessitura historicamente perversa e excludente como é a do Brasil, e que a miséria intelectual de Antônio Risério, o autor do texto, deseja negar.

>>Para repensar a segurança pública

A notícia é que a jovem Tainara dos Santos estava dentro de um ônibus coletivo quando o motorista suspeitou que ela e mais duas pessoas fossem criminosos e estacionou próximo a uma viatura da Polícia Militar no bairro do João Paulo. Após a abordagem, o motorista recusou o reingresso dos três no veículo e seguiu viagem. A jovem foi jogada no chão pelos agentes e, imobilizada, enquanto um deles apontava uma pistola para seu rosto, o outro apoiava o joelho sobre seu pescoço, emulando a forma como George Floyd foi assassinado em 2020 nos Estados Unidos. Tudo isso registrado por passageiros do ônibus. Tainara ainda foi conduzida pelos agentes para uma delegacia, onde afirma que ficou quatro horas incomunicável e teve contra si registro de ocorrência pelo crime de desacato[1].

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Não é por acaso que tais acontecimentos se dão, tampouco eles são isolados. Tainara dos Santos é negra, como, aliás, é negra a maioria das vítimas de violência e de letalidade policial no Brasil. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que entre 2013 e em 2020 o crescimento de mortes decorrentes de intervenção policial (civil e militar) foi de 190%, chegando no último ano a 6.416 pessoas mortas. Desse total, 79% são negros, concentração superior ao percentual da população negra brasileira (56,3%); havendo, portanto, aquilo que o Anuário chama de sobrerrepresentação[2].
Ainda de acordo com o Anuário, o Maranhão ocupa a 17ª posição de mortes por intervenção policial e São Luís, a capital, das 50 cidades com maior taxa de letalidade policial no Brasil, ocupa a 45ª posição. Monitoramento da Rede de Observatórios da Segurança aponta que a cada quatro horas uma pessoa negra é morta em operações policiais; contabilizando Bahia, Ceará, Piauí, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo, 82,7% das vítimas são negras[3]. O Maranhão não dispõe de registros oficiais em relação violência e letalidade policiais no que tange a aspectos raciais; eis um grave problema, inclusive, para um estado que aprovou em 2020 seu Estatuto de Igualdade Racial, integrando a Secretaria de Segurança Pública o chamado “Sistema Estadual de Promoção da Igualdade Racial”, instrumento que até o momento não existe. Sabe-se, porém, que o número de pessoas vitimadas por intervenção policial no estado saltou de 72 em 2019 para 97 em 2020, de acordo com a Rede de Observatórios.

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No que diz respeito à violência, tal como a sofrida por Tainara dos Santos, dados da Corregedoria da Polícia Militar mostram que o Maranhão tem uma média de 829 policiais militares respondendo a processos administrativos por falhas funcionais. Em 2020 esse número foi de 640 agentes e até julho de 2021 o número foi de 230. Entre 2015 e o 1º semestre de 2021, a Corregedoria contabilizou 970 casos de agressão, 229 casos de ameaça, 81 casos de homicídios, 163 casos de invasão domiciliar, 96 casos de tortura, 191 casos de violência em geral[4].

De tudo o que está disposto aqui, que poderia ser acrescentado a quaisquer dados sobre quaisquer fenômenos sociais no Brasil, negras e negros estão em desvantagem: segurança alimentar, acesso à justiça, empregabilidade, mobilidade, saúde, educação, moradia etc. Com isso, opera-se nos mais variados níveis e esferas aquilo que o filósofo Achille Mbembe chama de “lógica do recinto fechado”, ou seja, processos de racialização que marcam onde determinados grupos populacionais podem se situar, os espaços que podem ocupar, e, no limite, a tecnologia do cálculo dos direitos que podem gozar.

Há elementos de sobra para rebater o lixo textual produzido por Risério, mas o fato é que ele fala para um segmento, que, lamentavelmente a Folha de São Paulo almeja agradar, os revisionistas que, em nome de uma suposta liberdade de manifestação absoluta de pensamento, consideram possuir o direito de expressar o que desejam sem quaisquer possibilidades de freios civilizatórios para inibi-los. Dentre eles – e os representando – o Presidente da República, eleito sob o signo do policialismo, do autoritarismo e da violência.

Embora essa racionalidade seja mais explícita e banalizada hoje em nível federal por conta das posturas do mandatário da nação, a verdade é que sub-repticiamente ela naturaliza o racismo institucional desde tempos coloniais e está na base da reprodução de justiçamentos, sejam eles provocados lamentavelmente por agentes da segurança pública, ou por grupos de extermínio e milicianos, com a legitimidade do discurso de mais segurança. Independentemente de qual seja o espectro político do governo, central ou local, se mais ou menos progressista, em maior ou menor grau essa ideologia estará operando cisões.

Ora, o que dizer das declarações do Secretário de Segurança do Maranhão, que por ocasião do assassinato de 3 policiais militares veio a público, em entrevista concedida ao jornalista Domingos Ribeiro no dia 21.10.2021,  informar que diante do confronto o “bandido do lado de lá tem que tombar”, e que “bandido desarmado vai sentir o peso da força da polícia do Maranhão, que o comando é claro, para usar a força, neutralizar o bandido, ou ele se entrega ou ele é neutralizado pela intervenção policial”. Naquele mesmo dia, 7 pessoas foram mortas em execuções em periferias da Grande Ilha, sem que as circunstâncias de tais mortes tenham sido até hoje elucidadas. 

Uma medida que vem sendo adotada em vários países e recentemente em alguns estados do Brasil é a utilização de câmeras acopladas no fardamento policial. Estudo realizado com a Polícia Militar de Santa Catarina com 450 policiais revelou que a utilização do equipamento reduziu em 61,2% o uso da força (força física, uso de armas letais e não letais, algemas e prisões de civis). Houve ainda uma redução de 28,5% dos números de registro de desacato e desobediência[5]

A Polícia Militar de São Paulo instalou cerca de 3 mil câmeras em uniformes de policiais. Nos primeiros meses de utilização do equipamento dados apontaram redução de 40% no índice de letalidade policial[6]. Dados mais recentes revelam que a medida resultou na redução de 85% nos últimos sete meses de 2021, comparados com o mesmo período de 2020; entre 1º de junho e 31 de dezembro do ano passado ocorreram 17 mortes decorrentes de intervenção policial nos 18 batalhões onde câmeras foram instaladas no fardamento de policiais militares; no ano de 2020, no mesmo período, esse número foi de 110 mortes. Circunstâncias que envolvem a vitimização policial, que em 2020 foi de 194 policiais civis e militares segundo o Anuário[7] (62,7% negros), também poderiam ser mais bem esclarecidas com a utilização de câmeras.

Longe de ser uma alteração profunda no sistema de segurança, a adoção do equipamento seria, ainda que mínima, uma possibilidade de avanço na redução da letalidade e da violência policiais também no Maranhão?

Por ora, o que nos resta é pensar que mortes como a de Hamilton César, no povoado Calumbi, Presidente Dutra-MA, em que três policiais militares invadiram sua residência e o alvejaram para realizar flagrante de suposto crime de apologia à violência ou do jovem Marcelo Machado, visto pela última vez entrando em uma viatura policial em Paço do Lumiar-MA, ou ainda casos de violência policial como o de Tainara dos Santos ou, mais recentemente, de jovens agredidos no Centro Histórico de São Luís-MA, poderiam ser evitados se a Secretaria de Segurança Pública investisse sua energia no combate à letalidade e à violência, na adoção de estratégias que não passassem pelo uso da força, na criação de uma cultura institucional de promoção da igualdade racial, na formação cidadã dos agentes e no incentivo ao controle popular da política de segurança.

Do contrário, as estruturas da política de segurança pública serão mantidas, a população negra continuará sendo vitimada e, não bastasse, ainda teremos que ler asneiras como a que a publicou Antônio Risério na Folha de São Paulo.

[1] https://g1.globo.com/ma/maranhao/noticia/2022/01/16/jovem-negra-denuncia-pms-por-racismo-no-ma-apos-motorista-de-onibus-acionar-policia-por-suspeitar-que-ela-era-criminosa.ghtml
[2] https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/10/anuario-15-completo-v7-251021.pdf
[3] http://observatorioseguranca.com.br/uma-pessoa-negra-e-morta-pela-policia-a-cada-quatro-horas/
[4] https://g1.globo.com/ma/maranhao/noticia/2021/09/02/maranhao-tem-media-de-829-policiais-militares-investigados-na-corregedoria-a-cada-ano.ghtml
[5] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58756616
[6] https://jornal.usp.br/atualidades/violencia-policial-nao-sera-resolvida-somente-com-cameras-em-uniformes/
[7] Em 2020 houve um aumento de 12,8% de vitimização policial em relação ao ano anterior, sendo que dos 194 agentes vítimas de crimes violentos letais intencionais, 72% estavam de folga.  O anuário também registrou 472 policiais civis e militares vítimas de COVID-19 e 50 vítimas de suicídios.

Foto de topo: Mídia Ninja

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