Lugares sagrados para os indígenas não são protegidos, afirma liderança em livro
Na avaliação do antropólogo Francisco Apurinã, o licenciamento ambiental de grandes obras falha ao não levar em conta as crenças dos povos indígenas
Rafael Ciscati
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O antropólogo Francisco Apurinã, do povo indígena Apurinã do Amazonas, conta que vive uma antiga relação de “encontros e desencontros” com os processos de licenciamento ambiental. Trata-se daquele conjunto de estudos e documentos que empresas e governos devem apresentar a órgãos ambientais de modo a autorizar a realização de uma obra, ou a operação de um empreendimento. Ele avalia quais os impactos da novidade sobre o meio-ambiente e sobre as comunidades que vivem na região — e detalha medidas destinadas a reduzir esses prejuízos. “É muito comum que as soluções pensadas para mitigar os impactos sejam homogêneas. Adota-se a mesma medida para contextos distintos. Isso é insuficiente”, afirma o antropólogo.
Apurinã fala com a segurança de quem, como antropólogo, participou da realização de estudos de impacto ambiental, uma das etapas do processo de licenciamento. E como alguém que vivenciou, enquanto indígena, as insuficiências desses mecanismos. No Amazonas, os territórios dos Apurinã são divididos por uma estrada, a BR-317. Segundo ele, a presença da estrada facilitou o acesso de caçadores à terra indígena. Para além dos impactos ambientais, os danos causados pelos invasores afetaram a relação dos indígenas com lugares que eles consideram sagrados, os kimirury “ A estrada afetou a relação dos Apurinã com a água, o ar e as camadas celestes”, conta. “Mas não há nenhum documento, dentre os muitos do processo de licenciamento ambiental, que fale sobre a proteção dos kimirury”.
No recém lançado Do Licenciamento Ambiental à Licença dos Espíritos, Apurinã discute como, segundo ele, os órgão responsáveis pela proteção ambiental e dos povos indígenas desconsideram a cosmovisão — as crenças — dessas populações ao avaliar os prejuízos provocados por novos empreendimentos. Em muitos casos, os impactos da obra, quando avaliados segundo as crenças e valores desses povos, equivalem a uma catástrofe. No caso dos Apurinã, ao desrespeitar os espíritos que habitam os kimirury, a estrada criou uma espécie de desequilíbrio que fez a população de animais para caça diminuir. É segundo esse olhar que esse povo explica as catástrofes ambientais que hoje se repetem pelo mundo. “Aquilo que os cientistas chamam hoje de aquecimento global, para nós, são sinais desses seres espirituais, que habitam os kimirury, se rebelando”.
BRASIL DE DIREITOS: No livro, você argumenta que o licenciamento ambiental, como acontece hoje, não é capaz de mitigar os impactos provocados por grandes obras sobre a organização cultural dos povos indígenas. Quais as falhas?
FRANCISCO APURINÃ: Meu nome verdadeiro é Ywmuniry. É o nome que recebi dentro dos preceitos de meu povo, e significa “aquele que se alimenta de carne humana”. O licenciamento ambiental e eu temos uma antiga história de encontros e desencontros. Como antropólogo, já trabalhei em vários empreendimentos que exigiram licenciamento ambiental. E eu não acredito que as medidas de mitigação de impacto e de compensação previstas nesses processos sejam suficientes ou efetivas. Durante minha dissertação de mestrado, estudei casos de empreendimentos relacionados a terras indígenas no Acre. Percebi que as relações entre os empreendedores, os empresários, e os órgão de controle reproduzem, não raro, um ciclo vicioso, em que um facilita o trabalho do outro. Além disso, é muito comum que as soluções pensadas para mitigar os impactos sejam homogêneas. Adota-se a mesma medida para contextos distintos.
Como assim?
Há 36 povos indígenas no Acre. Cada um tem suas particularidades culturais, seus rituais e seus valores. Uma medida pensada para um desses grupos não será, necessariamente, benéfica para todos. Há um caso ilustrativo. Indígenas não criam peixe para vender. Não é próprio das culturas desses povos. Mas há uma experiência de psicultura que foi bem sucedida no Acre. O povo Hunikui mora na menor terra indígena do estado do Acre. São 305 hectares apenas. Quando essas terras foram retomadas por eles, havia apenas pasto destinado à criação de gado. Os igarapés e demais recursos naturais tinham sido degradados. Ali, um projeto de mitigação de impactos incluiu a construção de açudes para criação de peixes, e deu certo. Essa mesma solução foi adotada para outros povos indígenas, mas não funcionou. Porque outros povos não têm as mesmas necessidades, não vivem no mesmo contexto.
Os povos indígenas têm direito a ser consultados naqueles casos em que novos empreendimentos afetam seu modo de vida. Isso não basta?
Nesses processos, a participação dos povos indígenas é limitada. Eles são chamados a participar de audiências públicas. Mas, em muitos casos, mal sabem porque estão ali. São levados a legitimar planos e processos que já estão em curso. O que acontece nas audiências públicas é que oferecem pacotes de soluções prontas. Porque é para índio. A ideia é de que, se é para índio, pode ser de qualquer jeito. Pode ser a mesma coisa para todos os povos. É essa a visão eurocêntrica que impera. No meu mestrado, faço uma investigação da insustentabilidade dessas medidas de mitigação sobre o meio físico. Sobre o palpável, o que conseguimos enxergar. E então percebo que não existem medidas de mitigação que protejam os lugares que nós, Apurinã, consideramos sagrados. Não há nenhum documento que proteja os kimiruri.
O que são os kimirury?
São habitações das agências espirituais. Não estão atrelados só a um tipo de lugar, a um tipo de vegetação. Os kimirury podem estar nos barreiros, nos campos abertos, nos buritizais. Esses lugares precisam ser preservados porque de lá vem nossa fonte de alimento. São as agências espirituais que, durante a noite, soltam os animais que nós caçamos. Falo aqui de comida, mas também de alimento espiritual. De força, de saúde. E não há documentos que prevejam a proteção desses lugares
Isso significa que a cosmovisão dos Apurinã é negligenciada no licenciamento ambiental?
Sim. Essa ausência afeta os órgãos ambientais, a Fundação Nacional do Índio (Funai), as empresas contratadas para fazer estudos de impacto ambiental. No processo de licenciamento, o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) é o procedimento que avalia
a viabilidade do empreendimento e quais impactos trará para aquela sociedade humana. Mas o EIA esquece que a floresta, a natureza, tem outra sociedade. Numa volta de rio, moram guardiões. Seres espirituais que protegem os outros seres que habitam aquela região. Uma vez que esses guardiões são desrespeitados, eles se rebelam — reagem contra as pessoas que causam esse mal. Aquilo que os cientistas chamam hoje de aquecimento global, para nós, são sinais desses seres se rebelando.
Isso aconteceu no processo de licenciamento da BR-317, da qual você fala no seu livro?
Essa é uma rodovia que liga o município de Boca do Acre,no Amazonas, a Rio Branco (AC). Trata-se de uma estrada antiga que, nos idos da década de 1950, passou a ser expandida para se tornar rodovia federal. Nesse trecho, há dois territórios Apurinã, que a estrada corta ao meio. Eles ainda não foram pavimentados. Em 2008, foi feito um Estudo de Impacto Ambiental (EIA) que avaliou os reflexos dessa pavimentação. Mas foi um EIA ruim. Isso é muito comum: frequentemente, o EIA e o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) se revelam documentos genéricos, que aplicam o mesmo olhar para diferentes situações. Em 2013, conseguimos que fosse elaborado um Plano Básico Ambiental do Componente Indígena. Ele relata quais os impactos da obra sobre os povos do entorno, e estabelece medidas de mitigação desses impactos. O documento está pronto, mas nenhuma medida saiu do papel.
A estrada não chegou a ser pavimentada. Apesar disso, houve impactos para o seu povo?
Ela afetou a relação dos Apurinã com a água, o ar e as camadas celestes. A existência da estrada facilitou o acesso de invasores aos barreiros. Os barreiros são áreas da floresta onde as agências espirituais soltam os animais durante a noite. Ali eles comem, se reproduzem. É onde os Apurinã caçam, mas só o suficiente para a subsistência. Hoje, caçadores e madeireiros usam a estrada para assaltar esses lugares. Matam os animais mais que o necessário. Sujam os barreiros, deixam lixo por todo lado. Isso cria um desequilíbrio. Uma tia minha me disse: os donos dos barreiros, os pajés ancestrais, já não soltam os animais nos barreiros. Porque as pessoas deixaram de respeitar esses lugares. Logo, os animais não vão ser mais soltos. Não haverá caça.
Como incorporar as cosmovisões de cada povo a esses processos de avaliação de impacto ambiental?
Outro dia, ministrei uma palestra em um curso sobre medicina indígena. Contei para os alunos a história de um povo — um povo chamado brasileiro. Ele era fruto de um estupro. Nasceu de um pai branco e de uma mãe indígena. Mas de uma mãe cuja existência ele negava, por medo de ser considerado índio, bárbaro, canibal. O povo brasileiro andava com a cabeça cheia, mas cheia de fumaça, pouco pensamento. Há como mudar esse cenário, sem dúvida. Mas, para isso, o povo brasileiro precisa reconhecer sua mãe indígena e assumir quem de fato é.
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