Mal aplicadas, alternativas à prisão podem impedir réu de conseguir emprego
Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas mostra que penas alternativas, como o uso de tornozeleira eletrônica, são aplicadas sem critério, e ampliam desigualdades
Rafael Ciscati
8 min
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Prestação de serviços comunitários, uso de tornozeleira eletrônica, pagamento de multa : previstas no Código Penal brasileiro, as penas alternativas à prisão pretendiam restringir o uso do encarceramento como forma de punição. Uma nova pesquisa, desenvolvida pela Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas, indica que há problemas na forma como elas são utilizadas. De acordo com o trabalho, juízes raramente se informam sobre o contexto de vida da pessoa que será penalizada. Com isso, impõem penas estigmatizantes, que podem inclusive impedir que a pessoa consiga — ou mantenha — uma ocupação profissional. “Há situações em que as penas alternativas à prisão são aplicadas de maneira desproporcional. O resultado é a ampliação das desigualdades” afirma a cientista social Belle Damasceno.
Pesquisadora da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas, Belle é uma das responsáveis pelo estudo “Do descrédito ao desmonte: aplicação de alternativas penais e enfrentamento ao uso abusivo de prisões provisórias em Salvador”, conduzida em parceria com o advogado Vitor Martins, e sob coordenação da jurista Ana Míria Carinhanha. No último dia 27, a equipe debateu os resultados da investigação durante um evento online transmitido via Twitter. Participaram da discussão a jornalista Daiane Oliveira e o mestre em história social pela Universidade Federal da Bahia Henrique Oliveira. O trabalho teve apoio do Fundo Brasil de Direitos Humanos, mesma organição que mantém a Brasil de Direitos.
Para quem não conseguiu participar de nosso Espaço ontem, está aqui a gravação, foi incrível! Agradecemos a presença de todos os ouvintes e de @Daianejoliveira, @henrisilvaolive, @anacarinhanha, @abelleDamasceno, @vitormarques94 e @rafaelciscati.
— Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas (@iniciativanegra) July 28, 2022
A investigação pretendia avaliar como são aplicadas medidas alternativas à prisão para pessoas processadas por delitos relacionados à Lei de Drogas em Salvador. A questão importa por ao menos dois motivos: com mais de 800 mil pessoas presas, o Brasil tem hoje a terceira maior população carcerária do planeta. Esse contingente explodiu desde 2006, quando a atual Lei de Drogas foi sancionada. “Os artigos dessa lei figuram, hoje, entre as principais justificativas utilizadas pelo judiciário para encarcerar pessoas”, disse Ana Carinhanha. Em especial, pessoas negras: 1/3 das pessoas encarceradas foi presa por delitos relacionados à Lei de Drogas, e 60% da população prisional se declara negra. “Diante do superencarceramento, queríamos entender como juízes tratam as alternativas penais”.
Para fazer isso, a equipe se debruçou sobre a atuação do judiciário em dois momentos. Primeiro, foram observados casos de prisão em flagrante,quando a pessoa acusada de cometer um delito passa por uma audiência de custódia. Nessa ocasião, o judiciário decide se ela deve aguardar o julgamento na prisão ou em liberdade – e define se deverá observar alguma das chamadas “medidas cautelares diversas da prisão” enquanto espera.
Também foram analisadas as decisões tomadas pelo judiciário em segunda instância. Casos em que a pessoa acusada de cometer um crime foi julgada e decidiu recorrer a um tribunal superior na esperança de ter a pena revista — ter a prisão em regime fechado convertida em alguma forma alternativa de punição, por exemplo. “Pela legislação atual, essa conversão só pode acontecer se a pena não for maior que quatro anos de reclusão, e se o crime não for cometido com grave ameaça”, explica Vitor Marques.
Foram examinados 105 autos de prisão em flagrante e 36 decisões proferidas pelos desembargadores do Tribunal de Justiça. O grupo ainda entrevistou juízes e outras pessoas que trabalham no sistema de justiça baiano, para entender seu processo de tomada de decisão.
Do conjunto, duas conclusões ganham destaque. “Percebemos que o judiciário trata a prisão como regra, e não como algo excepcional”, afirmou Ana Carinhanha. “Por medo de manter em liberdade uma pessoa que considera perigosa, o judiciário prefere mandar prender”.
No caso das prisões em flagrante, em 30% dos casos a justiça decidiu manter a pessoa encarcerada à espera de julgamento. A postura, comum no país, cria distorções: hoje, cerca de 36% das pessoas encarceradas no Brasil são presas provisórias, que ainda não foram julgadas. “São pessoas que talvez sejam inocentadas. Ou pessoas que vão ser sentenciadas a uma pena menor do que o tempo de prisão que já cumpriram”, disse Ana.
A equipe também constatou que, quando penas alternativas à prisão são aplicadas, sua escolha não segue critérios objetivos. Medidas cautelares foram aplicadas em 62% dos casos. A decisão deveria beneficiar a pessoa acusada, mas pode acabar causando prejuízos. “É o caso, por exemplo, de um motorista de aplicativo que fica proibido de deixar a comarca”, exemplificou Bella. “Essa pessoa não vai ter condições de executar seu trabalho e, ao mesmo tempo, cumprir a medida que lhe foi imposta”.
Raciocínio parecido se aplica ao monitoramento por tornozeleira eletrônica. No trabalho, os pesquisadores destacam que essa é uma das medidas consideradas como mais problemáticas: “isso porque […] ficam susceti?veis a viole?ncias decorrentes de estigmas e estereo?tipos vinculados a? imagem do apenados. Ale?m disso, as abordagens e a vulnerabilidade perante a viole?ncia policial aumentam”
Já na segunda instância, a manutenção da prisão é a regra: em 78% dos casos , a decisão de encarcerar tomada em primeira instância foi mantida.
Nas duas instâncias, era comum os processos não apresentarem informações sobre o trabalho das pessoas que eram julgadas. Na primeira instância, 36% dos casos não informavam ocupação laboral. Na segunda, essa parcela subia para 86% dos processos. “Percebe-se, portanto, que ha? existe?ncia do mau uso das medidas, uma vez que sua aplicabilidade deva levar em consideração à trajetória de vida da pessoa acusada, para que esta consiga cumprir, e consiga também exercer funções que as livrem da necessidade de recorrer a atos ilícitos para se manterem”, escreveu a equipe de pesquisa. Quando não consegue cumprir as determinações da Justiça, a pessoa beneficiária da medida alternativa à prisão corre o risco de ser encarcerada.
Sucateamento
Na avaliação dos pesquisadores, o caso de Salvador é representativo de um problema que se repete nacionalmente. A cidade foi pioneira na adoção de políticas públicas destinadas a viabilizar a aplicação de penas alternativas à prisão. Ainda nos anos 2000, o estado da Bahia aderiu à Poli?tica Nacional de Apoio e Acompanhamento às Penas e Medidas Alternativas. Em 2002, foi criada a Central de Apoio e Acompanhamento às Penas e Medidas Alternativas (CEA- PA), que se encarrega de acompanhar as pessoas que cumprem medidas alternativas à prisão. O órgão conta com uma equipe multidisciplinar que envolve psicólogos e assistentes sociais.
Ao longo dos anos, no entanto, essa estrutura foi fragilizada. Em 2021, foi desfeito do convênio entre o Ministério da Justiça e o governo da Bahia, que garantia tranferência de recursos federais para a CEAPA. Houve redução das equipes de trabalho. Essa medida tem potencial para gerar um efeito em cascata: as conversas com juizes revelaram que os magistrados precisam se sentir seguros de que a pessoa que cumpre uma medida alternativa será acompanhada pelo poder público. “se eu, como decisor, não posso acreditar que aquela minha decisão de cautelar vai ser fiscalizada ou vai ser cumprida, eu não tenho muito incentivo de aplicá-la”, afirmou um magistrado à equipe da pesquisa. “O nosso receio é de que, com isso, as medidas alternativas passem a ser cada vez menos aplicadas”, diz Ana Carinhanha. “Isso pode fazer aumentar o número de prisões provisórias”.
Na avaliação de quem esteve presente ao debate do último dia 27, essa fragilização é um dos reflexos de uma cultura punitivista, que privilegia o encarceramento de parcelas da população. “Vivemos num país de passado escravocrata que tem uma importante base eugenista”, disse a jornalista Daiane Oliveira. “Isso reverbera no nosso sistema de justiça. Segundo a Lei de Drogas, a diferença entre um usuário e um traficante é definida pelo contexto. Isso significa que um corpo negro, na periferia, pode ser tratado como traficante se tiver em posse de pequena quantidade de droga”.
“Nosso sistema penal se pautou em controlar e restringir a liberdade da população negra”, pontuou o historiador Henrique Oliveira. “Essa pesquisa mostra que a Bahia tem 14 mil pessoas presas, 9 mil delas por crimes relacionados à Lei de Drogas. São condutas auto-lesivas: ao consumir drogas, elas não oferecem risco a terceiros”, afirmou. “O foco não é combater o crime. O foco é combater as pessoas que são puníveis”.
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