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Marco temporal: como o povo indígena Xokleng foi perseguido e morto pelo Estado

Centro do julgamento que se desenrola no STF, no séc. XIX, povo de Santa Catarina foi alvo de expedições destinadas a matar indígenas, pagas pelo governo e por empresários

Rafael Ciscati

11 min

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Foto de topo: integrante da juventude Xokleng participa de ato pela vida em Florianópolis (Acervo Fundo Brasil / Inathan Gomes Santos)

Centro da discussão sobre o Marco Temporal que se desenrola no Supremo Tribunal Federal (STF), o povo Xokleng já enfrentou um longo histórico de perseguições empreendidas pelo Estado brasileiro . Originários da região oeste da Santa Catarina, os Xokleng costumavam habitar vastas áreas, que iam do sul do Paraná ao norte do Rio Grande do Sul. A partir da segunda metade do século XIX, esse povo passou a ser  visto como uma ameaça — e um obstáculo—  aos interesses do governo imperial. Na época, colonos europeus, vindos da Alemanha e da Itália, começavam a se estabelecer na região. Pelas décadas seguintes, os Xokleng foram assassinados por expedições de “bugreiros”: homens contratados, pelo governo ou por empresas particulares, para matar indígenas. Conforme a população xokleng era dizimada, diminuía também o território ocupado por esse povo.

>>Leia também: entenda o marco temporal em terras indígenas

É a extensão desse território que, hoje, está em debate. Nesta quarta-feira (7), os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) retomaram o julgamento de um processo que opõe os indígenas Xokleng, de um lado, e o estado de Santa Cataria, de outro. Na ação, o Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina pede a reintegração de posse de uma parte da Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ. A região fica a pouco mais de 200km de distância de Florianópolis e, segundo laudos etnográficos da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), trata-se de uma área de ocupação tradicional dos Xokleng. 

O estado de Santa Catarina argumenta, no entanto, que os indígenas não têm direito a esse território porque não moravam na região em outubro de 1988. O argumento se baseia na chamada tese do Marco Temporal: seus defensores sustentam que os povos originários só têm direito aos territórios que ocupavam (ou disputavam na Justiça) no momento em que foi promulgada a Constituição Federal. 

O resultado do julgamento interessa  a povos de todo o país porque, em 2019, o STF decidiu que sua decisão terá repercussão geral. Isso significa que servirá de base para  a resolução de disputas semelhantes que surgirem no futuro ou que já estejam em curso.

>>Leia também: terras indígenas do Brasil: quantas são e como são demarcadas

O julgamento do marco temporal começou em 2021. Até o momento, foram proferidos três votos: o do relator, ministro Edson Fachin, que se manifestou contra o marco temporal;  o do ministro Nunes Marques, a favor; e o do ministro Alexandre de Moraes, contrário. O debate foi interrompido novamente, na tarde do dia 7, por um pedido de vista do ministro André Mendonça. 

Nesse meio tempo, uma discussão semelhante avançou na Câmara dos Deputados: no último dia 30 de maio, os deputados aprovaram o projeto de lei 490/07. Entre outras medidas, o texto estabelece um marco temporal para demarcação de terras indígenas. Para virar lei, a proposta ainda precisa passar pelo Senado. 

Se for considerada constitucional, a tese do marco temporal poderá ser utilizada para inviabilizar demarcações de terras indígenas  – ou para revisar a extensão de terras já demarcadas. “O marco temporal é uma aberração jurídica”, afirma o professor Clóvis Antônio Brighenti, da Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA). Hitoriador de formação, Brighenti trabalhou por anos no Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e acompanhou o processo de demarcação, ainda incompleto, da terra indígena Ibirama-La Klãnõ. Ele explica que, depois de mais de um século de extermínio, os Xokleng são alvo de preconceito em Santa Catarina ainda hoje. E que a tese do marco temporal, além de ameaçar a sobrevivência desse povo, ignora o passado de violências enfrentado pelos Xokleng. 

>>Leia também: marco temporal avança no Congresso sob protestos em todo o país

Expedições para matar indígenas

Os primeiros colonos europeus chegaram ao interior de Santa Catarina por volta de 1830. Na época, a região era considerada uma vasta extensão desabitada — muito embora o governo brasileiro soubesse que, na área, viviam povos indígenas. No livro “Os índios Xokleng – memória visual”, o professor Silvio Coelho, da Universidade Federal de Santa Catarina, conta que o mito do “vazio demográfico” foi utilizado, por décadas, como argumento para justificar o estabelecimento de colônias alemãs e italianas na região. 

No geral, a chegada dos europeus era intermediada por empresas colonizadoras. Ainda na Europa, essas companhias privadas vendiam lotes de terras aos imigrantes, que eram trazidos ao Brasil para trabalhar como agricultores. Conforme as empresas colonizadoras avançavam, se tornaram recorrentes os conflitos entre indígenas e colonos recém-chegados. “As colônias foram criadas justamente sobre o território Xokleng”, diz Brighenti. “E os conflitos eram sempre encarados da perspectiva dos colonos. Considerados ataques dos indígenas aos europeus”. 


Tropa de bugreiros do início do século XX. A imagem aparece no livro “Os índios Xokleng – memória visual”

A solução encontrada foi a violência: empresas colonizadoras e governos concordavam que era necessário reduzir a presença indígena.  Em seu livro, Silvio Coelho reproduz trecho de um discurso feito pelo presidente da província de Santa Catarina, João José Coutinho, em 1856. Na sua fala, o político defende “que a única maneira realmente eficaz seria obrigar estes assassinos e filhos de bárbaros deixarem a floresta, localizando-os em lugares dos quais não pudessem fugir”.

É nesse momento que surge a figura do “bugreiro”. “Bugre” era um termo racista utilizado para se referir aos indígenas. O bugreiro, por sua vez, costumava ser um mateiro experiente: um homem que conhecia as florestas da região e que era contratado, pelo governo ou pelas companhias colonizadoras, para afugentar e matar indígenas. Esses grupos de extermínio costumavam ser formados por cerca de 18 homens armados, geralmente aparentados entre si. 

Os relatos da época dão conta de que os ataques aos indígenas costumavam acontecer com dia ainda escuro, antes do amanhecer. Depois da matança, os batedores do mato cortavam as orelhas dos indígenas, como prova de que o trabalho fora feito. Também acontecia de pouparem a vida de mulheres e crianças, que eram levadas como troféus para as colônias. 

“ O assalto se dava ao amanhecer. Primeiro, disparava-se uns tiros. Depois passava-se o resto no fio do facão”, conta um bugreiro entrevistado por Silvio Coelho na década de 1970. “O corpo é que nem bananeira, corta macio. Cortavam-se as orelhas. Cada par tinha preço. Às vezes, para mostrar, a gente trazia algumas mulheres e crianças. Tinha que matar todos. Se não, algum sobrevivente fazia vingança”. 

Algumas das crianças sequestradas pelos batedores eram adotadas por famílias de imigrantes, ou postas para trabalhar na agricultura. A maioria morria poucos anos depois de ser tomada de seu povo. As ações dos bugreiros perduraram por décadas. “O estado de Santa Catarina financiou expedições para matar indígenas até o início do século XX”, diz Brighenti. 

O cenário mudou com a vinda de um naturalista tcheco ao Brasil. Em 1906, foi criada em Florianópolis a “Liga Católica para Catequese dos Silvícolas”. O grupo pretendia por fim aos conflitos por meio da religião. Naquele mesmo ano, a Liga patrocinou a viagem de Albert Vojtech Fric, que deveria se encarregar de pacificar os Xokleng. Os planos de Fric acabaram sendo frustrados pelas companhias colonizadoras, que não tinham interesse em soluções não-violentas. 

De volta à Europa, Frics relatou o extermínio dos Xokleng  durante um congresso realizado em Viena em 1909. A história chocou o governo alemão. “A pressão decorrente dessa denúncia levou o governo de Santa Catarina a encerrar a matança dos Xokleng”, diz Brighenti. Os batedores do mato, no entanto, continuaram a ser contratados por particulares. Especula-se que as expedições para exterminar indígenas continuaram até, pelo menos, os anos 1930. 

A luta pela demarcação das terras tradicionais

A pressão internacional também forçou o governo federal a mudar a maneira como atuava na pauta indígena. As denúncias de Fric sobre o extermínio dos Xokleng correram pela imprensa europeia e dispararam uma discussão, no Brasil, que culminou na criação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em 1910. A ambição do órgão era contribuir para a adaptação dos indígenas “ao mundo civilizado”. Na época — e até a promulgação da Constituição Federal de 1988 — prevalecia a ideia de que os indígenas compunham uma espécie de categoria transitória. Suas culturas estariam destinadas a desaparecer, assimiladas pela sociedade nacional. 

Já em 1914, o SPI reservou 40 mil hectares de terra aos Xonkleng na região da cidade de José Boiteux. O decreto apontando os limites do território foi publicado em 1926. Ainda hoje, é essa a extensão da terra indígena que esse povo reivindica. 

A experiência dos Xokleng com o SPI foi desastrosa. Sob a tutela do órgão federal, os indígenas se tornaram prisioneiros. “Caso saíssem da reserva, o chefe do posto do SPI mandava buscá-los”, conta Brighenti. Confinados, os indígenas ficaram expostos a doenças infecciosas. Calcula-se que, em 1914, 400 indígenas viviam na reserva. Em 1932, havia 106. 


Protesto contra o Marco Temporal, em 2023 (Foto: Juventude Xokleng)

Ao longo dos anos, os 40 mil hectares reservados aos Xokleng foram sendo reduzidos. Brighenti conta que há denúncias de que os chefes de posto do SPI, responsáveis pela reserva Xokleng, comercializavam terras reservadas. A região era também cobiçada por empresas madeireiras. No início da década de 1970, dos 40 mil hectares originais restavam somente 14 mil.

Ainda na década de 1970, os Xokleng viveram novo golpe, quando foram construídas barragens para conter as cheias do Rio Itajaí. O curso d’água cruza cidades importantes de Santa Catarina, como Blumenau. Em tempos de chuva, costumava transbordar, inundando os municípios catarinenses. A solução encontrada pelo governo foi construir três barragens represando os afluentes desse rio. A maior delas foi erguida nos limites da terra indígea — e inundou parte do território Xokleng. 

Além de reduzir o território, a mudança no rio desestabilizou a economia dos Xokleng e forçou mudanças na sua organização política. “Para fugir das águas, os xokleng tiveram de subir encostas. A agricultura foi desarticulada”, diz Brighenti. Divididos em pequenos núcleos, eles deixaram de ter uma liderança central. 

O movimento dos Xokleng para retomar as terras que lhes foram tiradas ganhou novo fôlego em meados dos anos 1990. Em 2003, foi publicada a portaria declaratória indicando os limites da Terra Indígena  Ibirama-La Klãnõ. O documento restitui a terra indígena às dimensões que tinha em 1914. O processo de demarcação desse território, no entanto, continua incompleto — o roteiro incluiu ainda mais três atos, em que são feitas a demarcação física da terra indígena e a homologação pelo presidente da república. 

“Durante todo o processo, o estado de Santa Catarina se opôs aos Xokleng”, diz Brighenti, que foi membro do grupo de trabalho responsável pela demarcação. Ainda em 2003, pouco depois de publicada a portaria declaratória, a Funai começou a demarcar os limites físicos da terra indígena. O trabalho era feito por um equipe de tópografos, acompanhados por policiais federais. Irada, a população local se rebelou contra o órgão indigenista. “Prefeitos, vereadores, deputados, colonos, donos de madeireira, foram para cima da Polícia Federal e dos agrimensores, que foram postos para correr”.

Na avaliação de Brighenti, o preconceito contra os Xokleng, que predominava no século XIX, ainda resiste na região. Num estado que se orgulha do seu passado europeu, diz ele, a população indígena é vista como estorvo. “A disputa que ocorre no Supremo é mais uma etapa de uma antiga guerra travada contra esse povo”, afirma o historiador. “A guerra agora se desenrola na disputa por direitos, na disputa pela memória, contra o apagamento da história”. 

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