Marielle: como a violência política contra a mulher cresceu desde o assassinato da vereadora
Ocorrências aumentaram em mais de 900% desde 2019. Para Beatriz Carvalho, salto pode ser reação de conservadores a maior presença de mulheres na política, e sinal de que o assunto cresceu em relevância no debate público
Rafael Ciscati
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Na tarde desta quinta-feira (31), o Tribunal do Júri do Rio de Janeiro condenou os ex-policias Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz pelos assassinatos da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes. Seis anos atrás, na noite do dia 14 de março de 2018, ambos emboscaram o carro de Marielle quando ela voltava de um compromisso de trabalho. A ex-assessora Fernanda Chaves foi a única sobrevivente do atentado.
Lessa foi condenado a 78 anos e nove meses prisão. Queiroz a 59 anos e oito meses.
Na avaliação da socióloga Beatriz Carvalho, o assassinato de Marielle configurou um caso clássico de uma fenômeno que cresce em frequência no Brasil: a violência política contra a mulher. Esse tipo de violação pode assumir diversas formas: ofensas, ameaças, importunação sexual e, mais raramente, agressões físicas e assassinato. Todas têm um objetivo comum: eliminar a participação da mulher em espaços de discussão política.
Doutoranda da Universidade Rutgers, Beatriz faz parte do Grupo de Investigação Eleitoral (Giel) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). O grupo registra e analisa casos de violência política ocorridos no Brasil, envolvendo homens e mulheres.
Os dados do Giel começaram a ser coletados quase um anos depois da morte de Marielle, ocorrida em 2018. Mostram que, desde então, os casos de violência política contra mulheres aumentaram mais de 900%. Ao longo de 2019 e até o primeiro trimestre de 2020, houve 13 ocorrências registradas. Em 2024, até o final de setembro, o grupo registrou 132.
As observações do Giel são reforçadas pelo trabalho de outros grupos de pesquisa que já se debruçaram sobre o problema. É o caso do levantamento organizado pelas organizações Terra de Direitos e Justiça Global, que também constatou aumento nessas ocorrências em anos eleitorais. Segundo as duas organizações, as principais vítimas são parlamentares no exercício do mandato: caso de Marielle quando foi assassinada.
Segundo Beatriz, não há uma explicação única para esse salto. Por um lado, diz ela, aumentou o número de mulheres ocupando ou concorrendo a cargos públicos. “E as agressões aumentaram como uma reação, dos setores conservadores, a esse fenômeno “.
Para além disso, desde 2018, a sociedade passou a dar mais atenção a essas ocorrências. Beatriz explica que o fenômeno da violência política é comum na história do Brasil. Nas discussões sobre o tema, ganharam destaque casos de agressão física e violência letal, de que os homens são as vítimas mais frequentes.
Mais recentemente, no entanto, os pesquisadores da área passaram a atentar para formas de violência que passavam despercebidas, mas que são graves: como casos de ameaça, assédio moral e importunação sexual. São as violações que mais afetam as mulheres, e que ganharam visibilidade.
Brasil de Direitos: O que é violência política de gênero ou violência política contra a mulher?
Beatriz Carvalho: Trata-se de um fenômeno que acomete mulheres que atuam politicamente, mas que é diferente da violência política clássica. A violência política é geralmente motivada por disputas partidárias ou ideológicas. A violência direcionada às mulheres na política pode até ter alguma motivação ideológica. Mas o seu objetivo é o de excluir a mulher da vida pública. Tirá-la dos espaços de tomada de decisão. Ela é marcada pela diferença entre os gêneros e pela desigualdade entre homens e pessoas que se identificam com o gênero feminino. Essa violência pode assumir diversas formas – inclusive a forma de uma agressão física. Mas há alguns formatos muito particulares, que acometem especialmente mulheres e grupos minorizados: a objetificação sexual, a ridicularização, a desqualificação por motivos de gênero. São violências que, muitas vezes, passam despercebidas. E que, por isso, nem sempre entram nos relatórios que estudam o fenômeno da violência política. Ao longo deste ano, no Giel, mudamos as tipologias de violência com as quais a gente trabalha, na tentativa de tirar esses casos da obscuridade.
As duas expressões —violência política de gênero e violência contra mulheres na política— têm o mesmo significado?
No Brasil, os dois termos são utilizados, mas é muito comum que se fale em violência política de gênero. Nos EUA, onde estudo agora, é mais comum falar em violência contra as mulheres na política. Isso porque o termo “gênero” não deixa evidente a qual gênero estamos nos referindo: se masculino, feminino. Pode abarcar homens cis, pessoas LGBTQIA+ e pessoas trans que não necessariamente se identificam com o gênero feminino.
Os relatórios do Giel mostram um aumento no número de episódios violentos envolvendo mulheres na política. Sinal de que, desde 2019, a violência aumentou ou de que passamos a dar mais atenção ao fenômeno?
Não tenho uma resposta definitiva para essa pergunta. Mas você destacou um ponto importante: estamos falando mais sobre o assunto. A imprensa reporta mais os casos (para montar seus relatórios, o Giel monitora casos reportados pela imprensa), e as mulheres têm conseguido falar mais a respeito, fazer mais barulho. Esse é um fator. Para além disso, há também o fato de que mais mulheres se elegeram nos últimos anos. E há setores, contrários à participação política das mulheres, que passaram a reagir. Por esse lado, dá para falar, também, em uma incidência maior da violência. Há vários fatores, portanto, que contribuem para esse quadro.
As investigações do caso Marielle apontam que o assassinato dela, em 2018, se insere num contexto de disputa fundiária no Rio de Janeiro. Segundo a PGR, antes de matar Marielle, os mandantes chegaram a pensar em um atentado contra o então deputado estadual Marcelo Freixo. Apesar de haver outras motivações envolvidas, o caso Marielle é um caso de violência política de gênero?
Certamente. O caso da Marielle é um caso clássico, citado em livros que discutem o assunto. Houve outras motivações para o crime. Mas, como você disse, de início os mandantes consideraram um atentado contra o Freixo. Por que mudaram o alvo? Será que eles achavam que a equipe de segurança dela não seria tão robusta quanto a dele? Será que é porque a Marielle causava desconforto em função das pautas que ela encabeçava, em função da própria figura dela: além de ser mulher, era negra e LBT?. Quando a gente fala sobre violência contra a mulher na política, idealmente, é preciso avaliar quem são as mulheres atacadas. Obviamente, mulheres brancas heterossexuais são vítimas. Mas é importante observar se mulheres não-brancas, negras, indígenas, trans, estão sendo atacadas com mais virulência.
Como a gente muda esse quadro? Desde 2021, o Brasil tem uma lei que criminaliza a violência política contra a mulher. Já houve tempo para saber se ela é eficiente?
Trabalho pouco na análise da política pública. Mas eu entendo que a lei é importante. Não somente porque ela permite punir o agressor. O estabelecimento da lei é um sinal de que a sociedade compreende que existe um problema, e está mais disposta a falar sobre ele. Agora, para mudar o cenário, há um outro fator importante que precisa ser discutido: qual a relação dessas mulheres, vítimas de violência, com seus partidos? Elas recebem o apoio devido das siglas? Por vezes, a mulher sozinha não consegue denunciar a violência, não consegue escalonar a situação para outros níveis. Esse é um ponto que me preocupa muito. Vejo mudanças para melhor nessa área. Não dá para falar em melhora na violência, porque estamos vendo muitos casos. Mas há uma compreensão mais apurada, em especial entre os partidos progressistas, de que certas ocorrências compreendem casos de violência política. Eu espero que tenhamos um cenário mais seguro no futuro. Há novas questões emergindo, como o uso de inteligência artificial para criar vídeos falsos – vídeo o caso da Tabata Amaral nas eleições deste ano. Precisamos nos adaptar a essas novas ameaças, de modo a evitar que o medo de sofrer violência impeça as mulheres de se candidatar
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