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Mulheres são principais vítimas de violência, mas país pensa pouco em prevenção

Rafael Ciscati

11 min

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Mulheres e meninas são as principais vítimas de todas as formas de violência não letal no Brasil. São elas as que mais sofrem com a violência patrimonial e psicológica, com agressões físicas e estupro — entre 2010 e 2022, foram mais de 2 milhões de mulheres agredidas no país. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que todas essas formas de violência recrudesceram em 2023. Cresceu, também, o número de feminicídios. Entendido como o assassinato de mulheres por razão de gênero,ele costuma ser a etapa final de uma sequência de agressões. Isso significa que, geralmente, a mulher assassinada foi exposta a outras violências, mas não recebeu a devida proteção.

A gravidade do quadro esbarra na ausência quase total de instrumentos que avaliem quais estratégias têm maior potencial para revertê-lo. De acordo com o Instituto Igarapé — uma organização que realiza pesquisas em segurança pública, ambiental e digital— oito em cada 10 iniciativas de combate à violência de gênero não divulgam dados: não dá para saber, portanto, se funcionam ou não. “Temos um vazio de informações”, diz Melina Risso, diretora de pesquisas do Igarapé.

>>Leia também: o que é feminicídio

A instituição se empenha em reunir evidências que ajudem a avaliar a dimensão do problema. Em 2019, colocou no ar a plataforma Evidências sobre Violências e Alternativas para mulheres e meninas (EVA), que organiza estatísticas sobre Brasil, Colômbia e México. E, em julho deste ano, o grupo publicou um “Guia prático para formulação de políticas públicas de prevenção à violência contra meninas e mulheres”. A publicação é pensada para gestores públicos e tomadores de decisão. Descreve iniciativas postas em prática em diferentes partes do mundo e que, submetidas a avaliação criteriosa, se mostraram eficientes no combate à violência de gênero.

O Guia é uma tentativa do Instituto de qualificar um debate que ainda engatinha no Brasil: na área da segurança pública, diz Melina, o Brasil dá pouca atenção à prevenção. “Trabalhamos muito no acolhimento à vítima, o que é essencial”, diz. “Mas, como evitar que essa violência aconteça? ”.


As iniciativas relacionadas no Guia indicam que, se o objetivo for proteger meninas e mulheres, é saudável focar em três frentes: na promoção da independência financeira da mulher; em intervenções educacionais que combatam a violência intrafamiliar; e no controle àquilo que as pesquisadoras chama de “facilitadores da violência”, como o acesso a armas de fogo ou o consumo de álcool e outras drogas.

Dentre as ausências notáveis, nenhuma das intervenções de alto impacto relacionadas no Guia fala em punição. Isso não quer dizer que punir o agressor não seja importante: reconhecer  que determinada conduta é proibida passa uma mensagem importante para a sociedade, destaca a advogada Vivian Calderoni, coordenadora de pesquisas do Igarapé. “Mas, o fundamental, é entender o que realmente muda o cenário”, aponta Melina. “Se punir resolvesse o problema da segurança, o Brasil não seria hoje um país violento”. Hoje, o Brasil ocupa o terceiro lugar no ranking de maiores populações carcerárias do mundo.

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Em ano de eleições municipais, Melina acredita que o Guia possa ajudar gestores locais a encontrar caminhos para agir. “É no campo dos municípios que conseguimos encontrar soluções, porque eles têm a atribuição de criar redes de proteção, e conhecem as realidades locais”.

Na conversa a seguir, ela e Vívian comentam as principais conclusões do trabalho.

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Brasil de Direitos: Num relatório anterior, vocês destacaram que oito em cada dez iniciativas de combate a violência contra a mulher não divulgaram resultados, e é muito difícil encontrar dados sobre o Brasil. A gente trabalha no escuro? 

Melina Risso: Em 2019, lançamos uma plataforma chamada EVA –  a Plataforma de Evidências de Violência contra Mulheres e Meninas. A ideia era entender quais dados existiam sobre o problema da violência de gênero no Brasil, Colômbia e México. Buscamos informações sobre saúde, segurança pública, violências letais e não letais. O nosso primeiro achado foi: temos um vazio de dados. Hoje, as mulheres são as principais vítimas de violência no Brasil. Elas só não são as principais vítimas da violência letal, mas sofrem com todas as demais: a violência física, patrimonial, psicológica. Todas as formas de que fala a Lei Maria da Penha. Esse problema é, com frequência, invisibilizado. O vazio de dados que constatamos preocupa. Porque é preciso medir o problema para solucioná-lo.

A segunda etapa desse trabalho foi identificar quais políticas vêm sendo implementadas para combater a violência de gênero. O que a gente nota é que, enquanto sociedade, a gente sempre olha para a violência depois que ela acontece. Em anos de eleição, todo mundo pede mais delegacias da mulher; mais estruturas para amparar a mulher que foi agredida. Tudo isso é fundamental.  Mas, como evitar que essa violência aconteça? Começamos a procurar iniciativas que trabalham nessa perspectiva. Queríamos trazer, para o debate público, essas políticas com potencial para mudar a realidade. Afinal, o que queremos é que as mulheres não sofram violência. Mas deparamos com um novo problema: no Brasil, não temos bem estabelecida a  prática de avaliar a eficiência de políticas públicas. Não sabemos o que funciona, o que não funciona, o que precisa ser aprimorado.

É muito recorrente que os índices de feminicídio e de outras violências contra mulheres cresçam de um ano para o outro no Brasil. Foi assim em 2023, quando todas as formas de violência de gênero dispararam. Onde o Brasil erra?
Melina: Há mais de uma razão: primeiro, a violência contra a mulher é vista como um problema menor. Por aqui, encaramos “homicídio” como sinônimo de violência. E, comparado ao total de homicídios, o número de feminicídios responde por um percentual baixo. Na hora da priorização, as pessoas não olham para esse cenário. Além disso, no Brasil, as políticas de segurança pública não têm prioridade. Dentro desse universo, as políticas de prevenção recebem menos atenção ainda. É importante entender que o país lida com diferentes tipos de violência. Para alguns deles, presença policial pode ser um fator de dissuasão. Mas a violência contra a mulher tem causas específicas. Para enfrentá-la, é preciso agir em diferentes frentes. E a intersetorialidade é um desafio. Mas é possível. Era essa a nossa intenção com o Guia: mostrar estratégias que já foram testadas, que já funcionaram. A gente não precisa reinventar a roda. Precisamos dar a devida prioridade, e implementar ações que funcionem.

Nenhuma das iniciativas de alto impacto que vocês destacaram fala de punição a agressores. Existe um discurso muito corrente no Brasil de que, para evitar agressões, é preciso recrudescer penas. Ele é enganoso?
Melina: É enganoso, apesar de comum. Sempre que ocorre um crime, somos tomados por um fator emocional muito profundo. Existe um desejo por vingança. Mas, o fundamental, é entender o que realmente muda o cenário. Se punir resolvesse o problema da segurança, o Brasil não seria hoje um país violento [ hoje, o Brasil ocupa a terceira posição no ranking das maiores populações carcerárias do planeta]. Isso vale para o cenário da violência contra a mulher e vale também para outros crimes.

Vivian Calderoni: Ainda na esfera da punição, ter um reconhecimento na norma de que aquela conduta é proibida passa uma mensagem importante. Não que a proibição, por si só, vá prevenir a violência. Mas, a partir dela, é possível criar todo um arcabouço do Estado de prevenção e combate. Ela abre a possibilidade de criar ferramentas multisetoriais e multifacetadas para lidar com o problema.

Em 2015, o feminicídio foi incluído no código penal brasileiro como um qualificador do homicídio. Não foi uma medida importante?
Melina: Foi. É a mesma ideia que a gente destacou no começo da conversa: se eu não consigo ver que o problema existe, eu não consigo entender o fenômeno. Nesse sentido, a lei do feminicídio foi importante porque nos permitiu reconhecer qual foi a motivação daquele homicídio. Isso nos permite entender melhor o cenário. Hoje, a gente consegue dizer se o assassinato de mulheres por razão de gênero aumentou ou diminuiu ao longo do tempo. Isso nos dá elementos para quantificar se as políticas estão funcionando ou não. Mas a tipificação, por si só, não resolve o problema. Ela coloca o problema em debate, e é importante porque leva a sociedade a falar sobre as consequências desse tipo de violência. No caso do feminicídio, ainda há uma discussão sobre a implementação desse qualificador. Porque ele é um elemento quase subjetivo: um homicídio é classificado, ou não, como feminicídio a depender da avaliação feita pela pessoa que faz a notificação do crime. Mesmo assim, hoje a sociedade fala sobre feminicídio e reconhece o tamanho desse problema.

Vivian: O qualificador também importa porque, no conjunto dos homicídios, o feminicídio tem uma motivação diferente. É importante olhá-lo em separado, de modo a formular políticas específicas.

Que medidas são eficientes para proteger meninas e mulheres?
Melina: Selecionamos iniciativas que trabalhavam na perspectiva da prevenção. Entre elas, dois elementos que se destacam são o empoderamento feminino e a independência financeira. Eles reduzem a incidência de fatores de risco que expõem a mulher a situações de violência. Iniciativas que permitam o acesso a recursos financeiros, treinamento e capacitação propiciam o desenvolvimento da mulher fora de uma estrutura violenta.

A violência contra a mulher também está relacionada a expectativas criadas pela sociedade em relação a cada gênero. Existe um elemento cultural forte, que precisa ser mudado. A violência doméstica e intrafamiliar é outro elemento importante dessa discussão. Combatê-la envolve iniciativas ligadas à educação, que pode trabalhar habilidades socioemocionais e mecanismos de controle da raiva. É algo que pode ser desenvolvido com crianças e adolescentes, e que tem impacto significativo a longo prazo.

Também é eficiente atuar no controle a elementos que facilitem a violência. São fatores como o consumo de álcool e drogas [que podem tornar homens propensos a atitudes violentas] e o acesso a armas de fogo. Ultimamente, observamos um crescimento da participação de armas de fogo  nas ocorrências de violência contra a mulher. Isso aumenta o potencial de letalidade da agressão.

Mas é importante entender que essas políticas e iniciativas não podem funcionar isoladamente. Não há uma bala de prata, uma solução única que vá resolver todos os problemas. Para ter resultado efetivo na redução e prevenção da violência, é preciso ter um conjunto de medidas.

Estamos em ano de eleições municipais. Que lições os gestores locais podem tirar do Guia?
Melina: Considerando o nosso desenho federativo, é justamente no campo dos municípios que a gente consegue fazer a diferença. Eles têm a atribuição de criar redes de proteção, e estão próximos das pessoas, conhecem sua realidade. Os gestores municipais sabem o que está acontecendo dentro dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAs). E o próprio sistema de saúde é uma porta de entrada importante, que permite identificar casos de violência não letal. Por isso, é nos municípios que podemos avançar na perspectiva da prevenção. E tem havido avanços nesse sentido, em políticas como as Patrulhas Maria da Penha, por exemplo. Sem dúvida, as cidades são locus privilegiados para trabalhar com esse conjunto de políticas.

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