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Na Baixada Fluminense, o racismo religioso encontra o narcopentecostalismo

Fabio Leon

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texto originalmente publicado no site do Fórum Grita Baixada

As religiões de matriz africana surgiram no Brasil ainda durante o período colonial.  Foram as práticas religiosas de bantos, nagôs e jejes que deram origem ao candomblé e à umbanda. A primeira se baseia no culto aos orixás e, hoje, é praticada no Brasil todo. A segunda, é  “uma religião sincrética que mistura elementos africanos com o catolicismo e o espiritismo, incluindo a associação de santos católicos com os orixás”, conforme explica o Portal da Cultura Afro-brasileira.

Fruto das importantes contribuições culturais legadas por povos africanos trazidos à força para o Brasil, essas religiões são alvo histórico de perseguições.  No Brasil colonial, umbanda e o candomblé eram vistas como uma espécie de “ameaça demoníaca” graças a especulações preconceituosas, que defendiam que a liturgia dos terreiros contrariava, dentre outros aspectos, valores morais e comportamentais do catolicismo e, evidentemente, da própria cultura branca e eurocentrada.

>>Leia também: terreiros em luta – caminhos para enfrentar o racismo religioso

Essas manifestações de racismo religioso perduram até hoje. Nas últimas semanas, o Fórum Grita Baixada conversou com povos de terreiro de Belford Roxo. Nessa cidade majoritariamente negra da Baixada Fluminense, o racismo se mistura a novos ingredientes: de motivações políticas a arranjos ilícitos. Aqui, a  perseguição a umbanda e ao candomblé se revela ora sutil, ora explícita. É o que nos mostram os relatos seguintes. 

Complexo de Israel e narcopentecostalismo 

Segundo a pesquisa “Mapeamento de Casas de Religiões de Matriz Africana no Rio de Janeiro”, da socióloga Ana Luzia de Oliveira Moreira Guimarães, existem cerca de 120 comunidades afro-religiosas na Baixada Fluminense. Somente entre Miguel Couto, em Nova Iguaçu, e Jardim Primavera, em Duque de Caxias, passando por Belford Roxo, há cerca de 50 delas. 

Nos últimos anos,  essas casas passaram a sofrer as pressões de novos atores criminosos: ganharam espaço na Baixada Fluminense os chamados “traficantes de Jesus”. Eles englobam facções criminosas que se uniram a milicianos recém-convertidos das igrejas neopentecostais e formaram o chamado “Complexo de Israel”, conjunto de favelas dominadas pelo traficante e ex-pastor evangélico Álvaro Malaquias Santa Rosa, conhecido como Peixão, de 34 anos. O uso da simbologia do Estado de Israel é justificado porque, para algumas das correntes das igrejas neopentecostais, a criação de Israel foi um sinal da volta de Jesus Cristo e a confirmação de promessas bíblicas do Antigo Testamento. 

Estrategista ousado, Peixão foi consolidando os seus domínios durante o início da pandemia de Covid 19, em 2020, aproveitando-se da pouca organização das forças de segurança. Em pouco tempo, comandava as comunidades de Parada de Lucas, Vigário Geral, Cidade Alta, Cinco Bocas e Pica Pau, na Zona Norte do Rio. 

Antes disso, em 2019, Peixão já ordenara  ataques a terreiros de religiões de matriz africana em Nova Iguaçu e Duque de Caxias, já que regiões como o Buraco do Boi (Nova Iguaçu) e Parque Paulista (Duque de Caxias) seriam postos de distribuição de drogas dominadas pelo traficante na época e que, portanto, teriam de se aliar à suas convicções religiosas, uma mistura de tradições judaicas e neopentecostais. Pela similaridade do método e o teor de agressividade das represálias, leva-se a crer que Belford Roxo já seja conhecedor do seu modus operandi, especialmente em bairros como Jardim Redentor, Barro Vermelho e Shangri-lá, que já sofrem, há algum tempo, com o toque de recolher e a proibição de vestimentas brancas e guias.

Peixão pertenceria à segunda geração de um movimento no crime organizado, apelidado de narcopentecostalismo, em curso no Rio desde 2013, com o chamado “Bonde de Jesus”.  O grupo era liderado por Fernando Gomes de Freitas, vulgo Fernandinho Guarabú, evangélico  da Assembleia de Deus Ministério Monte Sinai. Em setembro de 2013,  o Bonde de Jesus vandalizou terreiros de candomblé e umbanda no Morro do Dendê, na Ilha do Governador, forçando o fechamento de 10 deles. Pais e mães de santo, bem como outros sacerdotes de religiões de matriz africana, chegaram a ser expulsos —algo que continua ocorrendo nos dias de hoje no complexo, mesmo depois da morte de Guarabú em um confronto com a polícia em 2019.

Racismo religioso e aspectos da segurança pública 

Apesar do recrudescimento da violência, o combate ao racismo religioso é ainda um desafio para os órgãos de segurança pública. Desde 2022, o judiciário de Belford Roxo reconhece que atos de intolerância contra religiões de matriz africana devem ser considerados como racismo religioso. O avanço foi importante, mas faltam dados para avaliar seu impacto. Isso porque o reconhecimento da jutiça não foi acompanhado por mudanças na forma como o Instituto de Segurança Pública, por exemplo, trabalha. Hoje, o ISP não traz registros específicos de violações ocorridas em comunidades religiosas de matriz africana como indicador de violência. O Instituto apresente dados estatísticos provenientes de boletins de ocorrência em delegacias por discriminação, adotando a nomenclatura intolerância religiosa, num sentido mais amplo. Não fala de racismo religioso. 

Durante a vigência da CPI da Intolerância Religiosa, realizada pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ), e cujo relatório final foi aprovado em 13 de abril do ano passado, foram catalogadas 35 recomendações a órgãos públicos do Estado, dentre elas o ISP. No caso, recomendava-se estabelecer a obrigatoriedade de divulgação anual de informações relativas a racismo religioso. No mesmo documento, embora a diretora da autarquia, Marcela Ortiz, afirme ter contato com faculdades, universidades, autoridades policiais e a sociedade civil organizada que, supostamente, colaborariam na estruturação desses dados, o ISP também reconhece ter grande dificuldade de fazer estudos envolvendo preconceito religioso, porque não existe “a tipificação desse crime”. O Instituto conclui, então, que essa modalidade criminal é a motivação para a prática de outros crimes, o que acaba gerando uma dificuldade para que se consiga gerar estatísticas oficiais sobre o tema.

O que nos leva a um segundo questionamento que são as subnotificações dos casos de violência e racismo religioso, em função do medo e falta de garantias de segurança para os denunciantes. 

Mas como pensar na possibilidade de dados públicos mais consistentes, considerando essas vulnerabilidades sociais e políticas infligidas a representantes de religião de matriz africana, sobretudo quando há violações de terreiros, barracões perpetrados por traficantes e milicianos? Perguntado como as autoridades poderiam garantir tal proteção, eis o que promotor de justiça do Ministério Público Federal, Julio Araujo, que já trabalhou com grupos de religiosos de matriz africana na Baixada Fluminense, responde:    “Existe um certo dilema nessa questão. Por um lado, a gente acompanha a visibilidade desse tema que leva cada vez mais pessoas a denunciarem. Isso é uma maneira importante de enfrentar a subnotificação. Muita gente tem se sentido mais confortável para expor esses problemas. Por outro, isso gera outro efeito que é a sensação de que os casos poderiam ter aumentado por esse mesmo quantitativo ser tão expressivo. É preciso ter condições para se medir a capacidade de respostas a essas discriminações religiosas, com ações preventivas, e os impactos que isso gera nas comunidades. Fatos concretos geram indicadores melhores”, analisa Araujo. 

Embora tenha a sua relevância no sentido de externalizar as ramificações dessa modalidade de crime organizado, somente com a aprovação do relatório final da CPI da Intolerância Religiosa pela ALERJ é que se reconheceu que o racismo religioso também deveria ser tratado como problema de segurança pública, em função do envolvimento de traficantes evangélicos e milicianos. Pensa-se se a extrapolação de tal fenômeno ganharia a mesma repercussão se os ataques aos terreiros de candomblé e umbanda, ficassem aparentemente restritos a uma disputa no campo das religiões. 

A intolerância religiosa, produto de um processo histórico racista e discriminatório, fruto da marginalização atemporal das religiões de matriz africana, redimensiona os ciclos de poder que há quase um século se revezam na Baixada, transformando esse conjunto de territórios em um trágico laboratório em que orbitam matadores de aluguel, bandidos e traficantes, grupos de extermínio, esquadrões da morte e milicianos. 

Foto de topo: Mídia Ninja

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